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sábado, 20 abril, 2024

Dois anos depois, espírito de Soleimani ganha influência

Soleimani, o general martirizado.

– Os EUA podem ter assassinado Soleimani, mas esta agressão ilegal em nada frustrou os planos da Força Quds do general para a Ásia Ocidental e pode até tê-los acelerado

Pepe Escobar [*]
Há dois anos, 2020 iniciava-se com um assassinato: o assassinato do major-general Qassem Soleimani, comandante da Força Quds do Corpo de Guardas Revolucionários Islâmicos (CGRI), ao lado de Abu Mahdi al-Muhandis, vice-comandante das forças Hashd al-Shaabi do Iraque, por mísseis AGM-114 Hellfire guiados a laser lançados de dois drones americanos MQ-9 Reaper. Foi um ato de guerra que deu o tom para a nova década e inspirou o meu livro Raging Twenties: Great Power Politics Meets Techno-Feudalism, publicado um ano depois.
Os ataques de drones no aeroporto de Bagdade, aprovados diretamente pelo então presidente dos EUA, Donald Trump, foram unilaterais, não provocados e ilegais: um ato imperial engendrado como uma forte provocação capaz de desencadear uma reação iraniana que seria então combatida pela “autodefesa” americana, apresentada como “dissuasão”.
Chame-se a isto isso uma forma perversa de falsa notícia invertida. A barragem da narrativa imperial transformou-a em “assassinato direcionado”: uma operação preventiva reprimindo o suposto planeamento de Soleimani para “ataques iminentes” contra diplomatas e tropas dos EUA. Não foram apresentados quaisquer elementos de prova para apoiar a alegação.
O então primeiro-ministro iraquiano Adel Abdul-Mahdi, perante o Parlamento, ofereceu o contexto final: Soleimani, estava numa missão diplomática, embarcou num voo regular da Cham Wings, num Airbus A320, entre Damasco e Bagdade. Esteve envolvido em negociações complexas entre Teerão e Riad, com o primeiro-ministro iraquiano como mediador, e tudo isso a pedido do presidente Trump.
Assim, a máquina imperial, zombando da lei internacional, assassinou na realidade um verdadeiro enviado diplomático. Na verdade, dois enviados – porque Al-Muhandis tinha as mesmas qualidades de liderança de Soleimani, promovendo ativamente a sinergia entre o campo de batalha e a diplomacia, e absolutamente insubstituível como interlocutor político chave no Iraque.
O assassinato de Soleimani era “encorajado” desde 2007 por neoconservadores dos EUA extremamente ignorantes da história, cultura e política da Ásia Ocidental – e pelos lobbies israelenses e sauditas. Tanto o governo Bush Jr. quanto o governo Obama resistiram, temendo uma escalada inevitável. Trump não podia ver o quadro geral e as suas terríveis ramificações quando tinha apenas pioneiros de Israel (Israel-firsters) da variedade Jared- Kushner da Arábia Saudita, sussurrando ao seu ouvido, em conjunto com um amigo próximo do príncipe herdeiro saudita Muhammed bin Salman.
A comedida resposta iraniana ao assassinato de Soleimani foi cuidadosamente calibrada para evitar um exagero imperial vingativo e desenfreado: ataques de mísseis de precisão à base aérea de Ain al-Assad, controlada pelos EUA, no Iraque. O Pentágono recebeu um aviso prévio.
No entanto, foi precisamente essa resposta comedida que acabou por ser o divisor de águas. A mensagem de Teerão deixou explicitamente claro que os dias de impunidade imperial haviam acabado: podemos atingir seus ativos em qualquer lugar do Golfo Pérsico e além, no momento de nossa escolha. Portanto, este foi o primeiro “milagre” que o espírito de Soleimani projetou: os ataques de mísseis de precisão em Ain al-Assad representavam um poder de nível médio, enfraquecido por sanções e enfrentando uma enorme crise econômico-financeira, respondendo a um ataque unilateral e visando ativos do extenso Império de bases militares.
Isto foi uma estreia global – inédita desde o final da Segunda Guerra Mundial. E isso foi claramente interpretado em toda a Ásia Ocidental e em vastas áreas do Sul Global como perfurando mortalmente a armadura hegemónica de décadas de “prestígio” dos EUA.
Calculando o quadro geral
Todos, não apenas o Eixo da Resistência – Teerã, Bagdá, Damasco, Hezbollah – mas todo o Sul Global está ciente de como Soleimani liderou a luta contra o ISIS no Iraque de 2014 a 2015 e como ele foi fundamental na retomada de Tikrit em 2015. Numa entrevista extraordinária, o secretário-geral do Hezbollah, Hassan Nasrallah, enfatizou a “grande humildade” de Soleimani, mesmo “com as pessoas comuns, as pessoas simples”. Nasrallah contou uma história que é essencial para colocar o modus operandi de Soleimani na guerra ao terror real, não fictícia, que ainda merece ser citada na íntegra dois anos após o seu assassinato:
“Naquele dia, o Hajj [peregrino de Meca] Qassem viajou do aeroporto de Bagdade para Damasco, de onde veio (diretamente) para Beirute, nos subúrbios do sul. Ele encontrou-se comigo à meia-noite. Lembro-me muito bem do que ele me disse: “Ao amanhecer você deve disponibilizar-me 120 comandantes de operações” (do Hezbollah). Eu repliquei: “Mas Hajj como posso providenciar 120 comandantes?” Ele disse-me que não havia outra solução se quiséssemos lutar (efetivamente) contra o ISIS, defender o povo iraquiano, os nossos lugares sagrados [5 dos 12 Imames do Shiismo têm seus mausoléus no Iraque], nossos Hawzas [instituições educacionais islâmicas] e tudo o que exista no Iraque. Não há escolha. Mas não são precisos combatentes. Preciso de comandantes operacionais [para supervisionar as Unidades de Mobilização Popular Iraquiana, PMU]”.
“É por isso que no meu discurso [sobre o assassinato de Soleimani], eu disse que durante os 22 anos ou mais do nosso relacionamento com o Hajj Qassem Soleimani, ele nunca nos pediu nada, nem mesmo para o Irão. Sim, ele só nos perguntou uma vez, e isso foi para o Iraque, quando ele nos pediu esses (120) comandantes de operações. Então ele ficou comigo e começamos a contactar nossos irmãos (do Hezbollah) um por um. Conseguimos trazer quase 60 comandantes operacionais, incluindo alguns irmãos que estavam na linha da frente na Síria, e que enviamos ao aeroporto de Damasco [para aguardar por Soleimani], e outros que estavam no Líbano, e que acordamos do seu sono e trouxemos [imediatamente] de suas casas, pois o Hajj disse que queria levá-los com ele no avião após a oração do amanhecer e que os traria de volta a Damasco.
“De facto, depois de rezarem juntos a oração do amanhecer, eles voaram para Damasco com o Hajj Qassem e de Damasco para Bagdade com 50 a 60 comandantes libaneses do Hezbollah, com os quais foi para a linha de frente no Iraque. Ele disse que não precisava de combatentes, porque graças a Deus havia muitos voluntários no Iraque. Mas ele precisava de comandantes para liderar esses combatentes, treiná-los, passar experiência e perícia para eles, etc. E não partiu até que tivesse a minha promessa de que dentro de dois ou três dias eu lhe enviaria os 60 comandantes restantes”.
Um ex-comandante de Soleimani que conheci no Irão em 2018 prometeu-me e ao meu colega Sebastiano Caputo que tentaria marcar uma entrevista com o major-general – que nunca falou com os media estrangeiros. Não tínhamos motivos para duvidar de nosso interlocutor – então, até o último minuto em Bagdá, fizemos parte dessa lista de espera seletiva.
Quanto a Abu Mahdi al-Muhandis, morto lado a lado com Soleimani nos ataques de drones em Bagdade, eu estava com o jornalista Sharmine Narwani e um pequeno grupo que passou uma tarde com ele num esconderijo dentro, não fora, da Zona Verde de Bagdade em novembro de 2017. O meu relatório completo está aqui.
Soleimani pode ter sido uma superestrela revolucionária – muitos no Sul Global o veem como o Che Guevara da Ásia Ocidental – mas por trás de várias camadas de mito ele fazia parte, acima de tudo, de uma engrenagem bastante articulada de uma máquina muito articulada. Anos antes do seu assassinato, Soleimani já havia previsto uma inevitável “normalização” entre Israel e as monarquias do Golfo Pérsico. Ao mesmo tempo, ele também estava muito consciente da posição da Liga Árabe em 2002 – compartilhada, entre outros, por Iraque, Síria e Líbano – de que essa “normalização” não podia nem começar a ser discutida sem um Estado Palestiniano independente e viável com as fronteiras de 1967 e Jerusalém Oriental como sua capital.
Soleimani viu o quadro geral em toda a Ásia Ocidental, do Cairo a Teerã, do Bósforo ao Bab al-Mandeb. Ele certamente havia calculado a inevitável “normalização” da Síria no mundo árabe, bem como a data limite para o Império do Caos para abandonar o Afeganistão – embora provavelmente não a extensão daquela retirada humilhante – e como isso reconfiguraria todas as apostas para a Ásia Ocidental e para a Ásia Central.
Não é difícil ver Soleimani já imaginando o que aconteceu no mês passado. O ministro das Relações Exteriores da Turquia, Mevlut Cavusoglu, foi ao Dubai e assinou alguns acordos comerciais com profundo significado político, como que enterrando a visceral rivalidade intra-sunita. Mohammed bin Zayed do Abu Dhabi, parece estar a apostar simultaneamente num acordo de livre comércio entre Israel e os Emirados e uma distensão com o Irão. O seu conselheiro de segurança, Sheikh Tahnoon, encontrou-se com o presidente do Irão, Raisi, em Teerão, em meados de dezembro, discutindo mesmo o Iémen. Mas a questão-chave em todas essas negociações é um inovador corredor de trânsito terrestre que possa funcionar entre os Emirados Árabes Unidos, o Irão e a Turquia.
Enquanto isso, o Qatar – um interlocutor privilegiado tanto da Turquia quanto do Irã – está comprometido no financiamento dos custos da administração de Gaza, num delicado equilíbrio com Israel, de certa forma repetindo um papel semelhante ao de Doha nas negociações entre os EUA e os Talibãs. O que Soleimani não conseguiu, ao lado de Al-Muhandis, foi estabelecer um caminho viável para o Iraque após a inevitável retirada imperial – ainda que o seu assassinato possa ter acelerado o impulso popular para a expulsão definitiva dos americanos. O Iraque continua profundamente dividido e refém de politiquice provinciana. Ainda assim, o espírito de Soleimani persiste quando se trata do Eixo da Resistência: Teerão-Bagdade-Damasco-Beirute, diante da subversão imperial maciça, ainda sobrevivendo a todos os desafios possíveis.
O Irã está cada vez mais sólido como um nó-chave das Novas Rotas da Seda no Sudoeste Asiático: a parceria estratégica Irão-China, impulsionada pela adesão de Teerão à Organização de Cooperação de Xangai, será tão forte geoeconômica quanto geopoliticamente. Em paralelo, Irã, Rússia e China estarão envolvidos na reconstrução da Síria – completada com projetos da BRI (Novas Rotas da Seda) que vão desde a ferrovia Irão-Iraque-Síria-Mediterrâneo Oriental até, num futuro próximo, o gasoduto Irã-Iraque-Síria, sem dúvida, o fator chave que provocou a guerra por procuração dos EUA contra Damasco.
Fogos infernais (Hellfires) não são benvindos.
[*] Jornalista especializado em assuntos asiáticos.
O original encontra-se em thecradle.co/Article/columns/5390
Este artigo encontra-se em resistir.info

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