Anita Novinsky, professora internacionalmente conhecida por suas pesquisas sobre a Inquisição nos séculos XVI a XIX, escreve: “entender o sentido profundo de um processo, o que é verdade e o que é forjado, se a confissão é falsa ou verdadeira, se o réu cometeu o crime ou se foi queimado inocentemente, é muito difícil, em consequência da estrutura inquisitorial corrupta e repressiva” (Inquisição: Prisioneiros do Brasil, Perspectiva, 2009).
A Operação Lava Jato, cinco séculos depois, em muito se iguala e repete a Inquisição. Primeiro pela origem e instrumentação estrangeira, depois pelo medo que infunde, outrora pelas cerimônias públicas e festivas dos autos-de-fé, hoje pelos prêmios e aparições na mídia, e ainda, nas palavras da professora Novinsky, lá “responsável pelo bloqueio do desenvolvimento da uma burguesia portuguesa. O comércio nacional passou a ser exercido por estrangeiros”. Aqui, coloque-se a engenharia nacional, a pesquisa nuclear e a produção de petróleo, sempre com empresas e tecnologia brasileira, e temos a Lava Jato impondo as empresas estrangeiras.
Pode surpreender a ausência de freios tanto aos desmandos do século XVI quanto aos do século XXI. Antes era a toda poderosa Igreja, agora o Departamento de Estado da nação mais rica e fortemente armada do planeta.
REFLEXÕES
Os pronunciamentos da recém empossada Ministra Presidenta do Supremo Tribunal Federal (STF) e de seu colega no STF, capa de uma revista semanal de escândalos, sobre a função da justiça – “batendo palma para doido dançar”, colocam para todos nós as questões relevantes do papel dos operadores do direito e da cidadania. Esta última especialmente destacada na alocução da Ministra Cármen Lúcia.
Começo tentando dar mais precisão ao que entenderemos por direito e como identificar um cidadão num contexto democrático.
O direito é uma ratio ou uma volutas, isto é, decorre de um equilíbrio social ou de um arbítrio, uma vontade, ainda que coletiva? Será este equilíbrio erigido de casos particulares, individualizados ou acumulados? Como poderá acolher modificação condizente com a dinâmica da sociedade? E como adotar estas normas resguardando a soberania da sociedade e sua convivência democrática?
Estas questões estão na compreensão do próprio direito e delas derivarão o modo de operá-lo. Embora num contexto jurídico bem diverso do brasileiro, Lawrence Friedman, em trabalhos das últimas três décadas, nos traz relevantes reflexões que passarei a comentar.
Inicialmente, desde 1980 o mundo passa a ser rápida e amplamente dominado pelo sistema financeiro internacional, a banca. Nos Estados Unidos da América (EUA), para onde Friedman dedica sua atenção, todos governos após Ronald Reagan se submetem aos interesses da banca. É uma realidade que também nos atinge e que modifica referenciais e metodologias de análise até então adotadas. A literatura pós 1990 nos afigura, assim, bem mais adequada à análise das questões atuais.
A desconfiança do Estado, em face dos interesses individuais, havia conduzido os EUA à descentralização normativa que, ainda hoje, embora bem menor, existe naquele país, diferentemente do Brasil. Podemos chamar do princípio federativo que não vingou aqui. Vários sociólogos, historiadores e pensadores contemporâneos atribuem a esta “norma particular” uma das razões do grande desenvolvimento norteamericano desde o século XIX até meados do século XX.
E imputam ao questionamento, quando não à própria derrocada, da lei estadual pela Suprema Corte uma razão da crise dos EUA. Efetivamente, foi nos anos 1960, que aquela corte, presidida por Earl Warren, passou a adotar um rígido controle sobre as leis estaduais (judicial review). Hoje, sob a doutrina globalizante, do interesse da banca, esta interferência se verifica ampla e crescente. O recente plebiscito que aprovou a saída do Reino Unido da União Europeia pode ser examinado sob esta mesma ótica.
Estabeleceremos, como preliminar, que é característica da volutas sua delimitação ao ambiente social mais homogêneo. No limite, no caso brasileiro, teríamos o empoderamento da constituição municipal, tratando de todas as questões que afetam diretamente os munícipes, não só no âmbito civil como no penal e outras áreas do direito público.
Ainda neste contexto, é bastante significativo que o jurista português António Manuel Hespanha (O Caleidoscópio do Direito, Almedina, 2ª edição, 2014) coloque a questão do custo-benefício na aplicação da norma, o que faria escapar da ação coercitiva do Estado situações de “meras desvantagens”, pelo aparato necessário à efetiva presença da justiça.
Mas tais reflexões eu não pude perceber nem na crítica do Ministro nem na peroração de amor ao processo da Presidenta.
Não estou advogando qualquer modelo, mas diante da crise institucional que vive o Brasil e da enorme fraude que corre as nações contra um pretexto terrorismo, creio que nossas maiores autoridades judiciárias fariam bem em desembarcar do debate político partidário para se concentrarem nas questões de fundo jurídico institucional.
Vejamos a verdadeiramente importantíssima construção da cidadania. Não havendo cidadãos fica impossível termos normas e instituições efetivamente democráticas, no sentido da escolhidas por pessoas livres e conscientes.
Para as reflexões sobre a construção da cidadania, me valho das recentes e notáveis contribuições dos filósofos Nancy Fraser, norteamericana, Axel Honneth, alemão, e Charles Taylor, canadense.
O primeiro e basilar princípio é a independência econômica para sobrevivência. Há, sob diversas modalidades e designações, esta renda mínima que permite a qualquer pessoa viver independente de outra. Aqui no Brasil, esta condição tomou o nome de Bolsa Família que tem sido criticada, apresentada com deformações, pelos interessados na manutenção da escravidão neocolonial. Esta condição se completa com a assistência à saúde que o Sistema Único de Saúde (SUS) tem perfeita condição de atender. É preciso deixar claro que apenas o Estado é capaz de manter estes programas. O mercado, pela simples exigência do lucro, inviabilizaria qualquer tentativa, principalmente numa economia dependente, como a brasileira.
A segunda condição para cidadania é do reconhecimento. Basilar nesta construção é o sistema educacional. Mais uma vez, apenas o Estado pode oferecer um ensino laico e independente de ganho financeiro, ocupando-se em proporcionar universal e integral educação. Junto a esta educação está o reconhecimento das diversidades de toda sorte: sexuais, étnicas, culturais, ideológicas, como as religiosas, etc. As diversas Secretarias e Ministérios que o golpista governo atual extinguiu bem mostra sua oposição à construção da cidadania no Brasil.
O terceiro elemento é político. Significa dar voz a todas as comunidades, a toda diversidade e ideias surgidas ou desenvolvidas no País. A empresa pública de comunicação tem este objetivo, daí ser sua virtual extinção um dos projetos dos atuais dirigentes. Deixar a comunicação social em mãos unicamente privadas significa a propaganda permanente de um único interesse, de uma única ideologia. Cass Sunstein (Republic.com, Princeton University Press, 2001) adverte para o perigo da comunicação privada ao relatar os problemas do Committe on the Public Interest Obligations of Digital Television Broadcasters: “objeto de um contínuo lobbying, intenso, violento e bem preparado para, invocando a Primeira Emenda, considerar inconstitucional toda e qualquer obrigação de interesse público”.
No País constituído de cidadãos, com as facilidades atuais dos sistemas de informação digital, bastaria sua permanente convocação para aprovar ou rever as normas, os procedimentos e as instituições que as aplicariam. Pode não ser suficiente, mas afastaria um problema desta “democracia” meramente legitimadora dos interesses dos poderosos, nacionais e estrangeiros, que chama o povo para escolher o que nem bem entende, sob pesada campanha publicitária.
CONCLUSÃO
Haverá espaço para um progresso democrático ou, como ocorreu com a burguesia francesa do século XVIII, enfrentaremos uma insurreição, talvez um terror. Quanto mais portas se fecharem, quanto mais repressão for aplicada tanto mais violenta pode ser a resposta. Concluo com Norberto Elias (O Processo Civilizador, vol. 1, Zahar, 1993) “Houve certo número de grupos claramente identificáveis de classe média que resistiram até o fim a qualquer tentativa de reforma e cuja existência, na verdade, estava ligada à preservação do ancien règime na sua forma original. Esses grupos incluíam a maioria dos altos administradores, a noblesse de robe, cujos cargos eram propriedade de família, no mesmo sentido em que uma fábrica ou empresa é hoje propriedade hereditária. Incluíam também as guildas de ofícios e, em bom número, os financistas. E se a reforma fracassou na França, se as disparidades da sociedade finalmente romperam de forma violenta o tecido da estrutura institucional do ancien règime, grande parte da responsabilidade coube à oposição desses grupos de classe média”.
*Pedro Augusto Pinho, avô, administrador aposentado