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quinta-feira, 28 março, 2024

DIGAM BOM-DIA AOS TALIBÃ-DIPLÔMATICOS

 O cofundador do Talibã, Mulá Abdul Ghani Baradar (centro) e outros membros do Talibã chegam para participar uma conferência internacional em Moscou, dia 18 de março de 2021. Foto: Alexander Zemlianichenko / AFP

Pepe Escobar, Asia Times

Uma reunião muito importante aconteceu semana passada em Moscou, virtualmente sem preparação. Nikolai Patrushev, secretário do Conselho de Segurança da Rússia, recebeu Hamdullah Mohib, Conselheiro de Segurança Nacional do Afeganistão.

Não houve vazamentos substanciais. Declaração branda apontou para o óbvio: [os Talibã] “focaram-se na situação de segurança no Afeganistão durante a retirada dos contingentes militares ocidentais e a escalada na situação político-militar na parte setentrional do país.”

A história verdadeira é muito mais nuançada. Mohib, representando o combalido presidente Ashraf Ghani, fez o melhor que pode para convencer Patrushev de que o governo de Cabul representa estabilidade. Não representava – como os avanços subsequentes dos Talibã provaram.

Patrushev sabia que Moscou não poderia oferecer qualquer medida substancial de apoio ao arranjo agora vigente em Cabul, porque esse movimento queimaria pontes que os russos precisam atravessar no processo de engajar os Talibã. Patrushev sabe que a continuação da Equipe Ghani é absolutamente inaceitável para os Talibã – seja qual for a configuração de qualquer acordo futuro de partilha do poder.

Assim sendo, Patrushev, segundo fontes diplomáticas, absolutamente não estava impressionado.

Essa semana, todos podemos ver por quê. Uma delegação do gabinete político dos Talibã foi a Moscou essencialmente para discutir com os russos o minitabuleiro de xadrez em rápida evolução no norte do Afeganistão. Os Talibã já estiveram em Moscou há quatro meses, com a troika estendida (Rússia, EUA, China, Paquistão), para debater a nova equação de poder no Afeganistão.


Secretário do Conselho de Segurança da Rússia Nikolai Patrushev.
Foto: AFP / Viktor Tolochko / Sputnik

Naquela viagem, garantiram enfaticamente aos interlocutores que os Talibã não têm interesse em invadir qualquer território de seus vizinhos na Ásia Central.

Não é exagero chamar os Talibã de raposas do deserto – se se considera a habilidade com que estão jogando com as cartas que têm. Sabem bem o que o ministro de Relações Exteriores Sergey Lavrov está repetindo: qualquer turbulência que venha do Afeganistão terá resposta direta da Organização do Tratado de Segurança Coletiva.

Além de destacar que a retirada dos EUA – na verdade, é um reposicionamento – representa o fracasso da “missão” afegã dos EUA, Lavrov tocou nos dois pontos realmente chaves:

Os Talibã estão aumentando a própria influência nas áreas da fronteira norte do Afeganistão; e a recusa de Cabul a formar um governo de transição está “promovendo solução beligerante” para o drama. Implica que Lavrov espera muito mais flexibilidade seja de Cabul seja dos Talibã, na tarefa de Sísifo que a todos nos aguarda, de partilhar o poder.

E então, aliviando a tensão, ao ser perguntado por um jornalista russo se Moscou enviará tropas ao Afeganistão, Lavrov respondeu como Mr. Cool: “A resposta é óbvia.”

Fala Shaheen

Mohammad Suhail Shaheen é o porta-voz bastante articulado do gabinete político dos Talibã. Diz claramente que “não é nossa política tomar o Afeganistão por força militar. Nossa política é encontrar solução política para a questão afegã, e está continuando em Doha.” Resumo da história: “Nós confirmamos mais uma vez, aqui em Moscou, o nosso compromisso com uma solução política.”

Está absolutamente certo. Os Talibã não querem um banho de sangue. Querem ser acolhidos. Como Shaheen destacou, seria fácil conquistar cidades grandes – mas haveria sangue. Enquanto isso, os Talibã já controlam virtualmente toda a fronteira com o Tadjiquistão.


Novo rosto dos Talibã: porta-voz dos insurgentes Mohammad Suhail Shaheen fala à imprensa em Moscou, dia 15/2/2021. Foto: AFP / Elena Teslova / Anadolu Agency

Os Talibã de 2021 pouco têm em comum com a encarnação de antes da guerra ao terror. O movimento evoluiu de uma guerrilha amplamente rural, predominantemente pashtun  [da tribo] Ghilzai, para um arranjo mais interétnico ao incorporar Tadjiques, Uzbeques e até Hazaras xiitas – grupo que foi perseguido sem mercê durante os anos 1996-2001 de poder dos Talibã.

É extremamente difícil que figuras confiáveis juntem-se, mas talvez 30% dos Talibã sejam hoje não pashtuns. Um dos principais comandantes é de etnia tadjique – o que explica a ‘guerra relâmpago soft’ no norte do Afeganistão também em território tadjique.

Visitei vários desses locais geologicamente espetaculares, no início dos anos 2000s. Os habitantes, todos primos, falam Dari e agora estão entregando as próprias vilas e cidades aos Talibã tadjiques, por questão de confiança. Poucos pashtuns de Kandahar ou Jalalabad estão envolvidos – talvez nenhum. O que ilustra o fracasso absoluto do governo central em Cabul.

Os que não se unem aos Talibã simplesmente desertam – como fizeram as forças de Cabul que controlam os pontos de passagem da ponte sobre o rio Pyanj, junto à rodovia Pamir; escaparam sem luta para o território tadjique. Os Talibã hastearam a própria bandeira nessa intersecção crucial, sem disparar um tiro.

O chefe do Exército Nacional Afegão, ENA, general Wali Mohammad Ahmadza, recém-chegado à função por indicação de Ghani, mantém ares de valente: a prioridade do ANA é proteger as principais cidades (até aí, tudo bem, porque os Talibã não as estão atacando); passagens de fronteira (isso, já não vai tão bem); e rodovias (até aqui, resultados mistos).

Essa entrevista com Suhail Shaheen é bastante iluminadora – ele se sente obrigado a destacar que “não temos acesso à mídia” e lamenta a barragem de propaganda “sem bases, contra nós”, o que implica que a mídia ocidental deve admitir que os Talibã mudaram.

Shaheen destaca que “não é possível tomar 150 distritos em apenas seis semanas, com luta”, o que se conecta ao fato de que as forças de segurança “não confiam no governo de Cabul.” Em todos os distritos que foram conquistados – Shaheen jura –, “as forças vieram voluntariamente para os Talibã.”


Coluna de fumaça sobe de casas em meio a combates entre as forças de segurança do Afeganistão e combatentes Talibã na cidade ocidental de Qala-i-Naw, capital da província de Badghis, dia 7 de julho. Os Talibã lançaram ali seu primeiro grande assalto contra capital de província, desde o início da retirada final das tropas dos EUA, do Afeganistão. Foto: AFP

Shaheen fez declaração que poderia ter vindo diretamente de Ronald Reagan em meados dos anos 1980s: “Os verdadeiros combatentes da liberdade são o “Emirado Islâmico do Afeganistão”. Aí está algo que pode ser o objeto de infindável debate em todas as terras do Islã.

Mas um fato é indiscutível: Os Talibã mantêm-se estritamente nos limites do acordo que assinaram com os norte-americanos em 29/2/2020, que implica retirada total dos norte-americanos: “Se não cumprem o que assinaram, temos claro direito a retaliar.”

Pensando adiante, “quando um governo islâmico estiver no poder”, Shaheen insiste que haverá “boas relações” com todas as nações, e que embaixadas e consulados não serão atacados.

“O objetivo dos Talibã é claro: pôr fim à ocupação”. E isso nos leva ao ardiloso gambito de tropas turcas “protegendo” o aeroporto de Cabul. Shaheen é cristalinamente claro. Para ele, “Nenhum soldado ou forças da OTAN (no Afeganistão), – porque isso significa continuação da ocupação”. “Quando tivermos país islâmico independente, então assinaremos algum acordo com a Turquia, que seja mutuamente benéfico.”

Shaheen está envolvido nas muito complicadas negociações em curso em Doha, portanto não pode comprometer os Talibã com acordos futuros de partilha do poder. O que diz é que, ainda que o progresso em Doha seja lento, e ao contrário do que foi previamente noticiado pela mídia no Qatar, se os Talibã não apresentarem proposta formal por escrito a Cabul até o fim do mês, as conversações continuarão.

Vão-se tornando híbridos?

Sejam quais forem as negativas-que-nada-negam tipo “Missão Cumprida” que emanam da Casa Branca, algumas poucas coisas já estão claras no front Eurasiano.

Os russos, por um lado, já estão engajando os Talibã, em detalhe, e podem em pouco tempo excluir o nome deles de sua lista de terroristas.

Os chineses, por outro lado, recebem garantias de que, se os Talibã comprometerem-se a se unir à Iniciativa Cinturão e Estrada, conectando-se via o Corredor Econômico China-Paquistão, ISIS-Khorasan já não terá licença para atacar o Afeganistão em tempo integral, reforçado por jihadistas Uigures atualmente em Idlib.


Soldados norte-americanos recebem as mochilas e malas de lona, depois de voltarem para casa ao fim de nove meses de serviço no Afeganistão, dia 10/12/2020, em Fort Drum, New York. Foto: AFP / John Moore / Getty Images

E nada está fora da mesa para Washington no que tenha a ver com fazer descarrilar a Iniciativa Cinturão e Estrada. Silos cruciais distribuídos no estado profundo já devem estar em operação, substituindo uma guerra sem-fim no Afeganistão por guerra híbrida, à moda Síria.

Lavrov sabe bem que há corretores de poder em Cabul que não dirão “não” a um novo arranjo de guerra híbrida. Mas os Talibã, por sua vez, foram muito efetivos – e impediram que facções afegãs variadas viessem a apoiar a Equipe Ghani.

Quanto aos “-stões” da Ásia Central, nenhum deles quer saber, para o futuro, de mais guerras sem-fim ou guerras híbridas.

Apertem os cintos: estamos entrando em área de turbulências.*******

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