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A violência é hoje um comércio amplo e lucrativo no Brasil, financiado amplamente pelo tráfico de entorpecentes. O panorama é aceito pelas autoridades, que se referem às facções criminosas como as grandes protagonistas na insegurança vista nas ruas. Assim, a descriminalização das drogas seria uma alternativa para destruir essas organizações?
A reportagem da Sputnik Brasil questionou policiais e representantes do Ministério Público e do Judiciário acerca do polêmico assunto, que passa ao largo das discussões sobre segurança pública no atual período eleitoral – o aumento de efetivos policiais e promessa de mais investimentos em equipamentos e pessoal dominam tal pauta entre os candidatos.
“A violência no Brasil inteiro é ligada ao tráfico de drogas, mas porque ele é um mercado que envolve muitas pessoas […] sendo o tráfico um comércio gigantesco, ele financia várias outras atividades. Comércio de drogas, o tráfico de drogas financia comércio de roupa, comércio de jogo, financia o comércio de coisas ilegais inclusive”, disse o juiz Luís Carlos de Valois, do Tribunal de Justiça do Amazonas (TJ-AM), à Sputnik Brasil.
De viés considerado progressista, o magistrado da Vara de Execuções Penais amazonense afirmou que as autoridades estão combatendo o tráfico “há 200 anos” e não vem dando resultado, a não ser “aumentar a violência”. Para ele, é preciso adotar uma nova abordagem, e isso passa obrigatoriamente pela descriminalização de entorpecentes.
“Entendo que a única saída para a diminuição da violência relacionada ao tráfico é justamente a descriminalização desse comércio e a regulamentação disso, porque hoje em dia as drogas estão na rua, todo mundo tem acesso a essas drogas sujas, misturadas, vendidas pelo mercado negro”, avaliou Valois.
“Verdadeiros traficantes não estão presos”
O juiz Valois é uma figura bastante conhecida no Judiciário nacional, seja pelas suas posições a favor da descriminalização de entorpecentes, seja pela sua participação durante a rebelião no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em janeiro de 2017, quando 56 detentos foram mortos em uma retaliação da Família do Norte (FDN) contra o Primeiro Comando da Capital (PCC).
“O Estado isolou determinados presos que ele dizia que era de uma facção, isolou dos outros, só que estes presos tinham contato uns com os outros. Aí no dia a dia era um xingando o outro, falava da mãe do outro, falava do pai do outro, falava que ia pegar a mulher do outro, falava que ia pegar a mãe do outro, ficava naquilo dia a dia. Mais de 6 meses ficava naquele negócio de ficar xingando, um ameaçando o outro. Quando um grupo conseguiu sair, fez uma chacina, matou o outro”, relembrou o juiz, chamado à época para negociar com os amotinados.
O magistrado, aliás, é contrário à reconhecer e supervalorizar a existência de facções criminosas. Dizendo não fazer distinção de presos, algo que não é o seu papel, Valois reforçou que muitas vezes nem mesma a Polícia Civil comprova a ligação de determinados criminosos com famosas organizações criminosas. E quem mais perde é a sociedade.
“Não posso legitimar uma facção criminosa no meu trabalho. Eu sou juiz de Direito. Quando estou em uma penitenciária, preso é tudo igual […] por isso que eu digo: quadrilha, associação de criminosos, isso sempre existiu na História. Quando a gente começa a legitimar isso com nomes, com nomenclaturas […] a gente nunca vai acabar com isso”, pontuou.
O juiz argumentou ainda que, pior do que a publicidade e a organização que a polícia e a imprensa propiciam, de acordo com ele, para bandidos que sempre operaram em benefício próprio, como uma gangue, é o fato de que os grandes traficantes, as verdadeiras forças por trás do narcotráfico, continuam soltas, na ruas, seja em iates, jatinhos ou helicópteros.
“Não significa necessariamente que estejam prendendo os traficantes realmente, os verdadeiros traficantes. Coisa que a gente sabe que não é [verdade]. As penitenciárias estão lotadas de pessoas pobres e miseráveis […] há uma seletividade muito grande nesse combate às drogas que recai no pobre, no negro. É impressionante isso. Então quer dizer, nós temos um sistema penitenciário lotado de pessoas pobres, negras, mulheres. Talvez um mecanismo de poder, um mecanismo de Estado que seja útil nessa guerra às drogas, mas não é algo justo”, comentou Valois.
Drogas, educação e saúde
Ainda em sua defesa da descriminalização, o juiz do TJ-AM avaliou que as sempre alardeadas apreensões de entorpecentes – no Amazonas foram pouco mais de 6 toneladas apenas em 2018 – na verdade representa um quinhão diminuto quando se considera o amplo mercado coordenado pelo tráfico transnacional de drogas. E citou os Estados Unidos para explicar o seu ponto de vista.
“Segundo estatísticas, só 2% da droga que entra nos EUA é apreendida. 2%! Se estão prendendo isso [lá], no Brasil, com a polícia com as condições muito piores do que a norte-americana, com as fronteiras muito menos vigiadas que a norte-americana, com financiamento de segurança pública muito menor, com financiamento do sistema penitenciário muito menor… se 2% é apreendido nos EUA, imagina quanto não é esse comércio se tudo isso está sendo apreendido no Amazonas. Quer dizer, é um negócio muito maior. Muito maior”, justificou.
“Outra coisa, o tráfico nunca tem prejuízo, isso é lógico. Por quê? Quando se apreende uma droga, ele pega outra droga, mistura e faz a mesma quantidade da outra que foi apreendida. Aumenta o preço, isso é fácil, é fato no comércio”, acrescentou. Tal mentalidade, segundo Valois, só tende a aproximar o Brasil de realidades violentas que envolvem o narcotráfico, como a do México.
Assim, além de descriminalizar e regulamentar as drogas, o Brasil deveria investir amplamente em educação e saúde. Estes seriam os antídotos para combater o tráfico e, consequentemente, a violência que impera no país hoje.
“Enquanto a gente não pensar em uma sociedade que pense efetivamente na população, vamos ficar nesse círculo vicioso de mais penitenciária, mais armamento, mais viatura, e [menos] educação, saúde, saneamento básico… os próprios rios da Amazônia são abandonados, sem saneamento básico. Nas cidades do interior do Amazonas não há nenhuma biblioteca, só para ter uma ideia. Nenhuma cidade do interior do Amazonas tem saneamento básico. Eles vivem no esgoto. É um absurdo”, comentou.
Educação e saúde também são fundamentais quando envolvem o uso medicinal da maconha, segundo Valois. Ele vê como um retrocesso o fato do país importar canabinol, substância que ajuda uma série de enfermidades, e seguir prendendo pessoas que tenham consigo um cigarro de maconha, caracterizando-as como traficantes de drogas.
O magistrado vê tal lógica como algo maior, em benefício do que ele chama de “comércio internacional”. “Quer dizer, nós estamos comprando vários produtos, remédios originários da cannabis e aqui prendendo um pobre que planta uma planta em casa para fazer um chá para a filha que tem asma ou qualquer coisa parecida. Existe um momento político brasileiro de tratar a coisa pública brasileira como algo negociável com o exterior e isso não tem sido favorável para a população”.
“Nós temos um equívoco muito grande. Isso que você falou sobre a sociedade achar que deve-se combater a criminalidade, deve-se combater a corrupção, quando se combate a criminalidade e a corrupção com educação, com saúde, com saneamento básico como eu falei. Quer dizer, esse discurso do ódio, nós temos o candidato com a maior intenção de voto e o seu slogan é ‘bandido bom é bandido morto’. Isso cria um clima na sociedade que atinge inclusive o bandido porque ele tem mulher, tem filho, então existe um clima de ódio, de matar, de dar tiro, de não sei o que, é de revidar, é das pessoas andarem armadas. É um caminho meio equivocado nisso aí”, complementou.
“Não vai evitar a violência”, diz procurador
A ideia de descriminalizar entorpecentes no Brasil é controversa e não teve o mesmo apoio junto a outras autoridades ouvidas pela Sputnik Brasil. Para o procurador Márcio Sérgio Christino, do Ministério Público de São Paulo (MP-SP), a ideia no país teria apenas “efeitos periféricos”, sem consequências positivas e concretas para desmantelar facções criminosas.
“A descriminalização que hoje tanto se fala se refere unicamente à maconha, mas o grande problema internacional é a cocaína, o crack e a heroína. E nem sequer se cogita de uma legalização desse tipo, nem os mais radicais, porque o grau de dano que esse tipo de droga causa é tão grande que não há justificativa para você admitir a incorporação disso como um hábito. A descriminalização da maconha vai trazer efeitos meramente periféricos, não vai evitar a violência, não vai evitar a acumulação de riqueza por parte das organizações criminosas, não vai diminuir o consumo da droga e nem os seus danos”, avaliou.
Outro que não acredita que descriminalizar e regulamentar drogas no Brasil seja a resposta é o delegado federal Marcos Vinicius Meirelles Menezes, responsável pela Polícia Federal (PF) em Tabatinga (AM), na Tríplice Fronteira do Brasil com a Colômbia e o Peru – estes dois países produtores de cocaína e maconha que acabam entrando em solo brasileiro.
De acordo com Menezes, o uso de estradas e rios do Brasil para o escoamento de entorpecentes não se dá necessariamente por um amplo mercado consumidor, mas sim pela facilidade do envio de drogas para o exterior, sobretudo Europa e África – portos e aeroportos compõem o espectro de infraestrutura não encontrado em outros países sul-americanos.
Assim, conforme explicou o delegado da PF, descriminalizar as drogas no Brasil não impediria que o país seguisse sendo uma importante rota para países que sigam criminalizando maconha e cocaína, e que pagam em moeda estrangeira (euro ou dólar). O grande mercado consumidor do exterior seguiria fazendo girar a roda do crime organizado.
“Já pensei nesse assunto por diversas vezes. O grande problema de descriminalizar é que essas drogas, principalmente a cocaína, é que ela é um entorpecente que gera dependência muito rápido. Então dificilmente se fizer, por exemplo, uma liberação da droga a gente vai ter um efeito contrário do que se imagina. De repente a gente vai tornar uma grande multidão viciada no entorpecente porque vai ser comum, como o uso do álcool. Só que o álcool nem sempre causa dependência. Grande das pessoas que utilizam álcool não vão se tornar dependentes. Dificilmente quem utilizar cocaína não se tornará um dependente”, declarou o major Pedro Moreira, comandante da Polícia Militar em Coari (AM), a “Capital dos Piratas” do rio Solimões.
Ciente de críticas contra o seu posicionamento e questionado sobre a experiência uruguaia com a descriminalização da maconha – segundo a mídia local, a disputa pela venda de cocaína no país estaria por trás do aumento da violência –, Valois reconheceu que também se trata de um país de trânsito de entorpecentes, o que impede que o narcotráfico acabe efetivamente.
Todavia, isso não impede que ele insista que essa é a única saída para combater “uma substância impossível de se exterminar do mundo”. Valois completa que, na sua opinião, hoje está mais fácil a um menor de idade comprar maconha do que cerveja no Brasil.
“Regulamentaram o álcool e hoje tem todo um regramento para comprar álcool, a idade, tudo… a droga não, o cara chega para comprar maconha, o menor de idade, não tem maconha ainda vende cocaína para ele. É um absurdo muito grande a gente entregar esse comércio para o crime organizado, para o mercado paralelo. A solução é a educação mesmo, é falar sobre isso, discutir sobre isso, evoluir politicamente sobre isso”, ressaltou o juiz.
Enquanto isso não evoluir, a tendência é que a violência e os assassinatos registrados diariamente em larga escala em estados do Norte e Nordeste do Brasil, além de cidades como o Rio de Janeiro – em comum, todas são alvos de disputas por pontos de comercialização de entorpecentes – não diminuam, com recordes anuais (foram 62.517 mortos em 2016, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública).
“Hoje em dia um traficante mata o dono de outro comércio de drogas, ou mata um consumidor que não pagou, porque ele não pode ir a um instituto do consumidor, ele não pode ir até uma vara para cobrar daquela pessoa. O próprio comércio, quando ele é ilegal, busca formas ilegítimas de se garantir, de se legitimar financeiramente. Então a violência vem como substituto do Estado para garantir o funcionamento daquele comércio”, afirmou.
“Marcola e Fernandinho Beira-Mar têm helicóptero?”
Outro serviço que a descriminalização faria pelo país, segundo o magistrado, seria colocar os reais traficantes de drogas atrás das grades, aqueles que “andam de jatinho, de iate e de helicóptero”, e que acabam não sendo alvo das autoridades brasileiras com a mesma ênfase que os mais pobres, geralmente negros e que vivem em comunidades carentes.
“Tudo passa pela descriminalização e regulamentação de todas as drogas, desmantelar tudo isso que há de criminalidade, principalmente a do mercado financeiro internacional que anda de helicóptero, anda dentro de jatinho, porque as drogas estão andando dentro de jatinho, estão andando de helicóptero. O Brasil mesmo tem exemplo de 500 kg de cocaína dentro de helicóptero [em 2013]. Todos esses traficantes que estão presos no Brasil, nenhum deles, nem os de penitenciária federal, Fernandinho Beira-Mar [chefe do Comando Vermelho], Marcola [Marcos Willians Herbas Camacho, líder do PCC], têm helicóptero. Mas houve um helicóptero no Brasil pousando com meia tonelada de cocaína. Então alguma coisa está errada nisso aí. Os traficantes são outros”, concluiu o juiz.