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segunda-feira, 22 dezembro, 2025

Derrite e a nova guarda da velha ordem

Por: Geraldo Lopes de Souza Júnior

“Pai, afasta de mim esse cálice.”

(Chico Buarque)

Caboco, nessa correria em que a gente vive, notícia de semana passada já tem cheiro de peixe esquecido na geladeira. A chacina do Rio, por exemplo, já está virando assunto velho, empurrado pra debaixo do tapete como quem varre a sala só até onde o sofá cobre. A sociedade líquida do Bauman não deixa nem o café esfriar — imagina então esperar investigação séria.

Pois me dá licença, parente, que eu vou remar contra essa maré rasa. Quero voltar a um acontecimento que não se esgotou, não, senhor. E que continua tirando o sono de muita gente: o medo diário, a tortura psicoemocional das vítimas, aquelas que sobram vivas pra carregar a memória.

Mas quem são mesmo os culpados, caboco? Os verdadeiros. Porque os chefes continuam aí, firmes e secos, sentados em cadeiras acolchoadas, de terno passado e consciência lavada com Veja. Nenhuma condenação, nenhuma devolução, nenhuma vergonha na cara. O sangue do asfalto secou, mas a mancha moral ficou grudada, igual chiclete pisado em calçada quente.

As vítimas — estudantes, trabalhadores, gurizada voltando pra casa — foram executadas como quem risca nome de lista. O requinte de crueldade foi tanto que até a morte ficou pequena diante da maldade. Jogaram corpos pelo caminho como bilhetes escritos em carne, para o medo falar mais alto que qualquer juiz. E sem contar os que sumiram — que no Brasil, caboco, sumir é verbo transitivo direto: sumiram alguém.

E quem puxou o gatilho? Não foi bandido de esquina, não. Foram homens fardados de civismo, com a moral pendurada no coldre e a hipocrisia carregada na bala. Gente de culto religioso no domingo e indignação nas redes sociais, que grita que “bandido bom é bandido morto”, mas esquece de avisar que no caso o bandido veste farda e assina ponto.

E no meio desse lamaçal de versões e narrativas, tivemos espetáculos cômicos — se não fossem trágicos — como o protagonizado pelo Derrite, que tentou tirar a Polícia Federal das investigações, como quem esconde o pano sujo atrás do sofá antes da visita chegar. Um gesto tão desesperado que parecia até criança dizendo “não fui eu” com a boca suja de chocolate. Caboco, quando até investigar vira ameaça, é porque alguém tem muito medo do que pode aparecer no relatório.

O clima que ficou foi de tensão e silêncio. As famílias, em vez de acolhidas, foram culpabilizadas: “Devia estar no lugar errado”, “andava com gente suspeita”, “não era santo”. A velha inversão brasileira — onde o oprimido é julgado e o opressor é protegido — continua firme, blindada por discursos e privilégios.

O crime, no entanto, comoveu parte da sociedade. Alguns artistas, inconformados, levantaram a voz e transformaram a dor em melodia. Cantaram o absurdo, denunciaram a barbárie. Mas, como sempre, quem canta a verdade desafina o sistema. Foram perseguidos, censurados e até chamados para depor em comissões parlamentares que se dizem morais — como aquela tal CPI do Pancadão, onde Rubinho Nunes criminaliza o batuque, o corpo e o grito.

E, pra piorar, caboco, não é só uma guerra interna. Essa engrenagem da violência teve mãos estrangeiras. Há ajuda vinda de fora, tecnologia importada e interesses que passam longe das vielas e dos becos onde as balas fazem eco. É uma guerra global travada em território pobre, com sangue brasileiro financiando o lucro internacional.

Mas e se, caboco, o que chamamos de chacina for apenas o sintoma de uma guerra muito mais antiga? E se os tiros de hoje forem ecos de um disparo que o Brasil nunca deixou de ouvir?

Os motivos

Guerra nenhuma nasce do nada. Toda bala vem de um silêncio armado lá atrás. Antes do gatilho, tem trama, tem bastidor, tem medo. Medo de perder território, dinheiro, mando — e, de quebra, perder o controle sobre o povo, esse bicho perigoso quando resolve pensar.

Vivemos uma crise de legitimidade que parece terceira dose vencida. Instituições que deveriam proteger acabam servindo a si mesmas e aos patrocinadores. E o poder, acuado pela polarização, inventa inimigos como quem inventa desculpa pra faltar ao trabalho.

A elite econômica — agrária, industrial, financeira — perdeu o sono quando sentiu que o jogo podia virar. Chamaram políticas de redistribuição de “populismo”, como se pão e moradia fossem pecados. O medo não era do prejuízo, mas da perda do privilégio. Território, caboco, não é só terra: é mando, é palanque, é lucro.

Quando as reformas estruturais chegaram perto de acontecer, levantaram a muralha da reação. Jornais, igrejas, quartéis, escritórios de advocacia: tudo unido pelo pavor de que o povo ganhasse voz. O espantalho do “modelo cubano” virou senha para golpe, esse velho conhecido.

Do outro lado do mapa, o tio Sam já lustrava o coturno. A Operação Brother Sam foi a garantia de que a “liberdade” viria com escolta estrangeira — liberdade pros de cima, claro.

Enquanto isso, o povo se movimentava. Trabalhadores, estudantes, camponeses, artistas: tudo pedindo o básico. A elite respondeu com missas e marchas, rosário na mão, medo no peito. As Marchas da Família com Deus pela Liberdade desfilaram como escudo moral para um golpe anunciado.

A mídia fez o serviço completo. O Globo, O Estado… chamaram o golpe de “revolução democrática”. É como chamar enchente de benção. Reescreveram a tragédia, transformaram torturadores em patriotas e vítimas em subversivos.

No fim, os motivos eram os mesmos de sempre: poder, lucro e medo.

O desfecho

Pois o crime de que te falo, caboco, não foi obra do PCC ou do CV — foi orquestrado em gabinetes, sob o nome de golpe militar empresarial de 1964.

O silêncio, no entanto, nunca foi sinônimo de paz. O golpe deixou marcas profundas, que ainda hoje latejam no corpo da nação. As sequelas não se apagaram com o tempo: estão nas instituições que herdaram a lógica da força, nas polícias treinadas para reprimir o pobre, e na política que ainda teme a voz do povo.

A impunidade prevaleceu. Torturadores morreram sem julgamento, cúmplices seguiram nas cúpulas do poder, e o Estado jamais pediu perdão de verdade. O país fingiu reconciliar-se com sua história, mas preferiu esquecer — e o esquecimento, caboco, é a pior forma de conivência.

E eu te pergunto, parente: o que deveríamos fazer com esses criminosos que mataram e torturaram em nome da ordem? Deixá-los dormir em paz sob medalhas e homenagens, ou despertar o país para exigir a justiça que nunca veio?

Porque, enquanto o Brasil não responder a essa pergunta, continuará prisioneiro de seus algozes.

Caboco, dizem que o tempo cura tudo, mas o tempo não cura o que o país se recusa a encarar. As feridas do golpe continuam abertas, disfarçadas em fardas novas, discursos modernos e manchetes recicladas. O que mudou foi o uniforme — o autoritarismo segue o mesmo, de terno, toga ou microfone na mão.

Enquanto o Brasil não julgar seus algozes, continuará condenado a repetir seus fantasmas. E nós, parente, seguiremos varrendo o sangue invisível das calçadas, tentando não tropeçar na memória que eles querem apagar.

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