Emiliano José
Todos se recordam do caso momentoso do técnico Edward Joseph Snowden, ex-administrador de sistemas da CIA e ex-contratado da NASA: tornou públicos detalhes de vários programas do sistema de vigilância global da NASA americana. Acusado de vários crimes relacionados à defesa nacional dos EUA, Snowden foi o autor da denúncia das escutas de que foi vítima a presidenta Dilma Rousseff, além de demonstrar o monitoramento de servidores da Petrobras. Teve asilo político concedido pela Rússia. Não fosse isso, e estaria numa prisão nos EUA, condenado a não se sabe quantos anos.
Julian Assange com a Wikileaks, revelou dados sobre o ataque aéreo a Bagdá em 12 de julho de 2007, a guerra do Afeganistão e do Iraque e o CableGate, em novembro de 2010. Esses dois personagens fizeram vir à tona tema dos mais relevantes: o direito da cidadania de conhecer acontecimentos do subsolo do poder, a afetar diretamente pessoas, nações, direitos. Dito de outro modo, nesses casos, como acontecem as ações criminosas do império americano, só reveladas quando surgem personagens como Snowden e Assange.
O jornalismo tradicional mostra-se absolutamente incapaz de fazer tais revelações, por incapacidade e no mais das vezes por cumplicidade, por compartilhamento de ideias com as classes dominantes e com as máquinas de guerra de tais classes. Assange, como se sabe, aguarda decisão sobre ir ou não para os EUA, e lá, se for, morrer na prisão. Ele e Snowden são heróis desses tempos. Insista-se: personagens capazes de deixar o rei nu, o jornalismo tradicional sem nada a dizer. Heróis da luta pela liberdade de expressão, de desmascaramento das entranhas do poder político, econômico e militar do Império, do funcionamento do terror sob o capitalismo hegemônico.
Foi o caso, como diria o jornalista Luís Nassif, da Vaza Jato e do trabalho do hacker Walter Delgatti. Com a singela diferença de, no caso de Delgatti, não se colocar em risco nem segurança, nem soberania nacional. A Vaza Jato desvendou a atuação de uma organização criminosa, trabalhando em parceria com entidades estrangeiras para destruir a economia nacional, entregar o País a interesses internacionais, de modo especial nas mãos dos EUA, como hoje largamente conhecido.
Além de ter propiciado a demonstração da escandalosa atuação do juiz Sérgio Moro e do então promotor Deltan Dallagnol, ex-deputado federal, empenhados na condenação do presidente Lula, reconhecidamente inocente. A revelação de tais crimes por parte da Lava Jato, capitaneada por Moro, revelação feita por Delgatti, possibilitou a abertura do caminho para a liberdade de Lula e para a chegada dele à presidência da República, em 2022, eleito pelo povo brasileiro. Este, o sumo da atuação do hacker, aquilo que poderíamos denominar méritos históricos. Se quisermos um pouco mais de tempero, talvez seja o caso de o leitor procurar o depoimento dele à CPI dos Atos Golpistas recentemente, quando ele chama Moro de criminoso contumaz.
Agora, o juiz Ricardo Leite condena Delgatti a 20 anos de prisão. Diria: condenado não por seus defeitos, mas por seus méritos. Por revelar a atuação de organização criminosa voltada à condenação de inocentes, à assunção de um genocida ao poder, à entrega do País aos interesses de uma potência estrangeira. Por isso, condenado.
Nassif qualifica Leite como um “quadro menor” da Lava Jato, capaz de tomar decisões em casos que fugiam inteiramente à alçada dele, de modo a atuar politicamente, isso no auge da campanha da organização criminosa de Curitiba, hoje em absoluto descrédito. A decisão do juiz de mandar soltar Delgatti antes do depoimento na CPI e, logo depois, condená-lo a 20 anos, “mereceria ser melhor analisada”, na opinião de Nassif.
Se a imprensa aceitar passivamente a condenação de Delgatti comprometerá o papel dela de fiscalizar, de ser protagonista na limitação dos grandes conglomerados públicos e privados, especialmente nesses tempos de controle digital sobre a população. Penso isso, e é mais ou menos o pensamento também de Nassif.
E infelizmente, diante da decisão do juiz, não se lê uma palavra, não se ouve uma única voz denunciando perseguição. Talvez, quem sabe, porque se criticar a condenação de Delgatti, passa o recibo do vergonhoso comportamento dela durante toda a Lava Jato, quando foi rigorosamente pautada por ela. Por isso, prefere ser cúmplice de novo absurdo.
É um procedimento comum da mídia empresarial, não exclusivo da brasileira. Agiu assim com relação a Snowden e Assange. Claro, a mídia, com a notória hipocrisia dela, pode argumentar, apontar erros ou movimentações erráticas de Delgatti Pode arguir a relação posterior dele com a deputada Zambelli, com Bolsonaro, com o ministério da Defesa. Nem discuto isso aqui. Porque nada disso muda o fato histórico da intervenção dele na cena brasileira, a abrir caminhos para a demolição da Lava Jato e para a volta do presidente Lula à cena política. Creio: a pena de 20 anos por absurda não persistirá. Mas ela é reveladora do clima de vingança de uma parte do judiciário ainda saudosa da Lava Jato.
Referências
ASSANGE, Julian. Wikipédia, consulta em 22/8/2023
JUIZ condena Delgatti a 20 anos de prisão no caso que deu origem à Vaza Jato. Carta Capital, 21/8/2023
NASSIF, Luís. Delgatti é um novo caso Assange. GGN, 22/8/2023
SNOWDEN, Edward. Wikipédia, consulta em 22/8/2023.