A EXPRESSÃO ECONÔMICA NA CIDADANIA
Pedro Augusto Pinho*
Amartya Sen, Prêmio Nobel de Economia, relata evento de sua infância, quando residia na capital de Bengladesh. Um diarista muçulmano foi assassinado por ter procurado trabalho na comunidade de indus, que sua família miserável chamava zona hostil e sua esposa pedira que evitasse. Mas sua pobreza extrema o obrigava a buscar recursos com o risco da própria vida.
Confunde-se, frequentemente e talvez até intencionalmente, a renda per capita com a qualidade e a autonomia de vida. É a consequência do modelo consumista e perdulário, hoje também chamado não sustentável, que foi desenvolvido e exportado pelos Estados Unidos da América (EUA). Há um muito expressivo cartaz, próximo ao aeroporto de Havana, onde se lê, mais ou menos, esta frase: esta noite milhões de crianças dormirão com fome, nenhuma é cubana.
Busca-se, na expressão econômica da cidadania, garantir que todos habitantes do burgo contemporâneo, do Estado Brasileiro, não sofrerão humilhação, maus tratos, ou emprego em condições semelhantes a de escravo, por insuficiência econômica. A todos será garantido o mínimo necessário para sua sobrevivência e dos que vivem sob sua dependência, pela idade ou por qualquer tipo de incapacidade.
Recordemos um princípio básico da cidadania, que vem desde a antiguidade clássica, o da participação. Mas esta participação nunca poderá ser desigual numa sociedade que se quer democrática; é imperiosa a paridade da participação. Um primeiro passo desta paridade é a liberdade econômica, a possibilidade de existir sem constrangimento de seus “pares cidadãos”. Paridade, e disto trataremos também nas outras expressões, é ser um par, ser um igual em vida, em gênero, em raça, em direitos políticos e de expressão. Paridade aqui tem o conteúdo econômico.
Existe em todo mundo experiências e discussões em torno da renda mínima. Nem é uma ideia contemporânea. Thomas Morus, humanista e homem de Estado, símbolo de dignidade do período renascentista; Nicolas de Condorcet, marquês, matemático, filósofo, ideólogo da Revolução Francesa; John Stuart Mill, Bertrand Russell e tantos outros pensadores, que se interessaram sobre a questão do homem, sugeriram algum tipo econômico de garantia de vida, proporcionado pelo Estado a seus cidadãos. Mais recentemente, neste século, partidos políticos, movimentos sociais, os próprios governantes, em certos momentos, apresentaram projetos e propostas neste sentido, como na Alemanha (renda básica), na Espanha (renda mínima incondicional), na Finlândia (rendimento básico para segurança social), em Portugal (imposto negativo universal) e até nos EUA, com Milton Friedman, monetarista e privatista, que defende (Capitalismo e Liberdade) um tipo de renda de sobrevivência aos cidadãos, sempre dentro de seus países. Há, inclusive, um movimento privado, na Bélgica, de renda mínima por questões de segurança, para uma pequena comunidade flamenga, que o desastre neoliberal certamente demolirá, se, quando escrevo estas reflexões, já não o fez.
No Brasil, a Plataforma de Bolsa Família tem, entre suas quatro situações de ingresso, dispor o beneficiário de renda familiar, por pessoa, no valor até R$ 77,00 ou, havendo menores, até R$ 154,00. Esta plataforma se comunica com o sistema educacional e com o programa habitacional para população de baixa renda. Ao lado desta Plataforma, há um programa de emprego e outro sistema que completa a garantia de paridade participativa, da liberdade cidadã: o Sistema Único de Saúde (SUS).
Estes projetos brasileiros são um excelente exemplo de construção da cidadania sob a expressão econômica, onde estão asseguradas a condição mínima de sobrevivência e da manutenção da saúde.
Como é óbvio, apenas o Estado pode e deve ser responsável pelo programa, sendo a sociedade civil, através de suas organizações, um fiscal de sua execução.
Sem dúvida que perspectivas neoliberais, que nunca se interessam pelos cidadãos de carne e osso, mas por uma ficção de consumista e investidor, reagem a esta obrigação da sociedade; nem tão moderna, como já vimos, mas indispensável ao humanismo do século XXI. A filósofa norte-americana Nancy Fraser (A justiça social na globalização: redistribuição, reconhecimento e participação, 2002) coloca a distribuição de recursos materiais como condição objetiva para a paridade de participação, ou seja, para a construção do ser cidadão. Reconhece Fraser a disparidade do meio como um empecilho à paridade, mas é o desafio que os Estados, em sua necessária ação pela cidadania, devem investigar e encontrar soluções.
Entendo que colocar qualquer empecilho a estes projetos representa uma declaração de guerra aos habitantes do País, uma atuação verdadeiramente hostil à própria dignidade humana e a construção de uma pátria soberana.
A EXPRESSÃO PSICOSSOCIAL NA CIDADANIA
A dimensão psicossocial da cidadania, também denominada condição intersubjetiva, é das mais complexas expressões da cidadania, pois envolve padrões de valores culturais e percepções subjetivas distintas. É a que tem maior riqueza de tratamentos e mais volumosa bibliografia. Faremos alguma redução para estas reflexões.
Inicialmente uma ressalva, como coloca Nancy Fraser para o que denomina paridade participativa ou formação cidadã; nem a condição objetiva, a expressão econômica, nem a intersubjetiva, a expressão psicossocial, são, sozinhas ou isoladamente, suficientes. Também não o será a expressão política. O Projeto Cidadão é uma articulação das três dimensões, simultaneamente.
Muito do que se tem nesta expressão aparece sobre o conceito de reconhecimento. O reconhecimento pode ser considerado uma solução para a injustiça social, como no exemplo do apartheid da África do Sul, a cidadania universal “não racial”, ou do Estado Plurinacional da Bolívia. Mas esta ideia também traz o entendimento de distinção. E temos então um complicador para crucial questão das diferenças. Se de um lado é necessário que categorizemos as culturas, os gêneros, as raças para que, igualmente, paritariamente, atuem como cidadãos, não o podemos fazer sem que as identifiquemos e, assim, aplicaremos uma distinção. Nancy Fraser fala de uma esquizofrenia filosófica, ainda mais que estará implícito, no reconhecimento, questões de justiça e de ética. Situações ideais encontram nesta sutilíssima formação cidadã empecilhos, fruto das próprias auto referências e internalizações culturais.
Geralmente, e o Brasil já teve esta experiência, criam-se esferas administrativas específicas para tratamento de questões de raça e de gênero. É sempre um avanço, mas insuficiente para as condições operacionais de um Estado. Há na literatura dois marcos significativos: Pierre Bourdieu, francês, e Jessé Souza, brasileiro. Transcrevo de Jessé Souza, sobre capital cultural (Pierre Bourdieu: pensador da periferia?, 2007): “ são esses capitais passados de pai para filho que são tornados invisíveis na ideologia do “mérito individual”, como se o mesmo fosse uma “conquista individual” e não uma construção social por meio da classe social transmitida afetivamente pelo convívio familiar”.
E, entramos assim, numa outra complexa questão da pedagogia para cidadania. Não se trata tão somente de uma formação intelectual, da transmissão de um conhecimento e da busca ou pesquisa de soluções científicas e tecnológicas, menos ainda de um adestramento operacional. Cuida-se da integral formação dos brasileiros para o exercício consciente e moral da cidadania.
É relevante verificar que forças antinacionais, com pretextos ridículos de ideologização, como se não o fosse qualquer pensamento religioso, querem excluir a noção crítica, indispensável na formação da cidadania. Caso contrário estaríamos formando uma legião de robôs, não de cidadãos.
O tratamento cultural é, igualmente, amplo e fundamento de uma atitude valorativa da nacionalidade. Acusa-se o complexo de viralata dos brasileiros, mas num processo didático, onde se valoriza o bem estrangeiro e desvaloriza o nacional, este é uma consequência inevitável. Veja-se que não se está criando com esta ênfase cultural qualquer xenofobia. Recordemos que a França, em diversas e recentes decisões, legislou em favor da língua e da cultura francesa, orgulho de seus nacionais.
Cuidemos, agora, de questões mais personalizadas da expressão psicossocial. Ao optar por programas ou projetos que, claramente, são opostos à construção da cidadania, à liberdade do século XXI, escolhendo o chamado “voto conservador”, esta pessoa, na verdade, está fugindo da liberdade, do individualismo responsável. E nesta fuga, evitando autoflagelar-se, apresentará as desculpas da “sociedade permissiva”, da “escola partidária”, do ridículo “que sempre foi assim”, quando não de uma pretensa e inexistente isenção.
A cidadania não é unicamente um bônus, ela acarreta o ônus participativo. Não se pode exigir, muito menos considerar que, mesmo num exitoso projeto de cidadania, todos sejam entusiastas participantes. Haverá sempre os que, pela própria distinção (Pierre Bourdieu) da formação mais íntima, por acatamento a ideologias, por mecanismos da psicologia social pouco inteligíveis, ou quaisquer motivos se insurgirão em enfrentar as opções, as escolhas da cidadania. Isto deve e certamente será tratado dentro da normalidade estatística e a expressão política mostrará a significância da dissidência. Na medida que ela for expressiva, as próprias normas sociais estarão sendo revistas, conforme esta representatividade. Cidadania não é um fim, é um processo, e creio que, em seu entendimento, isto deve ter ficado claro.
Ao fim, duas questões desafios. Encontrar uma orientação coerente e inclusiva que integre redistribuição (economia) e reconhecimento (psicossocial). E desenvolver uma estrutura operacional permeável e transparente, que se refaça na evolução do Projeto e não se cristalize na arrogância decisória.
A EXPRESSÃO POLÍTICA NA CIDADANIA
A primeira e fundamental questão é a expressão do cidadão. Isto significa que o modelo de comunicação nunca poderá estar em mãos privadas oligopolistas ou, pior ainda, monopolistas. Ainda mais, o sistema de comunicação de massa não deve ser de empresas privadas, mas de fundações sem fins lucrativos, empresas públicas ou de controle comunitário, mas sempre nos limites da comunidade que o gerencia. Em outras e resumidas palavras, um sistema Globo de Comunicação é totalmente oposto à formação da cidadania.
Vejamos o que significa, nos EUA, o domínio de um sistema privado, comercial de comunicação de massa. Nos anos 1940 e seguintes, os EUA lutaram contra o Japão, a Coreia e o Vietnam. Nos filmes, histórias em quadrinhos e até romances que eram lá difundidos e até exportados, vendia-se a imagem dos orientais traidores, vis, sempre atacando covardemente os demais. Hoje, identicamente, aparecem os árabes, de turbantes, como os personagens do mal, os terroristas.
Creio que uma das variáveis que conduziu Donald Trump à vitória foi o mito, muito difundido e mantido pela comunicação de massa, do herói, do mocinho que luta, de peito aberto, sem concessões, contra os bandidos e, sempre, vence. Toda filmografia do western está calcada neste herói, que é o exemplo da infância e o desejo do adulto. Aqui no Brasil, parte expressiva de toda população acredita que apenas um messias poderá salvar o Brasil, o que vem da Colônia e é reproduzida pela mídia, gerando Jânio Quadros, Fernando Collor e, mesmo, Lula.
O modelo de comunicação de massa para expressão política na cidadania deverá ser estudado e não é de simples definição: deve atender às condições regionais, comunitárias, a segurança nacional, a representatividade cultural e de minorias, e muitas outras questões, mas, em hipótese alguma, deverá ser privado e empresarial. Enquanto uma cooperativa de jornalistas e colaboradores, o jornal francês Le Monde foi um exemplo e referência para divulgação e análise das notícias. O neoliberalismo o destruiu.
Coloquei a comunicação de massa também no universo da defesa nacional e, ainda que não esteja sob sua única tutela, esta atividade do Estado deve participar do modelo e da supervisão da sua execução.
Outra questão da política na formação cidadã diz respeito à participação mais intensa nas decisões cotidianas. Dou um exemplo, já existente, e que deveria ser muito mais ampliado: os tribunais de júri. Não apenas para os crimes dolosos contra a vida nem apenas na área penal, mas em todas as áreas de julgamento judiciário. Vem-me a mente questões de separação de cônjuges, envolvendo filhos menores, não poucas vezes sujeitos a preconceitos religiosos ou de gênero ou de qualquer outra origem por juízes em todas as instâncias. Sem dúvida que um tribunal composto por pessoas da comunidade estará muito mais sensibilizado para entender, por exemplo, uma ação psicopata ou de interesse econômico de uma parte. Ressalvemos que nesta situação, por envolver intimidades, assim como em outras causas que exponham questões de foro íntimo ou deficiências pessoais, o sigilo deve ser sempre recomendável. E esta participação vai auxiliar na própria formação cidadã.
A participação em processos políticos eleitorais não se qualifica como paridade participativa nas condições atuais. Mas não bastam controles financeiros, listas partidárias, o processo de tomada de decisão é, quase totalmente, marginalizador. A divisão territorial e a autonomia política parecem-me interligadas para efetividade participativa. Novos conceitos federativos, novas formas de distribuição de núcleos decisórios, novas atribuições de responsabilidade são necessárias para que os cidadãos não só participem, mas sintam e identifiquem as consequências de suas ações. A informática abre espaço para consultas mais frequentes e mais amplas à população, democratizando as decisões do Estado. É necessário que se a aproveite.
CONCLUSÃO
Vivemos cercados de mitos. Eles já nos chegam desde o nascimento, sob a forma de sensações, e nos acompanham na vida adulta sob a forma de preconceitos. Na formação da cidadania nós não os eliminamos, mas ganhamos consciência deles. E, assim, somos capazes de administrá-los. Quanto mais profunda e internalizadamente tenhamos o valor da cidadania, mais capazes seremos de agir livremente.
A cidadania não é apenas um valor político e social, é também um fator libertador, um elemento para nossa própria independência. A obra do filósofo canadense Charles Taylor trata de diversos aspectos desta consciência libertária e das consequências para a vida psíquica e intelectual das pessoas.
É inegável que vários instrumentos para a cidadania foram implantados no Brasil, principalmente nos governos pós 2003. Alguns foram ampliações e modernizações de recursos já existente, como o Bolsa Família, outros foram reforçados, como a rede pública de comunicação, com a TV Brasil, houve descentralizações importantes para a ampliação de redes de atendimento, o ensino foi priorizado, mas faltou uma gestão geral, coordenadora de toda ação pela cidadania que a explicasse e divulgasse sua importância. Procuram as forças anti cidadãs confundir cidadania com ideologia. Como também procuram ver as disfunções do estatismo como restritivas para a ação do Estado. No entanto não há, fora do Estado, quem possa promover todas as ações pela cidadania.
Coloca-se, hoje, a questão da corrupção, ora sob ótica moral ora ética, como questão central do País. Nada mais falso e pernicioso. Sempre foram as elites, apropriando-se do trabalho escravo, da miséria e da ignorância do povo, as mais corruptas forças no Brasil. E tem sido elas as aliadas nacionais dos golpes contra o Brasil.
Também foram estes últimos governos que deram ênfase para medidas de transparência das ações públicas, principalmente do Poder Judiciário, e que causaram forte reação desta elite.
Mas o discurso e a ausência de comunicação de massa, verdadeiramente cidadã e de interesse nacional, levou ao retrocesso do golpe de maio de 2016. Foi, como ocorreu em diversas outras épocas de nossa história, o interesse estrangeiro prevalecente sobre o nacional, a hipocrisia das elites e a desinformação pelos veículos de comunicação de massa, que aplicaram mais um golpe no permanente projeto de soberania nacional. E é este esforço pela construção cidadã que, penso eu, cada vez que for mais aprofundadamente implantado, que ganhar os corações, mentes e direitos de nossa gente, dificultará a aplicação dos próximos golpes.
Vivemos também no mundo e no Brasil uma crise das instituições, que entendo ser consequência do domínio neoliberal. Mas a reforma ou reconstrução institucional deve estar associada à participação cidadã. Não sendo assim ela continuará frágil e suscetível aos golpes, como os presenciados no Brasil.
A cidadania é um processo e tem o dinamismo que o estágio civilizatório permite. Temos que entender este fato para não nos apegarmos a modelos que, tendo sido exitosos num momento ou estágio civilizatório, não mais atendam ou encontrem as necessárias respostas para a nova situação. Recordemos a lição de Karl Polanyi (A Grande Transformação, 1944), ao discorrer sobre as crises do capitalismo que não são somente um abalo na economia, mas atingem as pessoas, no desfazimento da solidariedade, as comunidades, que se desintegram, e a própria natureza, que se degrada. Temos vivido o aguçamento dessa crise com o financismo, o “mercado desenraizado”, que traz em seu bojo a falta de ética e de moral, e um duplo movimento, além da economia não regulada, a proteção social reprimida e a ameaça política. Mais do que nunca, a consciência cidadã surge como possibilidade de impedir que este cenário conduza à guerra ou ao fascismo.
Finalizando com o mestre Darcy Ribeiro: cada etapa evolutiva é “uma constelação particular de certos conteúdos do seu modo de adaptação à natureza, de certos atributos de sua organização social e de certas qualidades de sua visão do mundo”.
*Pedro Augusto Pinho, avô, administrador aposentado