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quinta-feira, 16 outubro, 2025

Construindo a própria inutilidade

Wellington Calasans

A histeria atual em torno da substituição da mão de obra humana pela Inteligência Artificial (IA) revela menos um problema tecnológico e mais uma crise de responsabilidade coletiva.

Durante décadas, seres humanos — por comodismo, ganância corporativa ou indiferença — alimentaram passivamente os algoritmos com seus dados, suas criações e até suas rotinas.

O ensino acadêmico, o jornalismo e a produção cultural foram transformados em combustível para máquinas, sem que houvesse resistência significativa ou reflexão ética sobre as consequências.

Esse processo não foi imposto de fora; foi consentido, muitas vezes celebrado como “progresso”, enquanto as estruturas sociais e educacionais se adaptavam passivamente às demandas do mercado digital.

As promessas capitalistas sempre foram sedutoras: máquinas nos libertariam do trabalho braçal e repetitivo, oferecendo mais lazer, salários mais altos e semanas de trabalho mais curtas.

No entanto, a realidade tem sido outra. Em vez de democratizar o tempo livre e a riqueza, a automação e a IA têm aprofundado as desigualdades.

Estudos recentes indicam que a IA pode impactar até 40% dos empregos globalmente, com efeitos desproporcionais sobre os mais vulneráveis.

Enquanto isso, os lucros gerados pela eficiência tecnológica concentram-se nas mãos de poucas corporações, fortalecendo um modelo econômico que prioriza a maximização de ganhos enquanto sepulta o ideal da justiça social.

O caso de Hollywood ilustra perfeitamente essa contradição. Enquanto o Sindicato dos Atores (SAG-AFTRA) protesta contra a “atriz” gerada por IA chamada Tilly Norwood — afirmando que “não é uma atriz, é um personagem gerado por um programa de computador”  —, ignora-se que a própria indústria contribuiu para sua crise ao promover celebridades vazias, roteiros genéricos e narrativas desprovidas de autenticidade.

Quando a arte é reduzida a fórmulas de mercado e o talento, a um acessório secundário, a substituição por máquinas torna-se quase inevitável.

A indústria, que há anos se afastou do público com produções ideologicamente rígidas e emocionalmente rasas, agora se vê ameaçada por aquilo que ajudou a criar: a ilusão de que qualquer conteúdo, mesmo o mais mecânico, pode ser vendido como entretenimento.

A culpa, portanto, não está na tecnologia em si, mas na forma como os humanos escolheram usá-la — ou permitiram que outros a usassem por eles. A IA, por exemplo, poderia ser um poderoso recurso de apoio: auxiliando pesquisadores, ampliando a criatividade, democratizando o acesso à produção cultural.

Em vez disso, foi instrumentalizada para cortar custos, eliminar postos de trabalho e concentrar ainda mais poder. A automação, longe de libertar os trabalhadores, tem servido para intensificar a exploração e a precarização, especialmente onde não há políticas públicas robustas de requalificação ou proteção social.

O caminho adiante exige responsabilidade, não pânico. É preciso repensar o papel da tecnologia na sociedade, garantindo que seu uso sirva ao bem comum e não apenas aos interesses de acionistas.

Isso inclui regulamentação rigorosa sobre direitos autorais, proteção de imagem e redistribuição dos ganhos gerados pela IA. Afinal, se a humanidade permitiu que suas vozes, rostos e ideias fossem usados para treinar máquinas, agora deve exigir que essas mesmas máquinas trabalhem para todos — e não apenas para uma elite tecnocrática.

A alternativa não é rejeitar a IA, mas recuperar o controle sobre ela. A frase “Não sois máquinas, homens é que sois” do discurso final de Charlie Chaplin no filme O Grande Ditador, já era um apelo à humanidade, liberdade e união contra a opressão e o ódio.

Os sinais foram dados a todos. No jornalismo, por exemplo, que hoje se orgulha de ter âncora virtual de telejornais ou textos e resumos produzidos pela IA, aquela mecanização do pensamento era ensinada como “elementos do jornalismo” (quem, quando, como, onde, o quê, por quê), mesmo com a distorção da notícia publicada como verdade.

Destaco o jornalismo, pois ele contribuiu ativamente ao longo das últimas duas décadas — especialmente com a ascensão das redes sociais e da lógica de cliques — para sua própria substituição pela Inteligência Artificial ao priorizar velocidade, viralização e algoritmos em detrimento da apuração rigorosa, do contexto e da profundidade.

A substituição de reportagens investigativas por listas, clickbaits e opiniões polarizadoras, muitas vezes geradas com mínima supervisão humana, por exemplo, ignora o tratamento das notícias como commodities descartáveis.

Nesse sentido, o jornalismo forneceu à IA exatamente o tipo de texto estruturado, repetitivo e desprovido de alma que máquinas aprendem com facilidade — tornando o jornalista, aos olhos do capital, um custo evitável.

Assim, não foi a IA que substituiu o jornalista ou outros profissionais; foi o conjunto de profissionais robotizados que se tornou substituível.

Na música o caminho foi o mesmo. Grupos musicais forjados em estúdios ganharam espaço e premiaram a mediocridade, impedindo que o talento fosse pré-requisito para esta importante manifestação artística e cultural.

*DICAS MUSICAIS SOBRE O TEMA*

Na minha infância eu já ouvia isso no rádio, disputando espaço com Elis Regina, Nina Simone, etc.

Dee D. Jackson – Automatic Lover (1978 Original Video)

Quando Amy Winehouse parecia fazer renascer o talento, eu era forçado a ouvir isso nas rádios:

Daft Punk – Technologic

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