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sábado, 18 janeiro, 2025

Como preservar a tradição indígena? Mandando brasa

Jose Bessa Freire

Preservar a tradição não é conservar as cinzas, é soprar a brasa

 para garantir que o fogo permaneça aceso (Jean Jaurés. 1911)

No final de dezembro chegam o verão e o natal. É tempo de abacaxi, manga, jaca, presépios, tender, peru e de doutorandos desesperados com os prazos que se esgotam para defesa de tese. Há um corre-corre nos programas de pós-graduação com caça a avaliadores para compor bancas. Os convidados, antes de toparem, levam em conta o tema, a teoria e a metodologia da tese, o programa e a linha de pesquisa, os perfis do orientador e do orientando e, last but not least, o cardápio. Sim senhor! Há quem espere lanches opíparos após o ritual acadêmico.

Não vou mentir. É o meu caso. Quando convidado, faço sondagem discreta sobre o menu programado. Foi assim que esse “banqueiro” que vos fala participou em três bancas nos dias 17, 19 e 20, já ao som do jingle bells. Sonhava ser recompensado pelo trabalho árduo com banquetaço nas defesas de Márcia Kambeba (Letras- UFPA), Marlon Ferreira (História Social-Uerj) e Luís de Jesus (Letras UFPA), mas infelizmente aconteceu uma decepção gastronômica, que será aqui revelada após breve notícia sobre as pesquisas.

Bem orientados, os três pesquisadores sopraram o fogo da tradição considerado extinto por muita gente, mas que ainda pode iluminar e aquecer, segundo Jean Jaurés (1859-1914) falante de occitano, uma língua do sul da França, país – pasmem – com mais de 70 línguas que, minorizadas, convivem anonimamente com o francês, idioma oficial. Em 1911, Jaurés reivindicou o uso nas escolas de três dessas línguas: o occitano, o bretão e o euskera para preservar a tradição tão ameaçada lá quanto no Brasil, onde se cometeu glotocídios.

Caderno-canoa

Mas a brasa da tradição foi reavivada agora na tese de Márcia Kambeba com o sopro de dona Assunta, sua mãe-avó que, deitada na rede de tucum, fumava cachimbo, contava histórias, cantava na língua ancestral e fazia benzeduras, rezos e banhos com ervas sagradas. Márcia deu voz a essas narrativas Kambeba repletas de sabedoria, que foram silenciadas pelo dispositivo colonial. O sopro na brasa preserva a oralidade, revigora a língua, atualiza e transmite conhecimentos essenciais sobre o uso da terra, o cuidado ambiental e as relações com os seres encantados habitantes desses espaços pan-amazônicos.

Cerca de 1.500 Omagua/Kambeba que vivem no Brasil desconheciam a existência dos 3.500 do Peru visitados por Márcia em duas etapas do trabalho de campo. Lá, ela inventariou narrativas orais e documentou com fotos e vídeos a arquitetura, a pintura, as roupas, as materialidades e o canto em espanhol, mas também na língua ancestral. Dessa forma, atualizou o léxico deste idioma do tronco Tupi e registrou a história oral, que dormia no “baú da memória”. Não foi possível visitar os 110 Omágua em território equatoriano.

A tese investiga as experiências históricas nos dois primeiros países.  Registra relatos de violências do contato colonial, que incluem escravização, epidemias, massacres, destruição de aldeias. Para isso, usa fontes históricas, relatos de viajantes e missionários e entrevista os velhos, incluindo os que vivem na aldeia San Joaquin de Omagua no Peru, para onde ela viajou com seu caderno de campo por ela denominado de caderno-canoa.

Para redigir a tese, consultou suas observações anotadas neste caderno-canoa, os relatos, os desenhos, os grafismos, as descobertas, emoções e frustrações. Essa consulta reavivou sua memória, fazendo com que retornasse mentalmente ao campo em uma nova visita virtual às aldeias e a criar uma representação dos lugares visitados.

– O caderno-canoa e eu navegamos, remamos e nadamos em águas turvas e cristalinas da pesquisa científica contemporânea, inicialmente em águas rasas, depois em águas profundas – ela escreve.

A metodologia da pesquisa denominada pela autora de Kuara Açu, que significa “grande caminho”, incorpora a sabedoria ancestral aos procedimentos científicos. Ela bebeu na fonte de José Ángel Quintero Weir, indígena do povo Añuu, na Venezuela, doutor em linguística e antropologia pela Universidade Nacional Autônoma do México (Unam). No seu livro, ele explora o conceito de “sentir-pensar” para combater a colonialidade, articula pensamento e sentimento e estabelece diálogos: da lógica cartesiana com Davi Kopenawa e de Francis Bacon com Ailton Krenak.

A raiz e a antena

Tal qual Quintero, Márcia Kambeba sugere que o conhecimento deve estar enraizado na experiência vivida, na conexão com a comunidade e na relação com a Terra, reivindicando a interdependência entre os seres humanos e o mundo natural. Ela recorre a alguns conceitos da sociolinguística como línguas em contato, bilinguismo, política e governo das línguas, assim como às noções de dispositivo colonial, etniCidade, territorialidade e transterritorialidade.

Com esses conceitos, olhou a tradição com outros olhos para entender como se atualiza, conservando sua essência. No lugar de derramar lágrimas sobre as cinzas da tradição Kambeba, contribuindo para apagar o fogo que ainda lá resiste, Márcia reavivou o rescaldo com sopro forte. Assim, pôde perceber a resiliência cultural como um processo onde os Omagua/Kambeba, ancorados na tradição, ressignificam tudo que chega na aldeia por influência ou sob pressão. Quando precisa, coloca lenha nova para ativar a fogueira.

Um dos exemplos por ela apresentado é o uso do rap na musicalidade indígena, que mantém a originalidade da língua ancestral, abordando temas da luta e da resistência. Como quer Gilberto Gil, a árvore da cultura precisa da raiz para se sustentar no solo e se nutrir, mas necessita também de uma espécie de “antena” – a luz solar para o processo de fotossíntese.

– A música que as crianças cantam na aldeia San Joaquin, no Peru, em ritmo de rap, está repleta de sentimentos de pertencimento à sua cultura. Também no Brasil, na aldeia Turucari-Uka, em Manacapuru (Am), as crianças Omágua/Kambeba cantam ‘Meu Pintinho Amarelinho’ traduzido para a língua ancestral – escreveu Márcia, citando “Los Caminos de la Música” de Ladislao Landa sobre fenômenos similares no mundo andino.

Raiz e antena marcaram as identidades herdadas por Márcia: a Kambeba da mãe-avó Assunta e a Witoto do avô paterno.  No entanto, nascida num presépio em Belém do Solimões numa aldeia do povo Maguta/Tikuna, onde viveu sua infância, adicionou à sua história de vida esta outra identidade com camadas de territorialidade, oralidade e ancestralidade, além do alfabeto e da escrita em língua portuguesa. Ela é uma espécie de ONU indígena transcultural.

– Numa madrugada, acendi meu cachimbo ou xanduka como chamam meus parentes Fulni-ô e relembrei a promessa da minha avó, que era professora. “Se você passar de ano, te dou uma bicicleta”. Cada ano, ela renovava o pacto, mas nunca recebi a bicicleta física, embora tirasse sempre boas notas. Só depois compreendi: a vó queria era que eu não parasse de pedalar a “bicicleta do saber” para continuar remando a “canoa da ciência”.

A canoa de saberes

Márcia Kambeba, escritora, poeta, cantora, com muitos livros publicados, escreveu o poema bilíngue Igara Suí Ikua (A canoa de saberes) para sua tese, que finaliza com carta da avó, já falecida, endereçada ao povo Omagua/Kambeba, cujo conteúdo lhe foi transmitido através de um sonho. Em outras palavras, na carta a avó recomenda soprar sempre a brasa da tradição com um recado de força, continuidade e esperança.

A outra tese na luta para preservar a tradição foi a defendida por Marlon Ferreira, que soprou o rescaldo de cinzas milenares. Ele aborda a longa história local e indígena na Região dos Lagos (RJ) através das pesquisas arqueológicas, que deram origem à criação de museus de arqueologia em Rio das Ostras, Saquarema e Araruama. Analisou currículo escolar e livros didáticos e verificou que se limitam ao remoto período pré-colonial, mas apagam a presença indígena nos últimos cinco séculos. Concluiu que existe brasa mais recente a ser soprada.

A terceira banca foi um exame de qualificação de mestrado do timorense Luís de Jesus sobre o ensino do português no Timor-Leste. Sua língua materna é o mambae, que resistiu ao glotocídio colonial, ao lado de 20 línguas locais usadas em situação de bilinguismo com o tétun – língua franca com mais falantes do que o português, ambas línguas oficiais do Timor Leste consagradas na Constituição após a independência do país. O sopro na brasa da tradição reaviva a diversidade de línguas portadoras de saberes.

A tese de Marlon, a única de cujo banquete usufruí, merece resenha à parte.  Além dos salgadinhos degustados no intervalo, os integrantes da banca receberam iguarias da culinária da Região dos Lagos. A “cesta básica” continha produtos com receitas típicas. Havia a “sola de amendoim”, doce tradicional indígena, feito com féculas de mandioca e de amendoim envolvida em folhas de bananeira e assada em forno à lenha, além de cocada artesanal preparada em caldas em grandes tachos, dois tipos de tapioca e o doce de abóbora.

Na banca via zoom do Luís de Jesus, que era apenas de qualificação de mestrado, nenhuma experiência gastronômica. Mas o refinado gourmet espera que na defesa da dissertação haja katupa – bolinho de arroz cozido em leite de coco, temperado com açafrão, alho e sal, enrolado em folha de coqueiro. Não podem faltar também o agridoce midlar-siin temperado com tamarindo e capim limão e a Bebinca de Timor, cuja textura lembra o nosso pudim de leite.

Culinária regional

A grande frustação foi após a defesa de Márcia Kambeba. Este “banqueiro” que vos fala, impedido de viajar a Belém por ordem médica, participou virtualmente da banca via zoom. No final, quando todos os presentes foram degustar a culinária amazônica, a dor maior era ter de ficar de fora. Só restava sonhar com o menu e imaginar como cada um se deliciava com as iguarias que, afinal, fazem parte do nosso patrimônio cultural.

Na minha fantasia, vi a orientadora Ivania Neves mergulhando numa cuia de tacacá como se fosse uma piscina perfumada com tucupi e quando ela boiava a goma de tapioca funcionava como condicionador dando brilho ao seu cabelo, com o jambu se emaranhando nas mechas como num penteado rastafári ou dreadlock. Vi Gersen Baniwa com os lábios roxos de açaí. Ananda Machado sorvia o damurida apimentado com caruru, tucupi e beiju. E Lucilena Tavares saboreava o fani da culinária Kambeba feita com peixe e macaxeira ralada.

Foi quando ouvi a voz da vó Assunta dizendo para mim: “Não fique triste, meu filho, te darei uma bicicleta para que continues participando em bancas fartas de culinária regional”. Amém.

Fotos Jussara Gruber. Desenhos: Cacique Uruma, Carla Marajoara e Araceli Miranda

Referências:

Marlon Barcelos Ferreira. Uma longa história local e indígena na Região dos Lagos: Arqueologia, Patrimônio, Museu e Ensino. Tese de doutorado em História Social. Uerj. São Gonçalo. 2024.  Banca: Rui Fernandes (orientador) Luís Reznik, Márcia Chuva, Juçara Mello, José Bessa.

Márcia Wayna Kambeba: Os Omágua/Kambeba: narrativas, dispositivo colonial e territorialidades na Pan-Amazônia contemporânea. Tese de doutorado em Letras. PPGL. UFPA, Belém.2024. Banca: Ivânia Neves (orientadora) Lucilena Tavares, Gersen Baniwa, Ananda Machado, Luísa Belaúnde, José Bessa.

Luís de Jesus: Governo da língua e o ensino de português em Timor-Leste: uma perspectiva histórico-discursiva. Exame de qualificação de mestrado. PPGL. UFPA. Belém. 2024. Banca: Flávia Lisboa (orientadora), Ivânia Neves e José Bessa.

José Ángel Quintero WeirConocer desde el sentipensar indígena. Teoria y práctica del conocimiento para la vida. México. Ixim-Universidade Autônoma Indígena (UAIN). 2022 (Prefácio de Carlos Walter Porto-Gonçalves).

Ladislao Landa Vásquez. Los Caminos de la Música. Géneros populares andinos en la segunda mitad del siglo XX. Lima – Foz do Iguaçu. Y. Carlesse. 2022.

Taquiprati. Simón Bolívar nos senderos da música andina. 14/07/2024. https://www.taquiprati.com.br/cronica/1747-simon-bolivar-nos-sendeiros-da-musica-andina e A bailarina do Caribe e da América Latina. 29/04/2024 – https://www.taquiprati.com.br/cronica/1741-sialat-a-bailarina-do-caribe-e-da-america-latina

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