Foto: Sputnik
por The Ister [*]
A década de 1990 foi uma época de imenso sofrimento para o povo russo. Quando o colapso iminente da URSS se tornou perceptível, iniciados como Nikolai Kruchina, Viktor Geraschenko e Leonid Veselovsky criaram um grupo de planejamento a fim de assegurar a influência contínua de funcionários da era soviética, transferindo ativos do estado russo para empresas de fachada offshore, despojando riquezas do país. Uma dessas empresas offshore, a FIMACO, foi usada para roubar cerca de US$50 bilhões e transferi-los para o exterior. Viktor Gerashchenko, o chefe do banco central da Rússia, enviou um memorando a exigir que as transferências da FIMACO fossem cobertas. Por meio desse saque foi gerado o capital líquido usado pelos futuros oligarcas para construírem suas fortunas. Um dos primeiros beneficiários desse acordo foi Mikhail Khodorkovsky, que começara sua carreira como um funcionário soviético menor e cujo conglomerado de petróleo Yukos estava ligado à FIMACO. Em troca da sua ajuda, Viktor Gerashchenko mais tarde recebeu de Khodorkovsky o cargo de presidente da Yukos.
Em 1991, a União Soviética finalmente entrou em colapso. Em Agosto daquele ano, o tesoureiro estatal Nikolai Kruchina, responsável pelas reservas de ouro da Rússia, morreu ao cair da sua janela. Ele havia sido membro do grupo de planejamento que originou a trama para roubar bens do Estado. Seu sucessor Georgy Pavlov dois meses depois caiu mortalmente de uma janela: os oligarcas estavam a limpar a casa.
Em setembro, o banco central russo anunciou que as reservas de ouro do Kremlin inexplicavelmente haviam caído das estimadas 1000-1500 toneladas para meras 240 toneladas. Dois meses depois, Victor Gerashchenko anunciou que as reservas de ouro da Rússia haviam desaparecido totalmente. Apesar de o público russo ter ficado horrorizado com a revelação, os banqueiros europeus ficaram menos surpresos. Dizia-se com frequência naqueles círculos que aviões de transporte soviéticos vinham voando para a Suíça há meses com grandes quantidades de ouro. Boris Yeltsin anunciou seus planos de privatizar os ativos da nação e a verdadeira pilhagem começou.
Durante o período da privatização, o capital internacional não perdeu tempo em lançar-se de maneira oportunista para assumir o controle das indústrias russas. O governo Clinton procurou redesenhar as políticas economicas da nascente Federação Russa de acordo com o Consenso de Washington: privatização, desregulamentação, austeridade e abertura de empresas russas à compra por americanos ultra-ricos. Eles deram o papel de planeamento economico na Rússia ao Instituto de Desenvolvimento Internacional de Harvard, que enviou seus economistas para se encontrarem com Anatoly Chubais, o chefe das privatização de Boris Yeltsin. O relacionamento próximo com Anatoly Chubais permitiu a um seleto grupo de investidores americanos ter um controle interno das negociações financeiras na nova Rússia. Um graduado de Harvard envolvido nesse esquema foi Jonathan Hay, um trader condenado por delito de iniciados (insider). Ele se tornou conselheiro sénior do GKI , o novo comité estatal de privatização da Rússia.
Certos membros dessa rede, que incluía os graduados de Harvard Hay, Jeffrey Sachs, Andrei Shleifer, Robert Rubin, Larry Summers, David Lipton e outros, usaram indevidamente fundos da USAID destinados ao desenvolvimento economico russo e fraudaram acordos de privatização a fim de obterem o controle das principais indústrias russas nas negociações de bastidores. Num acordo fora do mercado de 1995, Anatoly Chubais criou um processo de licitação fechado para propriedades nacionais de primeira linha, no qual os únicos licitantes aprovados eram a Harvard Management Company e George Soros. Isso resultou na aquisição de participações importantes na Sidanko Oil, Novolipetsk Steel e Sviazinvest .
Investidores estrangeiros afluíram em massa e o nível de ganância dessa quinta coluna de novos moscovitas foi realmente surpreendente. O processo RICO, de 1999, Avisma Titano Magnes v. Dart Management é particularmente esclarecedor. A RICO permite que vítimas de uma conspiração de extorsão processem conspiradores por danos causados por sua conduta ilegal e os seguintes réus constavam no processo:
Kenneth Dart; Dart Management Inc, endereço desconhecido
Jonathan Hay; Dart Management Inc, endereço desconhecido
Michael Haywood; Dart Management Inc, endereço desconhecido
Michael Hunter;
Francis E. Baker, da Dart Management Inc; Andersen Group Inc
William Browder, Hermitage Fund
Barclays Bank, PLC
O documento da queixa-crime alega o seguinte: os réus e um banco cooperante denominado Banco Menatep, de propriedade de Mikhail Khodorkovsky, detinham o controle acionista da produtora de titânio Avisma. Eles forçaram a Avisma a vender seu titânio abaixo do preço de mercado a empresas offshore que controlavam secretamente. Em seguida, essas empresas offshore venderam o titânio a um preço correto nos mercados internacionais para obter lucro, o qual foi então canalizado de volta das empresas offshore para os réus e o Banco Menatep. O dinheiro que deveria ter sido contabilizado como lucro para a Avisma foi desviado e os acionistas maioritários envolvidos no golpe beneficiaram-se às custas dos acionistas minoritários, da empresa e das autoridades fiscais russas.
O arguido Francis E. Baker descreveu as atuações numa carta privada como, “Um imenso esquema de lavagem de dinheiro bancário russo, claramente uma questão criminal”. De acordo com a denúncia, as ações foram descobertas quando os arguidos tentaram trocar as ações da Avisma por ações da empresa mineira VSMPO e replicar o mesmo esquema na VSMPO. Baker e outros arguidos posteriormente desculparam-se pelas suas atuações alegando que o processo era contra um alvo russo. Soa familiar?
A criminalidade não se limitou a especuladores estrangeiros. Durante o período inicial de privatização nos anos 90, uma sociedade secreta de sete oligarcas russos controlava inteiramente a administração de Boris Yeltsin. Este grupo auto-denominou-se Semibankirschina, em homenagem aos Sete Boiardos que controlaram a Rússia durante o século XVII. A sociedade secreta incluía os seguintes oligarcas: Boris Berezovsky, Mikhail Khodorkovsky, Mikhail Fridman, Petr Aven, Vladimir Gusinsky, Vladimir Potanin e Alexander Smolensky.
Um jornalista russo chamado Andrey Fadin descreveu seu poder esmagador num artigo, “eles controlam o acesso ao dinheiro do orçamento e basicamente todas as oportunidades de investimento dentro do país. Eles possuem o gigantesco recurso de informação dos principais canais de TV. Eles formam a opinião do presidente. Aqueles que não quiseram andar com eles foram estrangulados ou deixaram o círculo”. Menos de um ano após a publicação do artigo Andrey Fadin foi morto. Através do seu líder Anatoly Chubais, o Semibankirschina usou o controle das redes de televisão para fazer subir os baixos índices de aprovação de Boris Yeltsin. De meados dos anos 90 a 1999, essa camarilha tinha autoridade total sobre as políticas e indústrias russas, usando judiciosamente a violência para impor o seu monopólio. Num caso, Mikhail Khodorkovsky e seu subalterno Leonid Nevzlin executaram o assassinato do presidente de municipalidade Vladimir Petukhov , que perseguia a Yukos Oil Company por evasão de impostos.
No final de 1999, Vladimir Putin tornou-se presidente da Rússia e a sorte desses governantes autoproclamados rapidamente mudou para pior. Formou-se um novo grupo de pessoas de confiança de Putin, como Gennady Timchenko, Vladimir Yakunin e Sergey Chemezov, o qual começou a suplantar o acesso anterior que o Semibankirschina tinha junto ao presidente. Em 2001, uma tomada de controle da mídia pelo Estado capturou as redes de televisão anteriormente pertencentes aos oligarcas Boris Berezovsky, Vladimir Gusinsky e Badri Patarkatsishvili , o que levou Patarkatsishvili a denunciar a Rússia ao New York Times e a fugir do país. Enquanto exilado no Reino Unido, Patarkatsishvili morreu de modo suspeito aos 48 anos. O governo georgiano considerou a sua morte como assassinato. Boris Berezovsky também morreu suspeitamente no Reino Unido depois de ter vendido seus ativos russos e denunciado Putin. Depois de as suas redes de televisão serem tomadas, Vladimir Gusinsky foi criminalmente acusado de lavagem de dinheiro e também forçado a fugir do país.
A varredura continuou enquanto três outros aliados da Semibankirschina foram mortos: Nikolai Glushkov, Alexander Litvinenko e Boris Nemtsov. Bill Browder foi deportado em 2005 e posteriormente condenado à revelia por fraude. O fraudador Konstantin Ponomarev também foi condenado, sentenciado a oito anos de prisão por crimes relacionados à extorsão de US$1000 bilhões (um trilhão) do IKEA. Jamison Firestone, associado de Ponomarev e Browder, foi forçado a fugir da Rússia devido ao seu envolvimento no caso Magnitsky, e seu associado Alexander Peripilichny morreu misteriosamente enquanto praticava jogging perto de Londres. George Soros foi banido da Rússia, Bielorússia e Cazaquistão.
Outrora o homem mais rico do país, a sorte de Mikhail Khodorkovsky também piorou. No início dos anos 2000, Putin promoveu uma série de reformas populistas nas leis criminais, tributárias e fundiárias, às quais os oligarcas dos anos 90 se opuseram fortemente. Quanto ao membro mais flagrantemente criminoso da Semibankirschina original, o Banco Menatep de Khodorkovsky, fora fundado com recursos financeiros roubados como parte do saqueio de ativos do Estado. O banco operava como um centro de lavagem de dinheiro e envolveu-se em incontáveis fraudes financeiras, chegando a atrasar fundos do governo para as vítimas de Chernobyl enquanto usava este dinheiro para especular financeiramente. Foi através do Banco Menatep que fraudadores americanos alegadamente roubaram os acionistas da Avisma com o golpe do dumping de titânio.
Em 2003 Khodorkovsky foi processado criminalmente por Putin por evasão fiscal e fraude, pelo que acabou por cumprir 10 anos de prisão. Seu protegido, Leonid Nevzlin, foi condenado por ordenar vários assassinatos sob contrato em nome de Khodorkovsky e sentenciado à revelia à prisão perpétua. O associado Platon Lebedev também foi condenado e preso. Essa onda de processos enviou uma mensagem e deu a Putin uma posição forte, a qual foi usada para negociar uma “grande barganha” com os oligarcas restantes: eles retiveram a maior parte de seus ativos existentes em troca do alinhamento com o governo vertical de Putin na Rússia. A era de gangsterismo financeiro da década de 1990 estava acabada.
As reservas roubadas de ouro da Rússia foram agora restauradas e estão nos níveis mais altos da história. Devido à ausência de colaboração com outros bancos centrais, é certo que o ouro russo está presente nos cofres de Moscou: já não há nenhum dos contratos sub-reptícios de arrendamento ou de swap que ponham em causa a dimensão afirmada dos ativos dos bancos ocidentais. Portanto, ao invés de comprar títulos do tesouro ou dólares dos EUA para as suas reservas, o Banco da Rússia pode exigir a entrega física de ouro nos cofres de Moscou. Isso pressionará continuamente os sistemas fraudulentos do COMEX e do London Bullion Market com a pressão de remessas físicas e ameaçará o dólar. Ao contrário da China, a Rússia está em posição de atacar o dólar como exportador líquido de commodities, o que significa que quando suas compras de ouro aumentam o preço dos metais, ela está simplesmente a aumentar as receitas das suas próprias empresas interna produtoras de commodities, como Norilsk Nickel e VSMPO-AVISMA.
A crise economica de 1998 influenciou fortemente a política financeira do Kremlin e os últimos vinte anos foram gastos na criação de um sistema resiliente. Um dos primeiros itens da agenda de Putin foi pagar todas as dívidas com o FMI e os empréstimos remanescentes da era soviética. A Rússia agora está posicionada para atacar o dólar, como o único Estado poderoso que não opera num sistema baseado em dívida. Uma década de guerra economica na forma de sanções cortou o acesso ao capital internacional: o resultado é um dos níveis mais baixos de dívida externa de qualquer país do mundo, com reservas de caixa suficientemente grandes para pagar todas as dívidas de uma vez. Esses baixos níveis de dívida têm benefícios tangíveis, principalmente porque agora a Rússia é capaz de suportar grandes flutuações economicas sem desmoronar como resultado de incumprimentos internos. Em comparação, o sistema financeiro da América se desintegraria se tentasse sustentar a queda do PIB da Rússia incorrida em 2013-2016.
O Banco da Rússia impõe ativamente padrões de crédito rigorosos a fim de evitar o surgimento de bolhas de crédito ao consumidor e força os bancos a manterem dinheiro extra nos seus balanços (em consequência, a maior parte dos pedidos de crédito pessoal são recusados). Portanto, as sanções na verdade tornaram o país mais forte, pois a arrogância de políticos americanos da classe McCain criou um Estado competidor sem nenhum interesse na sobrevivência da ordem financeira existente baseada na dívida. A missão da Rússia de criar resiliência e restaurar a soberania prenuncia um futuro tumultuado, ao passo que os Estados Unidos apostam tudo em que o mundo continuará o mesmo. O plano concertado para saquear a Rússia foi frustrado.
Em dezembro de 1999, Edmond Safra foi assassinado na sua fabulosa mansão, a Villa Leopolda, em Mônaco. Os Safra [1] são uma das mais antigas e secretas famílias de banqueiros, com uma fortuna que remonta às caravanas de comércio de ouro do Império Otomano. Por acaso, Safra significa amarelo, ou ouro, em árabe. Foi Edmond Safra quem serviu como mentor de Bill Browder na Rússia, proporcionando-lhe um financiamento inicial de US$25 milhões para iniciar seu Fundo Hermitage. Quando Browder precisou de proteção durante uma disputa de negócios com um oligarca, Safra enviou ao seu emissário quatro veículos blindados e quinze guarda-costas liderados por um ex-agente do Mossad. Embora Edmond Safra tenha passado grande parte de sua vida a defender-se de acusações de tráfico de drogas e de lavagem de dinheiro, ele no entanto foi exímio. Fundou o seu primeiro banco aos 23 anos e sonhava em criar uma dinastia bancária que perdurasse 10.000 anos.
Logo após a tomada de posse de Putin como presidente, Villa Leopolda foi invadida. O enfermeiro de Safra, um ex-Boina Verde (Green Beret) chamado Ted Maher, foi esfaqueado por dois intrusos mascarados que invadiram o local, depois disso Safra foi morto. Sob pressão das autoridades de Mônaco, Ted Maher foi forçado a assinar uma confissão absurda na qual afirmava ter-se esfaqueado a si próprio e admitia ter ateado fogo para tentar ganhar a adoração de seu empregador. Ele depois repudiou essa confissão, dizendo que seus advogados de defesa o coagiram a assinar e ameaçaram-no de que do contrário nunca mais veria sua família. Jean-Christophe Hullin, o juiz principal no caso, revelou em 2007 que a condenação como culpado era um resultado predeterminado que fora planejado numa reunião secreta entre ele, os advogados de Maher e o promotor-chefe de Mônaco: em suma, Ted Maher foi um bode expiatório para os assassinos reais de Edmond Safra. Agora livre, ele acredita que a morte de Safra foi ordenada por Putin, “em retaliação a um complô orquestrado por Safra e oligarcas russos para assumir o controle de todos os ativos da Rússia”. [2] Foi durante o expurgo de oligarcas e capitalistas abutres que o verdadeiro poder por trás de Mikhail Khodorkovsky se revelou. Quando se tornou provável que seria preso, ele providenciou a transferência de todas as suas ações da Yukos Oil Company para a propriedade de Jacob Rothschild. A transferência ocorreu em novembro de 2003, dando a Lord Rothschild o controle de ações que o Sunday Times estimou valerem US$13,5 bilhões. Posteriormente, Putin liquidou e nacionalizou a Yukos, confiscando e vendendo suas ações a empresas estatais de petróleo por um valor muito abaixo do mercado.
Assim, Putin declarou guerra às pessoas mais poderosas do planeta.
19/Novembro/2020
NT
[1] Trata-se de uma família banqueira de origem síria. No Brasil possuem o Banco Safra; na Suíça o J. Safra Sarasin e nos EUA o Safra National Bank of New York.
[2] Os disparates ditos por um indivíduo que foi dos Boinas Verdes obviamente não merecem consideração.
[*] Investigador de mercados financeiros e geopolítica, autor de Escape America
O original encontra-se em thesaker.is/putin-expels-the-families/
Este artigo encontra-se em https://resistir.info