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terça-feira, 18 novembro, 2025

Como a trajetória de Othon Bastos se entrelaça com a do Brasil

Crédito: Beti Niemeyer/ Divulgação da peça “Não Me Entrego, Não!”

Othon não é apenas um ator em cena — é uma força da natureza teatral. Uma presença que poderia tudo abalar, mas que escolhe, sempre, a generosidade

Giovanna Sassi/Le Monde Diplomatique

Acredito que cada pessoa tenha uma fase da história brasileira que mais a instiga. Para o meu avô, era o império português no Brasil; para a minha avó, os tempos de ouro do rádio e da televisão brasileira. O meu Nonno vivia os efeitos do “50 anos em 5” de Juscelino Kubitschek; a minha Nonna se encanta com a história hoje. Para mim, foi a ditadura militar. Um período sombrio, em que a arte efervescia como resistência — um tempo que, ao estudar, despertou em mim a consciência de ser latina e artista no Brasil.

Ao mergulhar na história do teatro brasileiro, encontrei ali o que procurava: debates sobre a estética, a política e a arte brasileira. Quis estudar os artistas que atravessaram esses anos tão duros com invenção e risco. Ruth Escobar, Gianfrancesco Guarnieri, Augusto Boal, Zé Renato, Zé Celso. As opções eram muitas, mas o que brilhou meus olhos foi o teatro de resistência, especialmente os textos e encenações de Guarnieri e Boal. Analisei peças que passaram pelos Anos de Chumbo. Reconheci semelhanças e diferenças de estratégias literárias e brechtianas. Busquei vestígios das encenações desse nosso teatro que vive e morre pela sua efemeridade. As variáveis eram muitas, mas em um feliz dia de dispersão, percebi um detalhe em comum.

Um mesmo traço entre tantas peças que se tornaram marcos de seu tempo: Eles Não Usam Black-Tie, O Rei da Vela, Galileu Galilei, Um Grito Parado no Ar, Ponto de Partida, Murro em Ponta de Faca, Calabar: O Elogio da Traição. Em todas essas, havia a presença de um mesmo corpo, uma mesma voz, um mesmo ator: Othon Bastos.

Hoje, Othon completa 92 anos. No palco. Rodando o Brasil. Como fez em 1973 com Um Grito Parado no Ar. Seu nome volta aos holofotes com o espetáculo Não Me Entrego, Não, uma peça biográfica que revisita suas memórias e personagens. Como ele mesmo diz em cena, foi por muitos anos um “coadjuvante de luxo”. Mas essa definição é modesta: Othon é, na verdade, protagonista da cultura brasileira.

A trajetória de Othon Bastos é feita de obras que moldaram nossa identidade cultural e ajudaram a construir a memória social do Brasil. Foi em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha, que consolidou sua imagem, enquanto Corisco, como símbolo do Cinema Novo. Interpretou Paulo Honório em São Bernardo (1972), César em Central do Brasil (1998), um dos filmes brasileiros mais aclamados internacionalmente e até personificou Tancredo Neves em O Paciente (2018).

Como jovem atriz que conheceu muitas novelas pelo streaming, foi impossível não esbarrar com Othon Bastos em produções que atravessaram gerações. Ele marcou presença em títulos como Mulheres de Areia (1973), Roque Santeiro (1985), Selva de Pedra (1986), Pacto de Sangue (1989), Alma Gêmea (2005), Paraíso Tropical (2007) e, mais recentemente, reafirmando sua entrega incansável ao ofício do ator, na minissérie Fim (2023).

No entanto, é no teatro — menos registrado, mais efêmero, mais arriscado — que testemunho a sua grandeza. O crítico Yan Michalski, no  Jornal do Brasil de 1977, afirmou que sua atuação em  Ponto de Partida, “impressiona tanto pela exatidão de cada gesto como pela vibração interior que sentimos a cada momento por baixo da sua aparentemente fria composição física”. Sábato Magaldi, outro gigante da crítica, descreveu sua performance em Um Grito Parado no Ar como impecável. Críticas que poderiam ser feitas hoje, décadas depois, a ele no palco

No início de 2024, ao saber que um amigo próximo, o visagista Fernando Ocazione, estava trabalhando com Othon, senti o tempo dobrar sobre si. Era como se uma ponte entre gerações se abrisse diante de mim. Existe um certo remorso em todo jovem ator: o de não ter assistido aos grandes momentos do teatro brasileiro. Mas ali, diante de mim, estava a chance de tocar essa história viva. Othon se tornou esse elo entre o passado que me formou e o presente que me desafia. Era uma ponte entre esse passado que não vivi e ainda assim me dói, junto ao presente que vivo e me faz ansiar por um amanhã.

Othon em cena hoje evoca tudo isso. Mais de meio século depois, temos ele no palco, com sua voz, seu texto e seus gestos. Nada ali é repetição. O que vemos é permanência. É como o subir das escadas de um teatro antigo. Sentimos nos pés as ondulações do mármore já desgastado e por dois segundos, somos atravessados por todos que ali pisaram. No palco é igual. Othon Bastos não é apenas um ator em cena — é uma força da natureza teatral. Uma presença que poderia tudo abalar, mas que escolhe, sempre, a generosidade.

Ele pisa no palco, ergue o rosto iluminado pela luz quente do teatro e declama.

Aos 92 anos, Othon ainda atua como quem sabe que a arte é urgência. Ele é o elo entre um teatro que combateu a repressão e o desejo de uma cena futura que não abdique da memória. Ele é um arquivo vivo. Uma cápsula de resistência. Um monumento em movimento.

E, por isso, este não é apenas o aniversário de um ator. É uma celebração nacional. Uma ode à permanência da arte. Uma exaltação da palavra que sobrevive à mordaça. Hoje é um dia de festa para comemorarmos o presente, a coragem e a arte. Sem jamais se entregar.

Feliz aniversário, Othon!

*Giovanna Sassi é mestranda em artes cênicas pela USP e tem uma carreira sólida no teatro musical. Este ano, integrou o elenco do musical Uma Babá Quase Perfeita, ao lado de Eduardo Sterblitch, em que interpreta a personagem Janet Lundy. Em 2024, produziu e estreou o musical Itapuca, em Niterói. Em 2023, recebeu o convite para participar do musical Kafka e a Boneca, realizado pelo SESI-SP, sob a direção de Marllos Silva, onde interpretou Dora Diamant, a última namorada do escritor Kafka.

O original encontra-se em https://diplomatique.org.br/como-a-trajetoria-de-othon-bastos-se-entrelaca-com-a-do-brasil/

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