– A “pausa nos ataques” proposta pelos EUA equivale a dizer: Deixem Israel matar e ferir quantas pessoas quiser, mas o humanitarismo exige que os mortos e feridos sejam periodicamente removidos!
Os séculos XVIII e XIX testemunharam a emergência de dois paradigmas diferentes de colonialismo: o primeiro, de que a Índia foi o exemplo clássico, envolvia a conquista de países com uma história de administrações centrais estabelecidas, sustentadas por sistemas estabelecidos de extração de excedentes, e a substituição dessas antigas administrações por regimes coloniais. A essência deste colonialismo era, para além de encontrar um mercado para os produtos europeus à custa dos artesãos locais, a expropriação deste excedente e o seu envio para a metrópole sob a forma de mercadorias de que a metrópole necessitava. A migração da população europeia para estes países, já bem povoados e cuja localização nos trópicos desencorajava tal migração vinda da localização temperada da metrópole, foi muito reduzida.
O outro paradigma, de que os EUA são o exemplo clássico, envolveu a conquista de territórios em que a população local foi expulsa das suas terras e estas foram ocupadas por colonos da metrópole; a essência aqui foi a migração a partir da metrópole e a tomada da terra (e de outros bens) dos habitantes locais, que foram dizimados ou arrebanhados em “reservas”. Chamarei a estes dois paradigmas, respetivamente, “colonialismo expropriativo” e “colonialismo por assentamento” (“settler colonialism”).
A diferença entre os dois consiste no facto de que, num caso, o colonialismo retirava os produtos da terra; no outro, retirava a própria terra. No primeiro caso, precisava da população local para trabalhar na terra; se expropriasse uma parte demasiado grande dos produtos da terra, a população local passava fome, como se verificou na Índia britânica sob a forma de fomes recorrentes. Mas, nesse caso, também tinha de tomar medidas de correção para que sobrevivesse um número suficiente de pessoas a fim de produzir o excedente que precisava de expropriar. No caso das colónias de povoamento, porém, não havia essa necessidade imperiosa de preservar uma população local, sobretudo se a escala da imigração proveniente da metrópole fosse suficientemente grande, ou se fosse fácil obter trabalhadores de outros locais no caso de a população local ser dizimada. O colonialismo por assentamento estava, portanto, tipicamente associado à limpeza étnica, e muitas vezes à limpeza étnica genocida.
O colonialismo por assentamento tinha ainda outra caraterística importante. Tendia a ser expansionista, no sentido em que as terras ocupadas pelos colonos continuavam a expandir-se. Isto acontecia quando havia uma imigração contínua para a região, mas também acontecia noutros casos, até se atingir um limite natural para as terras que podiam ser ocupadas ou até as fronteiras de um Estado forte adjacente constituírem um obstáculo a qualquer ocupação posterior.
Tudo isto, como alguém poderia pensar, pertence ao passado: embora o imperialismo continue a ser uma realidade sob o capitalismo, o colonialismo já não é uma questão de grande relevância no presente. Mas isso é errado. Israel tornou-se um exemplo clássico de colonialismo por assentamento nos tempos atuais. Os judeus, uma minoria perseguida durante séculos cuja perseguição atingiu o seu terrível clímax no Holocausto, vieram originalmente para a Palestina, encorajados pelo colonialismo britânico, como refugiados de um mundo hostil, e criaram o Estado sionista de Israel em 1948. Mas com a conivência e a intervenção ativa do imperialismo norte-americano, e com uma sucessão de governos de direita no poder naquele país, o que havia começado por ser um abrigo para refugiados perseguidos tornou-se um exemplo do colonialismo moderno por assentamento. Começou a apresentar todas as características do colonialismo por assentamento, desde a sua tendência expansionista intrínseca, com colonos armados do país a serem encorajados a deslocarem-se para novas áreas como a Cisjordânia e a Faixa de Gaza, até à sua propensão para a limpeza étnica e, agora, até ao recurso ao genocídio.
Todos os colonialismos por assentamento são caracterizados pelo regime de apartheid . De certa forma, isto é verdade para todos os colonialismos, em que existe uma divisão rigorosa dentro de cada cidade colonial entre a zona onde vivem e trabalham os senhores coloniais e a zona onde vivem as pessoas comuns; mas no colonialismo de povoamento, as zonas “brancas” não albergam apenas um pequeno número de funcionários coloniais, mas uma grande população imigrante, o que faz com que se assemelhe muito mais a uma situação de apartheid. Não é de surpreender que o exemplo contemporâneo do colonialismo por assentamento, Israel, também apresente um quadro clássico de apartheid.
O colonialismo por assentamento israelense não teria arrancado sem o sólido apoio do imperialismo ocidental. Para os imperialistas, trata-se, antes de mais, de uma forma de ultrapassar todo o sentimento de culpa por séculos de perseguição dos judeus. Os países imperialistas absolvem-se da culpa à custa da população palestina. E, para a direita israelense, os séculos de perseguição e, sobretudo, o Holocausto, constituem uma espécie de cobertura para o colonialismo por assentamento; qualquer crítica a este colonialismo e aos fenómenos que lhe estão associados, como o apartheid, o expansionismo, a limpeza étnica e até o genocídio, é imediatamente tachada de “anti-semitismo”, o que a torna obviamente abominável devido à sua associação com a história dos progroms e, mais recentemente, com o nazismo.
Isto é muito conveniente para o imperialismo e para a direita em todo o lado, como é evidente pelo facto de, mesmo em meio aos atuais horrores que estão a ser infligidos à população de Gaza pelo governo israelense, as manifestações pró-palestinas serem proibidas na maioria dos centros metropolitanos. É claro que, apesar disso, elas estão a ocorrer, mas apesar da desaprovação do governo. De facto, tais manifestações em Londres levaram a ministra britânica do Interior, Suella Braverman, a acusar a polícia londrina de parcialidade pró-palestina!
Uma segunda razão para o apoio imperialista ao colonialismo por assentamento israelense é o facto de estes países terem surgido através do colonialismo por assentamento, ou dele terem beneficiado no passado. Países como os EUA, o Canadá e a Austrália foram produtos do colonialismo por assentamento; tendo praticado a limpeza étnica como meio para a sua própria emergência, dificilmente podem agora desaprovar essa prática, especialmente quando um país favorito como Israel a pratica.
No entanto, a razão mais forte para o seu apoio reside no facto de Israel ter surgido como um forte aliado do imperialismo, como seu sátrapa local na Ásia Ocidental. O imperialismo tem usado vários instrumentos para manter a sua hegemonia na região, desde o apoio a grupos fundamentalistas israelenses (incluindo o próprio Hamas) para enfraquecer os movimentos progressistas-laicos, de esquerda e comunistas na região (o comunismo tinha uma base muito forte no mundo árabe), até mesmo a intervenção armada; e fornecer apoio e armas para o colonialismo por assentamento israelense é um instrumento extremamente poderoso no seu arsenal. Não é surpreendente que, mesmo em meio ao genocídio em Gaza, os EUA tenham votado contra uma resolução da Assembleia Geral da ONU que pedia um cessar-fogo imediato. Ironicamente, pedem uma “pausa” ocasional nos ataques israelenses por razões “humanitárias”. O seu humanitarismo equivale, portanto, a dizer: deixem Israel matar e ferir quantas pessoas quiser, mas o humanitarismo exige que os mortos e feridos sejam periodicamente removidos!
O inevitável desenlace (denouement no original) lógico do colonialismo por assentamento de Israel, se lhe for permitido continuar, é a limpeza étnica genocida da população palestina; pois o encurralamento da população em “prisões ao ar livre” como Gaza, reminiscente das reservas em que os ameríndios foram confinados pelos imigrantes da Europa, não será considerado suficiente para garantir a “segurança” israelense. É instrutivo, neste contexto, que as empresas de construção israelenses queiram trabalhadores indianos para substituir os palestinos, o que apenas sublinha o facto de que a existência de vastas reservas de mão-de-obra do terceiro mundo torna qualquer grupo particular de pessoas, como os palestinos, bastante dispensável para o colonialismo por assentamento israelense.
Este colonialismo por assentamento tem de ser travado, no interesse não só do povo palestino como também dos povos de todo o mundo, pois representa o movimento mais agressivo e implacável do imperialismo contemporâneo, que se reveste de auto-justificação devido aos séculos de sofrimento do povo judeu. Isto só pode ser feito com a pressão da opinião pública mundial. Muitos países, como a Colômbia, a Bolívia e a África do Sul, romperam relações diplomáticas com Israel; um imenso apoio ao povo palestino está a ser expresso em todo o mundo, com manifestações públicas em vários países metropolitanos, onde o número de participantes não tem precedentes nos últimos anos. Muitas destas manifestações foram apoiadas ou organizadas pelo povo judeu local, que exprimiu a sua oposição tanto ao genocídio que está a ser executado em Gaza como à classificação de qualquer oposição ao mesmo como anti-semitismo. O futuro não só do povo palestino, mas dos povos do mundo, depende crucialmente do êxito desta resistência mundial que está a irromper.
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