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quinta-feira, 28 março, 2024

Cláudio Santoro: um século de silêncio no Amazonas

José Ribamar Bessa Freire
 “As estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda oportunidade sobre a terra”. Gabriel Garcia Márquez: Cem anos de solidão. 1967

Há cem anos, nascia em Manaus, na rua Oriental, nº 16, Cláudio Franco de Sá Santoro, o primogênito dos 12 filhos de Cecília e Giotto Michelangelo, no momento em que a gripe espanhola, conhecida como “La dansarina”, devastava o planeta, deixando mais de 50 milhões de mortos, incluindo no Brasil o presidente da República, Rodrigues Alves. Na capital do Amazonas, a média diária pulou de 5 cadáveres para 80, segundo a estatística mortuária registrada no relatório do médico Alfredo da Matta. Os coveiros fizeram greve reclamando do excesso de trabalho e os cadáveres começaram a apodrecer nas casas, praças, ruas, hospitais, atraindo urubus.

O recém-nascido, porém, escapou da “Bailarina”, que foi a pandemia mais letal da história. Dizem que ao sair da igreja de São Sebastião, aonde foi batizado, o bebé contemplou o Teatro Amazonas e exibiu um sorriso ambíguo, não se sabe se de alegria ou de ironia. Ele só morreria aos 69 anos, deixando um legado de mais de 600 peças em quase 30 mil páginas de música escrita, entre elas a Sinfonia nº 10 intitulada “Amazonas”, que o Amazonas nunca ouviu enquanto seu autor era vivo. Dirigiu orquestras em 15 diferentes países, convidado por organizações internacionais que o reverenciavam como um dos maiores nomes da música brasileira. Mas em Manaus, sua cidade natal, não era assim que a banda tocava.

Saraus e recitais

Cláudio foi alfabetizado aos cinco anos no Colégio Salesiano. No aniversário de 10 anos, ganhou um violino do tio Atílio. Aprendeu música com tia Iracema e com o violinista chileno Avelino Telmo, residente em Manaus. Meses depois, o menino prodígio se apresentava em saraus na sua própria casa, tocando violino, acompanhado ao piano por sua mãe. Aos 11 anos, deu recitais públicos na Leitaria Amazonas, no Club Caixeiral, no Polytheama e no Guarany.

– “Ouçam bem essas palavras proféticas, ele será a glória mais fulgurante do Amazonas” – escreveu Adriano Jorge no jornal Commércio de Manaus.

Não deu outra. Mas até lá havia um longo caminho a percorrer. O então governador Nelson de Mello, depois de assistir concerto de Cláudio Santoro no Ideal Club, em 1934, concedeu-lhe uma bolsa para estudar no Conservatório de Música do Distrito Federal. A passagem de navio dele e do pai foi paga com o que arrecadou no caminho: uma apresentação no Teatro da Paz, em Belém, e outra no Teatro Santa Isabel, em Recife.  Já no Rio, deu seu primeiro recital acompanhado pelo pianista Arnaldo Estrella e logo passou a compor sonatas para violino e outras peças.

Aos 19 anos, Cláudio se tornou professor de violino no Conservatório de Música, onde completara seus estudos. Aos 22 anos, em plena Guerra Mundial, casa-se com a violinista Maria Carlota Horta Braga. Recebe prêmios e convites para vários países, incluindo uma bolsa de residência nos Estados Unidos da Fundação Guggenheim, mas não obteve o visto de entrada porque, indignado com a gritante desigualdade social, se aproximara do Partido Comunista Brasileiro.

Aqui pra nós, foi até melhor assim, porque no ano seguinte, em 1947, ganhou bolsa do governo francês para viver em Paris, onde estudou composição com Nadia Boulanger e cursou cinema na Sorbonne. De regresso ao Brasil assumiu, em 1950, o lugar de primeiro violino na Orquestra Sinfônica Brasileira. É quando compõe músicas para crianças e ganha medalhas de ouro e condecorações de melhor instrumentista e compositor.

Canto de paz

A partir daí, sua genialidade se espalha pelo mundo. Recebe em Viena, em 1952, o Prêmio Internacional pelo seu “Canto de Amor e Paz”. Dirige em Moscou a Orquestra Sinfônica, produz músicas para vários filmes, cria a Orquestra de Câmera da Rádio MEC considerada a melhor do Brasil, vai para Londres convidado pela rainha da Inglaterra, em seguida passa uma temporada em Berlim a convite do governo alemão. Em Paris, constroi uma ponte entre música erudita e popular, ao conhecer Vinicius de Moraes, de quem se torna parceiro em várias músicas, entre elas Cantiga do Ausente, Ouve o silêncio, Bem pior que a morte, Amor e lágrimas, gravada por Elizeth Cardoso.

Finalmente, em 1962, Darcy Ribeiro o chama para dirigir o Departamento de Música da UnB, quando organiza o I Simpósio de Educação Musical no Brasil. Casa, pela segunda vez, com a bailarina Gisele Loise Portinho, em 1963, e participa da Primeira Conferência Nacional de Educadores na Universidade de Yale, nos Estados Unidos. Cria então a Orquestra da Universidade de Brasília com músicos nacionais e estrangeiros. Mas o golpe militar de 1964 desmantela a UnB demitindo 288 professores. Em solidariedade a eles, Cláudio Santoro pede exoneração e é imediatamente convidado para ser professor titular da Escola Superior de Música na Alemanha.

Retorna em 1978 à Universidade de Brasília, mas continua viajando para diferentes cidades europeias, especialmente alemãs, aonde é idolatrado. Comemora seus 65 anos em Berlim, lá termina sua 14ª Sinfonia. Morre em 1989, quando inúmeras comemorações estavam programadas para celebrar seus 70 anos na Europa.

Autor do hino oficial do Estado do Amazonas, composto em 1980, o maestro Santoro tentou várias vezes residir em Manaus, sem sucesso. Márcio Souza matou a charada em seu livro “A Expressão Amazonense” (1978):

“Há um secreto alívio quando morre um artista amazonense. Menos um para aporrinhar as antessalas do Governo. Sobretudo se o desaparecido tenha se recusado sempre a ser subserviente ou biscateiro (…) Ele deve passar em silêncio num túmulo qualquer. Bem faz Cláudio Santoro, enriquecendo o povo da Alemanha …”.

Um cara conhecido

Cientista que não é subserviente sofre o mesmo que artista. Alberto Santoro, irmão caçula e quase filho de Cláudio, lidera um grupo de físicos no Grande Colisor de Hádrons (LHC), o maior laboratório do mundo na fronteira da Suíça com a França, publicou quase 400 artigos em revistas especializadas internacionais, dirigiu o Departamento de Física de Altas Energias, da UERJ, mas quando se colocou disponível para voltar a Manaus e contribuir com a ciência no Amazonas, recebeu das autoridades um “vamos ver e coisa e tal”.

Na Europa, nos Estados Unidos, em Brasília e em várias outras cidades brasileiras, ao longo do ano, foram prestadas homenagens a Cláudio Santoro pelo seu centenário de nascimento. Em Manaus, algumas muito tímidas e isoladas: um concerto no Teatro Amazonas com a execução da Sinfonia nº 10, composta em 1982, mas só agora apresentada pela primeira vez na cidade natal do maestro e uma exposição de fotos no ICBEU, com obras inéditas de sua filha Sônia, artista plástica. Lá, o visitante não encontra sequer um livro para assinar sua presença.

Quantos pais, mães, avós, convidaram seus filhos e netos manauaras para se encantarem com a música de Santoro? O que as escolas no Amazonas ensinam sobre “a glória mais fulgurante” do nosso Estado? Qual o espaço da mídia local destinado ao grande maestro? Qual o monumento em sua memória?

Uma escola e uma rua foram batizadas com seu nome: o Liceu de Artes e Ofícios no bairro D. Pedro e uma rua com 43 domicílios no bairro da Paz, na periferia de Manaus. The rest is silence. 

O poder político determina claramente o que as pessoas devem lembrar e o que devem esquecer, quando destina um palacete provincial para ser o Museu da Polícia Militar e não sabe sequer aonde ficava a casa na rua Oriental, berço do maestro. Qualquer família que aceita esse apagamento, contribui para formar brutamontes incapazes de fruir o belo, como aquele que, para nossa vergonha, disse quando morreu João Gilberto: “É, parece que era um cara conhecido”.

Será que as estirpes condenadas a cem anos de esquecimento terão uma segunda oportunidade sobre a terra?

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