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sexta-feira, 29 março, 2024

“Clarice Lispector quis transformar nossa forma de ver o mundo”

“Na Alemanha, ainda que Clarice seja discutida nos cadernos culturais, parece mais forte a fascinação com sua biografia”

DW Brasil –No centenário da autora brasileira, crítico literário e tradutor questiona a visão da escrita dela como apolítica e fala sobre a atualidade de seus textos e a recepção de sua obra na Alemanha.

Clarice Lispector completaria 100 anos nesta quinta-feira (10/12). Nascida em uma pequena cidade da Ucrânia, ela emigrou com os pais para o Brasil ainda criança, estabelecendo-se no Recife, e acabou se tornando um dos maiores nomes da literatura brasileira.

Por ocasião do seu centenário, a DW Brasil conversou com o escritor, crítico literário e tradutor alemão Oliver Precht. Formado em Filosofia, Religião e Literatura Lusófona pela Universidade Ludwig Maximilian de Munique e pela Universidade da Califórnia em Berkeley, ele traduziu para o alemão obras brasileiras pela editora Turia + Kant.

Na edição deste mês da prestigiosa revista de arte alemã Texte zur Kunst, Precht publicou um artigo no qual questiona a visão da escrita de Clarice Lispector como “apolítica”. “Ela quer transformar não apenas nossa forma de ver o mundo, mas de ser e estar no mundo. E que dessa mudança surja uma nova moral e uma nova ética de convivência. Isso é política”, afirma à DW Brasil.

Na entrevista a seguir, Precht também fala sobre a recepção da obra de Clarice na Alemanha e as dificuldades de traduzir textos dela e conta que, quando a autora entrou em sua vida, viu um “novo cosmo” se abrir.

DW Brasil: O senhor tem trabalhado com a escrita de vários autores brasileiros, e a escrita de Clarice Lispector parece assumir uma importância especial no seu pensamento sobre o Brasil e a linguagem em geral. Como começou sua relação com a língua portuguesa e a literatura brasileira em geral?

Oliver Precht: Meu primeiro interesse pela língua portuguesa veio com o Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa. Mais tarde, durante meus estudos de Filosofia, meu interesse pela língua portuguesa continuou, e aos poucos comecei a me aventurar também pela literatura brasileira, com um interesse por tradução e a história de certas traduções. Foi nesse momento que Clarice Lispector começou a entrar na minha vida. Minha reação foi como a de muita gente, fiquei completamente tomado pela força daquela escrita. Era a abertura de um novo cosmo. Ao mesmo tempo, comecei a me interessar pelos textos de Hélène Cixous sobre Clarice Lispector, já que eu vinha do mundo da filosofia e tinha um contato especial com os franceses.

O senhor traduziu livros de Oswald de Andrade e Eduardo Viveiros de Castro. Há uma conexão entre esses autores como pensadores do Brasil. Como Clarice Lispector entra nessa discussão?

No trabalho de Eduardo Viveiros de Castro junto a algumas das culturas ameríndias, há uma discussão muito importante sobre as relações entre humanos e animais. Aqui, eu diria que há uma conexão muito interessante com vários textos de Clarice Lispector, como A Paixão segundo G.H., no qual o momento de revelação parece levar a uma abertura das fronteiras entre o humano e o não humano. É algo que aparece em grande parte do seu trabalho. Essa abertura ganha muitos nomes na escrita dela, como o “neutro”, a “placenta”. Poderíamos dizer o mesmo sobre a distinção entre cultura e natureza. Ela mira experiências que parecem estar além dessa separação.

O senhor mencionou a importância da tradução, e já traduziu textos brasileiros difíceis como os manifestos de Oswald de Andrade. Como tem sido o processo de tradução de Clarice Lispector na Alemanha?

A história das traduções de Lispector na Alemanha está muito conectada ao chamado boom latino-americano da década de 1960, que chegou um pouco mais tarde à Alemanha. Já na década de 1950 havia um número considerável de traduções nos Estados Unidos, impulsionado pela política externa norte-americana, a chamada “política de boa vizinhança”.

Isso chegaria com força à Alemanha numa data muito precisa, 1976, quando a Feira do Livro de Frankfurt pela primeira vez teve um foco específico. O primeiro foco foi a América Latina. Foi um evento muito importante aqui, e teve consequências muito positivas para a recepção de escritores latino-americanos.

Em dez anos, uma editora alemã importante como a Suhrkamp teria mais de cem títulos latino-americanos em seu catálogo. E isso foi muito lucrativo para a editora. Foi como uma explosão repentina. Foi nesse contexto que muitos dos primeiros livros de Clarice Lispector chegaram aqui, entre 1976 e 1990. Há uma exceção, o livro que na Alemanha receberia o título Die Nachahmung der Rose (A Imitação da Rosa, no original), traduzido e publicado em 1966.

A tradução desses primeiros contos esteve a cargo de Curt Meyer-Clason, que traduziu a maior parte dos escritores brasileiros naquelas décadas. Essas são as mesmas traduções que estão sendo relançadas?

Não. As traduções dos contos são novas, assim como as de alguns dos romances. A Hora da Estrela foi traduzido por Curt Meyer-Clason como Die Sternstunde em 1985. A nova tradução é de Luis Ruby, publicada em 2013 como Der große Augenblick, ou O Grande Momento. Alguns livros ainda não foram retraduzidos, e mesmo nos Estados Unidos, onde o processo está mais adiantado, não parecem ser prioridade, como o romance A Maçã no Escuro, que foi traduzido por Curt Meyer-Clason como Der Apfel im Dunkel e lançado pela Surhkamp em 1983.

Outro caso é o livro Perto do Coração Selvagem, que foi traduzido por Ray-Güde Mertin como Nahe dem wilden Herzen em 1981, e agora teve a tradução revista por Corinna Santa Cruz, saindo em 2016 com o mesmo título mas assinada pelos dois. As novas traduções chegaram no encalço da explosão de interesse por Clarice Lispector nos Estados Unidos, após a nova biografia [Why This World: A Biography of Clarice Lispector (2009)de Benjamin Moser].

Seria possível dizer que há uma espécie de hiato entre a recepção de Clarice Lispector em países como França e Estados Unidos se comparada à da Alemanha. A reação parece ser mais morna aqui. A que você atribuiria essa diferença? Por que a febre não pegou tão forte aqui?

A reação na França foi muito particular. Estava ligada ao interesse de Hélène Cixous, que estava trabalhando muito de perto com uma pequena editora, a Éditions des Femmes. Clarice Lispector era uma das autoras, entre muitas outras. O trabalho de Clarice Lispector na França foi discutido num contexto específico do feminismo e do discurso filosófico. Era um campo muito específico para a recepção da obra dela.

Na Alemanha, eu diria que ela não recebeu a atenção que merecia por aparecer também como uma das autores em meio a muitos outros do boom latino-americano, sem mencionar que os brasileiros jamais se encaixaram muito bem nesse rótulo, especialmente quando ele estava concentrado no conceito de “realismo mágico”. Houve interesse naquele momento, mas a partir da década de 1980 ele praticamente desapareceu.

Até que na Feira do Livro de 2013 houvesse um novo despertar da atenção a brasileiros. Mesmo assim, na Alemanha ele ainda não atingiu o patamar do interesse que tem nos Estados Unidos. As traduções têm sido resenhadas. Mas muitas vezes os artigos se concentram nos aspectos biográficos de Clarice Lispector. E na Alemanha não há muitos trabalhos acadêmicos e críticos sobre ela. O campo dos Estudos Lusófonos aqui é muito pequeno e não tem grande alcance, diferente dos Estados Unidos, onde o campo dos Estudos Latino-Americanos é maior. Na Alemanha, ainda que Clarice Lispector seja discutida nos cadernos culturais, ainda parece mais forte a fascinação com a figura dela, sua biografia.

Você poderia dar exemplos específicos sobre as dificuldades de tradução de um texto de Clarice Lispector para o alemão?

A tradução da escrita dela é muito específica, tem desafios muito particulares. É difícil traduzir expressões muito simples do português brasileiro como “fazer-se de sonso”. E há escolhas entre tradutores. Por exemplo, o conto A Imitação da Rosa foi traduzido por Curt Meyer-Clason como Die Nachahmung der Rose. “Nachahmung” é literalmente “imitação”, mas na nova tradução de Luis Ruby ele optou pela palavra “Nachfolge“, que está mais próxima de “sucessão”, do que vem depois, sem perder totalmente a acepção de imitar. São escolhas diferentes, e é por isso que me parece importante que haja várias traduções de um texto. Algumas palavras sempre serão desafios, como a fascinação de Clarice Lispector pela palavra “é”, por sua brevidade e completude, mas que não é breve em alemão [ist].

Em seu artigo que acaba de ser publicado na revista Texte zur Kunst, você parte de textos como O ovo e a galinha e Mineirinho, para questionar a visão da escrita dela como “apolítica”. Você poderia falar um pouco sobre esses aspectos políticos do trabalho de Clarice Lispector?

É compreensível que se tenha essa impressão da escrita de Clarice Lispector como “apolítica”, porque ela não escreve de forma explícita sobre as questões políticas do seu tempo. Não é absurda a visão. Ela também não era muito ativa politicamente, com exceções, como sua participação na Passeata dos Cem Mil no Rio de Janeiro, em 1968. Ela se manteve, porém, relativamente silenciosa sobre questões políticas.

Numa entrevista televisiva, houve uma pergunta muito direta sobre o papel do escritor brasileiro naquele momento, para a qual ela deu uma resposta muito interessante: “O de falar o menos possível.” Mas é importante notar que falar “o menos possível” não significa “se recusar a falar”. Eu parto de textos como Mineirinho para tentar chegar a essa dimensão política.

Na entrevista, me parece muito interessante que ela mencione O ovo e a galinha como um dos seus “filhos” favoritos, mas que ao mesmo tempo diga que ela própria não entende o texto. É nesse contexto que ela também menciona Mineirinho, uma crônica sobre a execução de um criminoso “com 13 balas, quando uma só bastava. O resto era vontade de matar”. Num momento como esse, quando há uma discussão muito forte sobre violência policial, é estranho que esse texto não seja muito mencionado. É o texto mais obviamente político dela. Mas mesmo ali ela não entra numa discussão sobre desarmamento.

A discussão vai para aspectos mais profundos sobre nossa noção de justiça. Assim como outros aspectos poderiam nos ajudar em nossas discussões sobre a separação do masculino e do feminino, ou, em tempos de extinção de espécies, sobre nossas relações com os animais.

Clarice Lispector quer transformar não apenas nossa forma de ver o mundo, mas de ser e estar no mundo. E que dessa mudança surja uma nova moral e uma nova ética de convivência. Isso é política. E está aí também o que eu vejo como a grande atualidade da obra de Clarice Lispector, seja para a Alemanha ou para o Brasil.

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