Ao longo da sua história o regime capitalista apresenta uma grande disparidade em matéria de crescimento. Por isso mesmo, costuma dar-se um período histórico no qual este ou aquele país funciona como líder ou potência hegemónica. Para a seguir avançar a outro período em que é outra a potência dominante. Fala-se, por exemplo, da Holanda, da Inglaterra, da França, dos Estados Unidos, etc. Quando acaba a Segunda Guerra Mundial os Estados Unidos convertem-se na grande superpotência, esmagadoramente superior no plano económico e no militar. No quarto de século que se seguiu, a Europa e o Japão parecem alcançá-lo. Mas a seguir, com a ascensão do neoliberalismo, os ritmos de crescimento tendem a abrandar-se. E a deterioração dos EUA em relação ao Japão e à Alemanha parecia deter-se ou, pelo menos, não se agudizar. Mas ao iniciar-se o século XXI (ou antes) surge um novo desafio: o da China.
Este país vem de muito baixo e de um período em que, sob a direcção de Mao-Tse-Tung, procurou avançar para o socialismo. Projecto que é cancelado e que deu lugar ao arranque de uma via capitalista no qual o país cresce a ritmos desenfreados. E de facto começa a desafiar aquela que ainda é a grande superpotência: os Estados Unidos.
Aparentemente este país continua a ser a primeira potência mundial. Mas pode ser que a China o esteja a alcançar e até a superá-lo. Para isto, convém recordar alguns dados básicos. [2]
Em termos de Produto por habitante, usando taxas de câmbio de paridade, o FMI estima que no ano de 2015 o PIB per capita dos EUA chegava aos US$52704 e o da China a US$13572. Ou seja, a China situava-se a uns 26% do nível dos EUA. E como o diferencial de taxas de crescimento é muito diferente, o desnível vai-se reduzindo cada vez mais. [3]
De facto, em termos globais o PIB total da China já supera o dos Estados Unidos. No ano de 2015, os EUA representavam uns 15,8% do PIB mundial e a China uns 17,1%.
Quanto ao PIB industrial, se fazemos o PIB dos EUA igual a 100 temos que no ano 2014 o da China era igual a 125, a preços constantes do ano 2000. A preços correntes no mesmo ano de 2014 temos EUA = 100 e China = 130. A superioridade, consequentemente, é evidente.
O que se passa com a produtividade do trabalho no sector manufactureiro? [4] Entre 1992 e 2018 a taxa média anual foi:
Mundo | 2,3% ao ano |
Países desenvolvidos | 3,0% ao ano |
China | 9,5% ao ano |
Também se deve notar: o desenvolvimento industrial da China não se concentra nos sectores de baixa tecnologia. Entre 2005 e 2017 os dados básicos são mostrados no quadro I.
Quadro I: Participação da China na produção manufactureira mundial segundo níveis tecnológicos
Segmentos tecnológicos segundo níveis de complexidade | ||
Baixa complexidade | 7,4 % | 20,2 % |
Média-baixa complexidade | 8,6 % | 23,7% |
Alta e média-alta complexidade | 7,0 % | 21,1 % |
Fonte: UNIDO, Industrial Development Report 2020.
Observa-se que em todos os níveis tecnológicos a participação da China eleva-se e tende a triplicar apenas nos 12 anos que vão de 2005 a 2017. E deve-se sublinhar que isto também ocorre nos ramos com maior complexidade tecnológica.
O que acontece com as exportações?
Examinemos rapidamente a dinâmica desta variável crucial. Medindo em dólares, para 1970 temos os EUA representavam uns 15,7% do total mundial e a China uns pequenos 0,6%. No ano de 2003, a porção dos EUA havia descido para 11,1% e a da China subido para 4,9%. A seguir, em 2015, a parte dos EUA experimentou uma ligeira descida: chegou a 10,8%. Entretanto, a quota da China saltou até 11,6%.
O avanço científico-técnico também é crucial na luta pela supremacia económica e política. E pode-se esperar que neste campo o atraso relativo da China seja maior. Não obstante, nos últimos anos já se observam números muito respeitáveis e congruentes com os mostrados no Quadro I. Consideramos o gasto em I&D associado à indústria manufactureira (A) e a chamada “intensidade em I&D”, que se entende como gastos em I&D aplicados no sector sobre o Valor Agregado do sector (B). Para países seleccionados no ano de 2011 tem-se:
Quadro II: Gastos em investigação e desenvolvimento associados ao sector manufactureiro, 2011
Estados Unidos | 201,36 | 10.56 % |
Alemanha | 55,77 | 7,93% |
Japão | 100,36 | 12,35 % |
China | 162,47 | 3,78 % |
(*) Taxas de câmbio de paridade. Fonte: UNIDO, Industrial Development Report 2016; pág. 89. N. York, 2016.
Como se pode observar, os gastos absolutos da China já alcançam um montante considerável: são superados apenas pelos EUA. Quanto à intensidade, ainda está muito abaixo do vigente no Japão, EUA e Alemanha. Ou seja, neste indicar a China ainda tem um campo amplo para a sua expansão tecnológica. Basta pensar que se a China chegar a uma intensidade em I&D igual a 8,0% (ou seja, semelhante àquela agora da Alemanha), seu gasto absoluto iria aos 325 milhões de milhões de dólares, número que superaria amplamente o dos Estados Unidos. E deve-se sublinhar: no plano científico e tecnológico o que conta são os números absolutos do gasto.
Nesta muito breve recapitulação também se pode dar uma vista de olhos ao poderio militar. Para isso, consideramos as cifras do gasto militar da China, dos Estados Unidos e do total mundial. Entre 2001 e 2014, o gasto militar mundial sobe 85% (a 4,8% ao ano). O gasto dos EUA eleva-se em 45,9% (2,9% ao ano) e o da China sobe 283% (10,9% ao ano). A dinâmica do gasto militar é tremendamente desigual (em favor da China) ainda que esta continue a estar, em termos absolutos, muito abaixo da dos Estados Unidos. No ano 2001 os gastos chineses equivaliam a 12% dos estado-unidenses, no de 2017 a 16% e no de 2014 a 33%. Os últimos números disponíveis (não estritamente comparáveis) assinalavam que em 2019 o gasto militar chinês atingia 37,1% do que realizavam os Estados Unidos. Além disso, em matéria de gastos em armamento nuclear, a China já se posicionava num segundo lugar mundial, depois dos EUA. [5]
Quadro III. Gastos militares, China e EUA, 2001 a 2014, dólares constantes de 2014 (**)
1) Total mundial | 946 891,50 | 1 548 707,87 | 1 752 621,76 | 185,1 |
2) EUA | 418 135,44 | 635 921,05 | 609 914,00 | 145,9 |
3) China | 52 179,22 | 103 715,57 | 199 651,44 | 382,6 |
4) EUA + China | 470 314,65 | 739 636,62 | 809 565,44 | 172,1 |
5) = 2 / 4 | 0,89 | 0,86 | 0,75 | |
6) = 3 / 4 | 0,11 | 0,14 | 0,25 |
(*) 2014 sobre 2001. (**) US$ milhões. Fonte: SIPRI, base de dados (3/03/2017).
No plano global há que considerar a muito possível aliança económica da China com o Vietname e inclusive com a Coreia do Sul (esta com dificuldades maiores), um bloco que seria formidável. Também se poderia acrescentar a Rússia, o que proporcionaria ao bloco um poderio militar incontestável. E se a ele se pudesse acrescentar o Japão (algo muito menos provável), o deslocamento geográfico do centro do poder mundial seria inevitável. [6] Na realidade, o que se perfila no futuro é uma zona, a do sudeste asiático, que mostra um capitalismo industrializador e desenvolvimentista, afastado de todo das misérias neoliberais e que já começa a se constituir como novo centro da economia mundial.
No acima indicado observa-se uma situação que, em termos históricos, não é nova: a potência dominante conserva um poder militar superior, mas vai perdendo terreno no plano económico. No fim, se esta tendência se mantém, deve-se produzir uma dissociação muito forte entre os poderes económicos e os militares. Entretanto, na potência emergente, o poder económico cresce e vai, até certo momento, muito acima do poder militar. No fim, o poder militar deveria alcançar o económico, sendo este, muito provavelmente, o momento do deslocamento da velha potência hegemónica pela nova. No caso que nos preocupa, se as tendêncis se mantiverem, a mutação poderia dar-se dentro de uns 10 ou 15 anos, por volta de 2040-50.
Também é necessário precaver-se contra extrapolações ingénuas. Os problemas internos da China até agora não são muito visíveis, mas não são menores. O regime de exploração da força de trabalho operária e camponesa, a partir da reversão do capitalismo (impulsionada por Teng-Siao-Ping et al.), foi forte. Alguns analistas chegaram a falar de uma espécie de “ditadura” contra os trabalhadores do campo e da cidade e que esta situação deveria dar lugar, mais cedo ou mais tarde, a inquietações, reclamações e protestos. Afinal de contas, alguma memória deve restar dos tempos revolucionários, da longa marcha e da revolução cultural. Tão pouco se deve esquecer: a) ainda que a distribuição seja muito regressiva, o crescimento absoluto dos níveis de vida foi elevado e isso suaviza todo possível conflito; b) com bom olfacto, a liderança chinesa nos últimos anos alterou a rota do desenvolvimento começando a dar mais peso ao mercado interno e buscando uma distribuição menos regressiva. Em suma, se bem que não se possa augurar um caminho claro, uma insurreição no estilo Mao parece – por agora – mais do que remota.
Esta revisão, ainda que sumária, é suficiente para comprovar o que muitos já sabem: a China começou a alcançar e inclusive a superar o poderio económico dos Estados Unidos. Fenómeno que nos próximos anos deveria acentuar-se. E que, muito provavelmente, deveria dar lugar a colisões de ordem maior. Para o caso, vale recordar um texto clássico:
“o capital financeiro e os trusts (…) acentuam a diferença entre o ritmo de crescimento dos diferentes elementos da economia mundial. E se a correlação de força mudou, como se podem resolver as contradições, sob o capitalismo, senão pela força?”. Também podemos ler: “no terreno do capitalismo, que outro meio pode haver que não seja a guerra, para eliminar a desproporção existente entre o desenvolvimento das forças produtivas e a acumulação de capital, por um lado, e a repartição das colónias e das esferas de influência do capital financeiro, por outro?” [7]
No caso que nos deve preocupar, é claro que a política chinesa foi extremamente prudente no plano político-miitar. E não é de esperar que mude na próxima década ou pouco mais. O tempo, sabem-no bem os dirigentes chineses, trabalha a favor deles. Mas não é este o caso dos EUA: o tempo e o continuísmo político o afundará cada vez mais. Mais ainda: a seguir à grande fraude eleitoral em favor de Biden, poder-se-ia esperar, de Biden e de sua vice-presidenta (que parece mais “falcona” do que a própria Hillary Clinton) e sobretudo do chamado “Deep state”, uma agressão até desesperada.
O recurso à guerra certamente não é novo (acaso não é a continuação da política por outros meios?) e sabe-se a brutalidade dos seus custos. Mas há um dado novo: o que pode acontecer quando ambos os lados são potências nucleares? Poderia o mundo resistir a uma guerra com ataques nucleares maciços de ambos os lados? Com as coisas assim, não se chegaria a eliminar a própria existência humana? Poderíamos também supor ou simplesmente desejar que, antes, essa humanidade se levantará para por um basta a tamanho destino. E que talvez o faça arvorando o lema de Rosa Luxemburgo: “socialismo ou barbárie”.
2. Há números que poderiam ser actualizados alguns anos (dois ou três). Só acrescentariam que as distâncias se encurtam ou que a superioridade já presente da China acentuou-se.
3. Os números apresentados (salvo indicação expressa) são tomados do Banco Mundial, da ONUDI ou do FMI.
4. Países desenvolvidos inclui EUA. Fonte: UNIDO, “Industrial Development Report 2020.
5. Dados do SIPRIS, Military expenditure, DataBase, 2020.
6. Ver Sit Tsui, Erebus Wong. Lau Kin Chi y Wen Tie Jun, “One belt, one road. China’s Strategy for a New Global Financial Order”; Monthly Review, Vol. 68, n°8, January 2017.
7. V. I. Lenin, “El imperialismo, fase superior del capitalismo”, en Obras Escogidas, Tomo 1, págs. 771 y 773. Edit. Progreso, Moscú, 1974.
[*] Economista, Depto. Economía, UAM-I, México.
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