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terça-feira, 8 outubro, 2024

China: um país, duas sessões, três ameaças

Foto Xinhua: Reunião anual do Congresso Nacional do Povo
Pepe Escobar, Asia Times
As conclusões chaves das Duas Sessões do 13º Congresso Nacional do Povo em Pequim já são de domínio público.

Em resumo: não há meta para o PIB de 2020; déficit no orçamento de no mínimo 3,6% dp PIB; um trilhão de yuan em bônus especiais do Tesouro; taxas/impostos de empresas cortados em by 2,5 trilhões de yuan; o orçamento da Defesa terá aumento modesto de 6,6%; e o governo, em todos os níveis comprometido com “apertar os cintos”.

O foco, como previsto, é pôr a economia doméstica da China, pós-Covid-19, em trilha para crescimento sólido em 2021.

Também previsivelmente, todo o foco da esfera anglo-norte-americana foi dirigido para Hong Kong – como no novo marco legal a ser aprovado semana que vem, arquitetado para impedir subversão, interferência estrangeira “ou quaisquer atos que ponham sob risco severo a segurança nacional.” Afinal, como destaca um editorial de Global Times, Hong Kong é assunto de segurança nacional extremamente sensível.

É resultado direto das informações que a missão chinesa de observadores com base em Shenzhen recolheu, dos tumultos, disparados por farto sortimento de 5ª-colunistas e black-blocs armados, que quase destruíram Hong Kong no verão passado.

Não surpreende que o front de “combatentes da liberdade” anglo-norte-americano esteja lívido. O desafio está lançado. Acabaram-se as ‘manifestações’ pagas. Fim dos black blocs. Acabou-se a ‘guerra híbrida’. Baba [papai] Pequim chegou cheio de novidades.

As três ameaças

É absolutamente essencial localizar as Duas Sessões no contexto geopolítico e geoeconômico incandescente maior da nova Guerra Fria de facto – incluída a guerra híbrida – entre EUA e China.

Concentremo-nos num norte-americano insider: o ex-conselheiro de segurança nacional da Casa Branca tenente-general HR McMaster, autor de Battlegrounds: The Fight to Defend the Free World (Campos de Batalha: a luta para defender o mundo livre), no prelo.

É a versão mais absolutamente explícita do que há em termos de como o, em pentagonês, ‘mundo livre’vê a ascensão da China. Podem chamá-la de visão do complexo industrial-militar-vigilância-mídia.

Pequim, per McMaster, estaria procurando uma política de “cooptação, coerção e dissimulação” em torno de três eixos: Made in China 2025; as Novas Rotas da Seda, ou Iniciativa Cinturão e Estrada; e uma “fusão civil-militar” –, em outras palavras o vetor mais “totalitário”, orientado para criar uma rede de inteligência global, para espionagem e ciberataques.

Podem chamar de “as três ameaças”.

Seja qual for a conversa no Departamento de Estado, Made in China 2025 continua vivo [o programa] e operante – mesmo que a terminologia não apareça.

O objetivo a ser alcançado via $1,4 trilhão em investimentos, é (1) lucrar com o conhecimento acumulado por Huawei, Alibaba, SenseTime Group e outros grupos, para projetar um ambiente de Inteligência Artificial contínuo, sem interrupções e saltos. No processo, a China deve (2) reinventar a própria base tecnológica e reestruturar toda a cadeia de suprimento de semicondutores, para torná-la doméstica. Esses dois itens não são negociáveis.

Cinturão e Estrada, em pentagonês, é sinônimo de “clientelismo econômico” e “cruel armadilha de dívida”. Mas McMaster entrega o jogo, ao descrever o pecado capital como “o objetivo de deslocar a influência dos EUA e de seusparceiros chaves.”

Quanto à, em pentagonês, fusão “militar-civil”, trata-se de transferir rapidamente para o exército “tecnologias roubadas em áreas como espaço, ciberespaço, biologia, inteligência artificial e energia”. Nada além de “espionagem e ciber-roubo.”

Em resumo: é essencial “revidar” é contra esses comunas chineses “ainda mais agressivos na promoção de sua economia estatista e modelo político autoritário.”

Fala a diáspora chinesa

À parte essa avaliação binária, muito rasteira, McMaster afirma um ponto interessante: “EUA e outras nações livres devem ver comunidades de expatriados como uma força. Chineses no exterior – se protegidos do contato e da espionagem a favor do governo da China – podem garantir ‘resposta’ interessante contra a espionagem e a desinformação que vêm de Pequim.”

Assim sendo, comparemos essa conversa com os insights de um verdadeiro mestre em diáspora chinesa: o notável professor Wang Gungwu, nascido em Surabaya na Indonésia, que completará 90 anos em outubro próximo e é autor de um delicioso, agudo livro de memórias Home is Not Here. [O lar não é aqui].

Para não chineses, não há melhor explicação do modo de pensar predominante em toda a China:

“Duas gerações de chineses, pelo menos, aprenderam a considerar que é possível que o ocidente moderno tenha ideias e instituições valiosas a oferecer, mas os tumultos que ocuparam grande parte do século 20 também as fizeram ver que as versões ocidentais europeias de democracia podem não ser assim tão importantes para o desenvolvimento nacional da China. A maioria dos chineses parece aprovar políticas que põem a ordem e a estabilidade acima da liberdade e da participação política. Creem que nesse estágio o país precisa dessas ideias, e não gostam de ser regularmente criticados, como se fossem atrasados e incapazes de decidir sobre o próprio destino.”
Wang Gungwu reforça que os chineses pensam de modo muito diferente da trajetória “universalista” do ocidente, e assim chega ao âmago do assunto: “Se a República Popular da China oferecesse via alternativa para a prosperidade e a independência, os EUA (e outros pontos no Ocidente) veriam aquela outra via como ameaça à sua (e dos europeus ocidentais) dominação mundial. Os que se sentem ameaçados fariam então tudo que pudessem, para deter a China. Parece-me que isso é o que a maioria dos chineses creem que os líderes norte-americanos estejam preparados para fazer.”

Nenhuma avaliação feita pelo Estado Profundo dos EUA conseguirá manter-se em pé se ignorar a riqueza da história chinesa: “A natureza da política da China, fosse sob imperadores, senhores-da-guerra, nacionalistas ou comunistas, esteve sempre tão fundamente enraizada na história chinesa, que nenhum indivíduo ou grupo de intelectuais conseguiria oferecer visão nova que atraísse a maioria do povo chinês. No fim, aquela maioria pareceu aceitar a legitimidade da vitória da República Popular da China no campo de batalha, combinada à capacidade para levar ordem e propósito a uma China rejuvenescida.”

O “Longo Telegrama” remix

O procurador federal Francis Sempa, autor de America’s Global Role [O papel global dos EUA] e professor adjunto de ciência política nan Wilkes University, comparou a avaliação da “ameaça” chinesa de McMaster, ao lendário “Longo Telegrama” escrito por George Kennan em 1947, sob o pseudônimo de X.

Aquele “longo telegrama” traçou a estratégia subsequente para conter a União Soviética, completada com a construção da Organização do Tratado do Atlântico Norte, OTAN. Foi como um ‘plano diretor’ da primeira Guerra Fria.

O atual e rasteiro Longo Telegrama remix pode talvez também ter longas pernas. Sempa, e é mérito seu, pelo menos admite que “as tímidas recomendações políticas de McMaster não levarão ao gradual desmonte nem a suavizar o poder comunista chinês”.

Ele sugere – e o que mais seria? – “contenção”, que deve ser “firme e vigilante”. E reconhece, também mérito seu, que deve ser “baseada num entendimento da história chinesa e na geografia do Indo-Pacífico.” Mas então, outra vez, entrega o jogo – em verdadeiro estilo Zbigniew Brzezinski: o que mais interessa é “a necessidade de impedir que uma potência hostil controle os centros chaves de poder do continente eurasiano.”

Não surpreende que o Estado Profundo dos EUA identifique Cinturão e Estrada e seus ramos, como a Rota da Seda Digital e a Rota da Seda Sanitária por toda a Eurásia, como manifestações de uma “potência hostil.”

O fulcro de toda política exterior dos EUA desde a 2ª Guerra Mundial sempre foi impedir a integração da Eurásia – objetivo agora ativamente buscado pela parceria estratégica Rússia-China. Novas Rotas da Seda que cruzam a Rússia – parte de Putin da Parceria Grande Eurásia – fatalmente se fundirão com Cinturão e Estrada. Putin e Xi voltarão a se encontrar, cara a cara, em meados de julho, em São Petersburgo, para duas cúpulas, dos BRICS e da Organização de Cooperação de Xangai, e avançarão nas discussões com maior detalhes.

Pairanto silenciosamente sobre as Duas Sessões, está a compreensão, na liderança chinesa, de que voltar rapidamente a cuidar dos assuntos domésticos é essencial para um novo impulso sobre o tabuleiro de xadrez. Sabem que o complexo industrial-militar-de vigilância-e mídia não poupará golpes, sejam quais forem, e usarão qualquer possível estratégia geopolítica e geoeconômica para sabotar a integração da Eurásia.

Made in China 2025; Cinturão e Estrada – o equivalente pós-moderno da Antiga Rota da Seda; Huawei; o destaque da manufatura chinesa; achados na luta contra o Covid-19 – tudo é alvo. Pois paralelamente, nada – de longos telegramas remix a ruminações azedadas da Armadilha de Tucídides – impedirá uma China rejuvenescida, de atingir seus próprios alvos.

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