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quinta-feira, 28 março, 2024

Chacina do Jacarezinho: Para o Estado, as vidas de negros, pobres e favelados não importam?

Por Wallace de Moraes/Le Monde Diplomatique

Perguntas que não querem calar sobre a Chacina no Jacarezinho de maio de 2021

Vinte e oito pessoas foram assassinadas no dia 6 de maio de 2021 na favela do Jacarezinho no Rio de Janeiro. Com vistas a colaborar para o melhor entendimento dessa chacina, apresentamos um texto só com perguntas que “não querem calar”. Esperamos que elas ajudem a pensar e a elucidar os fatos, que não são pouco comuns no nosso país. Vamos a elas.

Sobre o planejamento da operação e os resultados humanos

Quais foram os propósitos da operação policial no Jacarezinho? Houve planejamento para assassinatos, execuções, para desfazer as cenas dos crimes? Houve previsão para invasão dos domicílios das pessoas? Os comandantes da operação sabiam que no Jacarezinho tinham pessoas armadas? Alguém imaginou que elas pudessem resistir? Foi previsto que policiais, crianças, adolescentes, enfim, seres humanos poderiam morrer na operação? Para o Estado, as vidas de negros, pobres e favelados não importam?

Os governantes pensaram no trauma para crianças, adultos e adolescentes que assistiram a execuções sumárias de pessoas? Pensaram nas famílias acuadas diante de tantos tiros? Levaram em conta o número de crianças que vivem na comunidade? Refletiram sobre o peso da crise para os trabalhadores que não puderam sair de casa? Ponderaram que um enorme tiroteio pudesse resvalar em passageiros do metrô e de outros transportes públicos? As autoridades que determinaram a ação policial pensaram nas milhares de pessoas que ficaram com suas vidas em risco com a operação? Não calcularam nada disso ou foi tudo planejado e, portanto, o objetivo era realmente fazer correr sangue de pobres, negros e favelados? Se planejaram tudo isso, o confronto era a melhor opção? Qual objetivo justificava colocar todas as vidas supracitadas em risco? Se houve planejamento, ele foi bem executado? Se sim, podemos concluir que o Estado é assassino, colonialista e racista e o policial é um capitão do mato contemporâneo? Aliás, quem mais morre com ações policiais nas favelas e periferias são os pobres e pretos? Não existem direitos civis para essas pessoas? Para o Estado, as vidas de negros, pobres e favelados não importam?

 

Sobre o racismo colonialista ainda persistente

Durante o período de escravidão explícita no Brasil, os negros eram tratados como não humanos, os indígenas como sub-humanos. As favelas são habitadas majoritariamente por descendentes dessas etnias, é por isso que o tratamento é diferente? Em suma, os moradores das favelas e periferias por serem descendentes dos corpos escravizados em sua maioria ainda são tratados de maneira similar ao período da escravidão? Os direitos para eles são meramente formais, pois na prática não são respeitados? A polícia faria a mesma operação em condomínios de luxo, habitados majoritariamente por ricos e descendentes dos colonizadores? Para o Estado, as vidas de negros, pobres e favelados não importam?

Sobre o tráfico de drogas

Como chegam as drogas nas comunidades? Existem policiais e políticos que se beneficiam do tráfico de drogas realizados por jovens pobres nas favelas? É verdade que existe o que popularmente se chama de “arrego”, isto é, dinheiro que os vendedores de droga ilícita são obrigados a pagar para os policiais permitirem o seu comércio? Manter as drogas ilegais ajuda na existência de corrupção nas polícias e na política de terror sobre as favelas? A política de combate às drogas está em curso há décadas. A venda de drogas acabou em algum lugar por isso? Houve alguma melhora na qualidade de vida das pessoas que moram nas favelas em função dessa política? Houve alguma diminuição da suposta criminalidade? As incursões policiais nas favelas resultam em assassinatos de crianças e adolescentes? Essas ações acabam com o tráfico de drogas? Para o Estado, as vidas de negros, pobres e favelados não importam?

favelados
(Foto: Laura Toyama/ LMDB)

Sobre o tráfico de armas

Liberar o comércio de armas, como alguns políticos propõem, atende a quais interesses? Como os supostos “traficantes” têm acesso às armas de grosso calibre? Eles não fabricam essas armas nas comunidades, não é? Como elas chegam ao Brasil e às favelas? Interessaria às polícias (federal, rodoviária, militar, civil), às Forças Armadas (Exército, Marinha Aeronáutica) e às agências de inteligência (ABIN) investigar isso? Com tantos recursos tecnológicos e de pessoal, não seria interessante montar uma força tarefa nacional para combater o comércio ilegal de armas? Interessa às indústrias de armas vender fuzis para os supostos “traficantes” e para os governos armarem suas polícias? Isto é, interessa às indústrias de armas a guerra ao tráfico, mas sem jamais acabar com ele? É verdade que seus altíssimos lucros estão diretamente ligados ao comércio que a venda de munições, helicópteros, carros-tanque e equipamentos de segurança (coletes, capacetes etc.) proporcionam? Quem dirige os lobbies das indústrias de armas no Brasil? Quem propõe a liberação do comércio de armas está a favor da política de extermínio em curso, buscando aprofundá-la? Ao defender essas políticas, essas pessoas sabem que as vidas de pobres, negros e favelados estão em risco? Quem acoberta as milícias está a favor da liberação do comércio de armas no Brasil? Para o Estado, as vidas de negros, pobres e favelados não importam?

Armas ou educação: qual é o melhor caminho e para quem?

Seria melhor investir em educação para os pobres com escolas integrais decentes, contendo piscinas, quadras poliesportivas, ar-condicionado nas salas, computadores de primeira qualidade, profissionais de educação com salários dignos, total infraestrutura para o exercício do ensino-aprendizagem? Seria interessante investir em creches, atividades esportivas e culturais nas comunidades? O valor de um fuzil daria para colocar quantos ar-condicionado nas salas de aula, quantos computadores? Daria para pagar quantas bolsas de R$400 para alunos estudarem nas comunidades? Quantos fuzis possuem as polícias civis, militares e as Forças Armadas? Qual é a prioridade do Estado, matar ou ensinar? Para o Estado, as vidas de negros, pobres e favelados não importam?

Conclusão

O Estado, seus governos e suas polícias nunca fizeram essas perguntas ou são parte ativa e consciente desse processo? O Estado é inerentemente racista, é exterminador de negros e favelados insubmissos? A prisão, o cemitério e a imposição do medo aos pobres são políticas colonialistas? A execução sumária de jovens nas favelas e periferias é a institucionalização da pena de morte no Brasil praticada por agentes policiais com a anuência do Judiciário e dos governantes políticos e econômicos? Para o Estado, as vidas de negros, pobres e favelados não importam?

Se o Estado brasileiro é um descendente legítimo do Estado moderno colonialista português, podemos dizer que ele é racista e por isso assassina negros há séculos? Assim, podemos chamá-lo por necro-racista-Estado? Por fim, se respondermos positivamente às perguntas supracitadas, podemos dizer que existe uma necrofilia colonialista outrocida em curso no Brasil praticada por um necro-racista-Estado que busca assassinar principalmente negros, indígenas, pobres e favelados insubmissos? Significa dizer afirmativamente que, para o Estado, as vidas de negros, pobres e favelados não importam.

Wallace de Moraes é professor da UFRJ nos Programas de pós-graduação em Filosofia (PPGF) e em História Comparada (PPGHC). Líder do grupo de pesquisa CPDEL (Coletivo de Pesquisas Decoloniais e Libertárias): https://www.youtube.com/channel/UCI6ALgmE_efoCONkrPmQ9fw/featured

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