Dois terços do Rio Amazonas, no Norte brasileiro, por exemplo, já seriam capazes de suprir a demanda mundial de água – Luis Robayo / AFP
Na “Nature”, pesquisadores afirmam que país precisa ter plano de seca para evitar alta da energia e perda de safras
O Brasil tem a maior quantidade de água doce do mundo. Dois terços do Rio Amazonas, no Norte brasileiro, por exemplo, já seriam capazes de suprir a demanda mundial de água. Apesar disso, o país enfrenta a terceira crise hídrica em 20 anos e a maior já registrada em 91 anos, por causa, principalmente, da má gestão do recurso natural.
Um alerta para o problema foi publicado em um artigo de opinião na revista Nature nesta quarta-feira (8), assinado por três pesquisadores e endossado por outros 95 cientistas de diversas instituições nacionais e internacionais, entre eles Carlos Nobre e Paulo Artaxo.
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Intitulado O Brasil está em crise hídrica – é necessário um plano de seca, o texto alerta que, se o país não investir em pesquisa, monitoramento do solo e em novas fontes de energia renováveis, futuras crises hídricas encarecerão ainda mais o valor da energia e poderão comprometer a segurança alimentar do país e do mundo.
“A crise hídrica no Brasil é uma crise mundial”, diz trecho do documento, lembrando que o país produz quase 15% da carne bovina do mundo, cultiva mais de um terço das safras de açúcar e é responsável por um terço das exportações de café, além de outros produtos globalmente importantes, como soja. “O Brasil precisa tratar a água como uma prioridade de segurança nacional”, afirmam os cientistas.
“Vivemos uma grave crise hídrica causada, por um lado, pela seca e pelas mudanças climáticas, mas, por outro, pela falta de gestão da água no país”, afirma Augusto Getirana, pesquisador do Laboratório de Ciências Hidrológicas do Centro de Voo Espacial Goddard da Nasa, um dos autores do artigo de opinião.
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Segundo os cientistas, o país não faz monitoramento da umidade do solo, não tem um plano de gestão da água e não tem dados para prever a ocorrência de futuras secas e crises hídricas.
“O Brasil precisa mudar a forma como trata a água. Ela é um bem abundante aqui, mas usada de forma pouco produtiva”, diz a pesquisadora Renata Libonati dos Santos, do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais da UFRJ, que também assina o artigo.
O texto publicado na Nature sugere quatro pontos:
1. Otimizar o uso da água para que atividades essenciais não fiquem à mercê de chuvas
2. Diversificar fontes de energia
3. Criar um plano de secas
4. Acabar com desmatamento na Amazônia
A seguir, detalhes sobre cada um dos pontos.
Otimizar o uso da água
O artigo aponta que, apesar da produção agrícola ser responsável por um quarto do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, nem metade da agricultura é irrigada.
“Apenas 13% da nossa agricultura é irrigada. Isso quer dizer que todo o resto da produção nacional depende das chuvas. Esse é só um dos exemplos que demonstra como o país precisa otimizar o uso da água”, explica Getirana.
O documento destaca que o Brasil encontra-se sobre grandes aquíferos – recursos valiosos, e subutilizados. “O setor agrícola deve construir resiliência climática usando essas águas subterrâneas, especialmente durante secas hidrológicas extremas”, diz o texto.
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Porém, a exploração das águas subterrâneas pela agricultura precisa ser feita de forma sustentável, para evitar o esgotamento do recurso natural. Para isso, o governo precisa investir em monitoramento do solo e pesquisas.
Por isso, além de otimizar o seu uso, os cientistas também afirmam que é preciso gerir melhor os recursos que o país tem.
Um estudo sobre a perda de água potável durante a distribuição à população, publicado neste ano pelo Instituto Trata Brasil, revelou que são desperdiçadas diariamente 7,5 mil piscinas olímpicas de água tratada, ou sete vezes o volume do Sistema Cantareira – maior conjunto de reservatórios para abastecimento do estado de São Paulo. Essa quantidade de água potável desperdiçada seria suficiente para abastecer mais de 63 milhões de brasileiros em um ano.
“O Brasil tem água, mas ela precisa ser bem gerida por meio de políticas públicas”, diz Getirana.
Diversificar a fonte de geração de energia
Este ano, muitas cidades enfrentam um racionamento de água iminente e reservatórios importantes atingiram menos de 20% da capacidade, lembra o artigo.
Diante da seca e sem investir em outras fontes renováveis de energia, o Brasil teve que voltar a queimar combustíveis fósseis – um dos principais vilões do efeito estufa.
Dados do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) mostram que o país produziu 13,2% da eletricidade do país em julho de 2021 a partir de termelétricas, o maior volume de sua história. Além de poluente, este tipo de energia também é mais cara e elevou em 130% a conta de luz do brasileiro.
“Em um cenário de mudanças climáticas e aumento das secas, não podemos basear a economia de um país inteiro em apenas uma matriz energética, no caso, a água”, afirma Getirana.
No artigo publicado na Nature, os cientistas sugerem como alternativa às hidrelétricas que o país amplie a capacidade de energia eólica e solar.
Plano de secas e investimento em monitoramento
Nos últimos 20 anos, o Brasil passou por três grandes secas: o apagão de 2001, a crise hídrica de 2014 e a atual crise de 2021. O artigo afirma que, apesar do passado recente, pouco mudou na gestão da seca no país, mostrando que o problema vai além de um governo ou outro.
“A falta de gestão da água é um problema de Estado”, diz Getirana.
“Durante décadas, houve uma falha governamental em reconhecer a seca como uma questão de segurança nacional e internacional”, diz trecho do documento.
Porém, para que um plano nacional de secas seja elaborado, o Brasil precisa monitorar a umidade dos solos, ser capaz de rastrear a variabilidade e a disponibilidade da água subterrânea em todo o país e investir em pesquisa científica.
“O Brasil monitora água subterrânea em 409 locais em todo o país; para colocar isso em perspectiva, as redes norte-americana e indiana têm mais de 16 mil e 22 mil pontos de monitoramento, respectivamente. Não há sistemas nacionais para rastrear a umidade do solo no Brasil, e o monitoramento do uso da água é irregular”, diz outro trecho do artigo.
Após a crise hídrica de 2014, a Agência Nacional de Águas (ANA) criou o Monitor das Secas, mas a plataforma online não faz previsão das secas, apenas mostra a situação atual, e com defasagem de um mês.
Assista também:
Acabar com o desmatamento
Libonati dos Santos explica que a Amazônia está ligada a todo o fluxo de água no Brasil. “O desmatamento da floresta tem alterado esse fluxo, deixando as regiões Sudeste e Centro-Oeste mais secas”, diz a pesquisadora da UFRJ.
Isso acontece por causa de um fenômeno chamado de rios voadores, em que a umidade proveniente da transpiração das árvores da Amazônia é carregada pelas nuvens para outras regiões do país e até para algumas cidades da América do Sul – como uma bomba de água que abastece o Centro-oeste e o Sudeste do Brasil, região mais afetada pela atual crise hídrica.
Uma pesquisa da Fapesp mostrou que uma única árvore grande na Amazônia, com copa de 20 metros de diâmetro, pode bombear do solo mil litros de água por dia. Por isso, o desmatamento da floresta está relacionado com as secas em todo o país.
Um dos efeitos do acumulado de desmatamento nos últimos anos pode ser a atual seca que afeta parte do Brasil. Mapas do Monitor das Secas mostram como a atual seca migrou do Nordeste, em 2014, para o Centro-Oeste e Sudeste este ano.
Desde 2019, a Amazônia vem registrando recordes de desmatamento mês após mês. Dados do Imazon mostraram que entre agosto de 2020 e julho de 2021, o desmatamento na Amazônia foi o maior em dez anos: foram devastados 10.476 km² no período, taxa 57% maior que no período anterior, que já havia sido recorde.
Secas mais frequentes
Getirana ressalta que as crises hídricas estão ocorrendo em um menor intervalo de tempo: enquanto que 13 anos separaram o apagão de 2001 e a crise hídrica de 2014 e 2015, na crise atual bastaram apenas seis anos.
“Além de já estarem mais frequentes, o relatório da ONU sobre as mudanças climáticas alertou este ano que as secas ocorrerão com mais frequência na América do Sul devido às mudanças climáticas. Precisamos nos preparar hoje com políticas públicas”, diz o cientista.
Fonte: Brasil de Fato