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segunda-feira, 3 fevereiro, 2025

Bolsonaro traidor de quem? Restituindo inteligência e emoção ao povo

Imagem: Reprodução

Pedro Augusto Pinho*

O brilhante intelectual brasileiro Jessé Souza pergunta: “afinal, o que é, para além do sentido retórico, compreensível de forma articulada por nós, individualmente, mas que apresenta desafios aparentemente intransponíveis logo que pretendamos defini-lo de forma adequada, “ser gente”?” (Jessé Souza, “A Construção Social da Subcidadania; para uma sociologia política da modernidade periférica”, Editora UFMG, BH, 2003, Parte 3, final do Capítulo 1).

Seria desmedida arrogância buscar em um artigo o que Jessé Souza pergunta em mais de 20 livros. Busquemos, pois, auxílio no gênio Darcy Ribeiro. Nos magníficos “Estudos de Antropologia da Civilização”, logo no I Volume, “O Processo Civilizatório” (1968), Darcy atribui aos instrumentos para ação humana sobre a natureza e sobre os próprios homens o surgimento “de novas formações socioculturais”.

E exemplifica com uma evolução do processo civilizatório, onde se constata que, na medida em que a tecnologia evolui, os tempos de transformação se estreitam. Se séculos separam a Revolução Pastoril da Mercantil, entre as I e II Revoluções Industriais mal completaram 100 anos para que se substituísse a fonte de energia primária: do carvão mineral para o petróleo. E novas formas de poder surgem ou se transformam a cada passo desta cadeia evolutiva, resultando nos incorporados e nos excluídos, quem, afinal, “é gente”.

Da Revolução Agrícola, a primeira que atingiu o homem caçador coletor, à Revolução Termonuclear, da fissão nuclear, o poder e a cidadania sofreram muitas transformações. Civilizações teocráticas e agnósticas se sucederam e, consequentemente, valores foram sendo incluídos, transformados e descartados.

Podemos antever, às vésperas da fusão nuclear, um novo sistema civilizatório sendo articulado na sociedade humana, nas “gentes”. Infelizmente não poderemos mais contar com a clarividência intelectual de Darcy Ribeiro, mas temos em Jessé Souza o questionador que nos irá conduzir para as mais completas respostas.

QUESTÃO FUNDAMENTAL: EDUCAR

Anne Cheng, filósofa e sinóloga francesa, na extraordinária “História do Pensamento Chinês” (1997, na tradução de Gentil Avelino Titton para Editora Vozes, Petrópolis, 2008), denomina o capítulo que trata do confucionismo de “A aposta de Confúcio no homem”.

Confúcio, como Lao Zi (século VI a.C.), antecedem o pensamento grego de Sócrates, Aristóteles, Platão, todos do século III a.C. Foram os pensadores do humano, não do divino, este último mais fabular do que histórico, mas que dominou o ocidente, a partir do judaísmo, criando um Deus só para seu povo, por volta de 2.000 a.C.

São as duas linhas do pensamento e do comportamento humano: a que trata de homem como ser construtor de sua história e aquela que é uma distração das divindades, o resultado de apostas.

Como se deduz facilmente na linha confuciana, ser um homem significa ser o permanente estudante; “estudar e ocupar um cargo são atividades gêmeas, inseparáveis, do conceito do cavaleiro” (Confúcio, “Analectos”).

Veja na História do Brasil, por 400 anos o ensino não foi obrigação do Estado, era iniciativa privada, quase totalmente para “elevação da alma”. E, mesmo depois de Getúlio Vargas ter colocado, junto com a saúde, funções do Estado, muito se fez para que não tivesse êxito, até por golpes em dirigentes eleitos.

Sob domínio neoliberal financeiro, o ensino público retrocede até ser privatizado, como o governador bolsonarista Tarcísio de Freitas está fazendo no Estado de São Paulo: leiloando escolas públicas.

O saber, mais do que qualquer outra condição humana, assombra os poderes que não representam “as gentes”.

E mais, eles sofisticam suas lutas contra “as gentes” de tal forma que o Ministro da Fazenda Fernando Haddad vai ao templo brasileiro do poder, a Federação Brasileira de Bancos (FEBRABAN) em São Paulo, para explicar porque não colheu a última gota de sangue “das gentes”.

Há muito simbolismo nesta encenação. Do lado teatral um prato cheio para as mídias comportadas (ou compradas?) que mostram o quanto o Governo Lula se distancia dos “interesses nacionais”. Do lado econômico, o quanto este governo, distante dos interesses brasileiros, evita a reindustrialização do país, estagnada, na verdade retrocedendo ao fim do Governo Geisel (1979).

Para não tratarmos diretamente da educação, onde a escola pública, laica, em horário integral, com todas atividades formadoras do corpo e da alma, surgem como miragens dos passados governos Vargas e Brizola. Hoje os Tarcísio de Freitas retrocedem ao tempo da escravidão: escola não é para o povo, é para quem pode pagar, é privada e lucrativa.

Diante destes fatos fica a questão, a quem Bolsonaro, que não carrega feridos, verdadeiramente serve, logo a quem trai?

GOVERNOS NEOLIBERAIS FINANCEIROS 

Fica mais fácil, com a distância de mais de um século, entender a estratégia das finanças, predominantemente inglesa, poderosa ao fim do século XIX, que após duas derrotas para a industrialização (as 1ª e 2ª Grandes Guerras), buscou recuperar seu proselitismo e domínio.

A ideologia neoliberal surge nos anos 1930, diante da crise financeira de 1929, como resposta do liberalismo evitando a solução do planejamento e do estatismo, que desde 1917 já apresentava ao mundo um caminho diferente para o progresso humano: o socialismo.

No alvorecer do século XX (1900-1937), os primeiros-ministros do Reino Unido que foram mais longevos foram Herbert Henry Asquith, quase nove anos, Lloyd George, praticamente seis anos, e Stanley Baldwin, que, somando diversos períodos, totalizou sete anos.

Nos EUA, os presidentes, no mesmo período, foram William McKinley, Theodore Roosevelt, William Howard Taft, Warren Harding, Calvin Coolidge e Herbert Hoover, republicanos, e Woodrow Wilson e Franklin Delano Roosevelt, democratas. O crash da Bolsa de Nova Iorque deu-se em 24 de outubro de 1929, com Herbert Hoover na presidência e o trabalhista Ramsay MacDonald como primeiro-ministro. No Reino Unido até Ramsay MacDonald, liberais e conservadores, desde meados do século XIX, se revezavam na condução do país.

Para reconquista do poder, as finanças fizeram alianças, sendo com os ambientalistas a mais antiga. Há uma razão, porém há também uma farsa, como quase tudo que sai das finanças. A razão foi a condição de pobreza britânica, durante a 1ª Revolução Industrial. Rios que viraram esgotos e o ar empesteado eram, por si só, insalubres o bastante para provocar mortes por doenças que a má alimentação, quando esta ainda havia, só aguçava. Médicos e humanistas fizeram campanhas no século XIX pela saúde pública e pela proteção ambiental.

A questão ambiental surge desvinculada do Estado, com as denominadas Organizações Não Governamentais (ONGs). Especificamente dedicadas ao meio ambiente surge no Canadá, em 1971, a Greenpeace, e nos EUA, em 1974, a Wild Foundation, nos EUA (Colorado). Rapidamente se espalham pelo Ocidente e onde havia interesse em criar situações políticas desfavoráveis aos governos, pelo seu viés industrial, desenvolvimentista e participativo.

Atualmente as ONGs recebem recursos públicos para desacreditar governanças populares e políticos progressistas.

O petróleo, fonte mais barata e de fácil comercialização, produtor de energia primária, foi outro objetivo de ataque pelas derrotadas finanças no pós-guerra. Foi em viés paralelo ao ambiental, ainda que a poluição fosse uma razão midiática. Cabe uma observação.

O período que se seguiu ao fim da 2ª Grande Guerra foi de recuperação econômica e social na Europa e de investimentos no desenvolvimento industrial e tecnológico pelo que se observou em países “em desenvolvimento”. Também no mundo soviético o crescimento foi significativo. Tanto que a Academia Francesa de Economia Política assimilou a expressão cunhada pelo demógrafo francês Jean Fourastié, “os trinta anos gloriosos”, para o período que vai do fim da guerra (1945) até os choques do petróleo (1968-1973). Recordando a criação da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), em setembro de 1960. Era a sociedade de consumo que se abria para o ocidente, ao lado da libertação de colônias na África e na Ásia.

Criava-se o círculo virtuoso: demanda gerando produtos que necessitam trabalho e tecnologia que são supridos por empregos que pagam salários gerando demanda…

As finanças neste modelo eram simples coadjuvantes, sem poder de alteração, pois os Estados recebiam impostos que mantinham toda máquina em funcionamento.

Quebrar o círculo virtuoso era fundamental para as finanças voltarem ao poder, como nos séculos XVIII e XIX.

As finanças promoveram alianças que confundiram as esquerdas, levando-as a apoios inimagináveis; como nas questões ambientais e identitárias, retirando das pautas políticas a noção de soberania, do desenvolvimento tecnológico associado à industrialização, e até mesmo o poder político para os desfavorecidos, “as gentes”, satisfeitas, em sua incompreensão da realidade vivida, com as “bolsas esmolas”.

Veja o caro leitor que de 1929 a 1979, meio século de guerras e progressos, fomos do ápice científico (energia atômica) à ignorância mais danosa, do bem estar conquistado com o trabalho, à humilhação das esmolas ou dos trabalhos sem qualquer garantia dos “microempreendedores individuais” (MEI).

E os Estados Nacionais passam da soberania que lhes é própria, à submissão ao Mercado, que é tão somente das finanças apátridas, pois se espalham por quase uma centena de paraísos fiscais, em todo planeta.

RECUPERANDO HONRA, SOBERANIA E CIDADANIA

No segundo turno da eleição para Presidente do Brasil, excluídos os brancos e nulos, ou seja, do total dos votos válidos, Jair Bolsonaro obteve 58.206.354, representando 49,10%. Considerando os dados do IBGE que existem 140.782.394 pessoas entre 15 e 64 anos, Bolsonaro de algum modo atinge 41% dos brasileiros, computáveis como eleitores. Um feito realmente notável para quem muito mal se expressa e apresenta comportamentos tão censuráveis, desqualificadores dos seus próprios ouvintes.

Como já deve estar claro, a educação é o meio mais eficaz, honesto e cidadão de dotar as pessoas de conhecimentos, não somente para ocupações profissionais, mas para sua inserção na sociedade de modo positivo, promovendo seu desenvolvimento e o de todos, do País.

O fator de distinção entre povos e países é sua educação, sua compreensão da vida e sua contribuição para o progresso intelectual e moral. Veja o caso da corrupção tão em voga nos governos neoliberais. Ela pouco se sustenta em países de elevada e ampla instrução.

Como já descrevemos, a educação não se resume aos currículos escolares, mais se ampliam nas atividades esportivas e culturais, daí o regime de tempo integral ser imperioso para todas as escolas, até o ensino médio, e na comunicação de massa, nas diversas formas de chegar ao povo: imprensa escrita, falada, televisiva, sistemas virtuais, digitais de transmissão de mensagens, livros, revistas, competições esportivas, exposições, encenações e shows.

Mas a instrução não cai do céu, como um raio. Ela se constrói pelo trabalho político, pelo debate, como este que estamos travando com o leitor, pelo esclarecimento de que não é a sorte, mais o empenho coletivo quem produz riqueza e os critérios de reparti-la.

As igrejas satisfazem uma angústia dos homens e sua ignorância sobre si mesmos. O criador da psicanálise Sigmund Freud escreveu que a religião teria existência pela falta de uma civilização que desse as ferramentas para a compreensão do homem por si próprio e da humanidade, como a existência coletiva, nada de cada um por si.

Vamos então responder às questões colocadas neste artigo. Bolsonaro é traidor da imensa maioria que nele votou, pelo discurso de ódio, pela ilusão dos neopentecostais que formam sua principal base de apoio. E entreguista confirmado, pela alienação do trabalho brasileiro na forma de patrimônio público, para estrangeiros – Refinaria Landulfo Alves Mataripe, BR Petrobrás Distribuidora, Eletrobrás – e 36% das estatais brasileiras, que somavam 209 empresas e, após seu governo, baixaram este número para 133. Nada adiantando se enrolar na bandeira nacional como fantasia, pois a realidade não é do amor à Pátria.

Como restituir inteligência e emoção ao povo, construindo a cidadania, com a instrução que descrevemos. À qual se somarão a saúde, a habitação digna, com saneamento básico, a mobilidade urbana e a defesa dos direitos individuais, coletivos, trabalhistas e previdenciários.

Tudo, caro leitor, depende das “gentes”, do povo, de você, em que país quer viver e ver seus descendentes viverem.

*Pedro Augusto Pinho, administrador aposentado.

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