Créditos da foto: O bilionário Bill Gates argumentou no domingo contra uma dispensa temporária de patente para vacinas contra a Covid-19 na Organização Mundial do Comércio durante uma entrevista à Sky News. (Foto: Captura de tela / Sky News)
É claro que o modelo Gates-Big Pharma foi um desastre, com as empresas farmacêuticas obtendo lucros astronômicos ao distribuir suprimentos escassos de suas vacinas
Apesar de toda sua filantropia, Gates está profundamente comprometido com a proteção dos direitos dos detentores de patentes.
Difícil de acreditar agora, mas nos primeiros meses da pandemia parecia que o mundo iria agir em conjunto para desenvolver uma “vacina do povo”.
Dado o escopo e a urgência da crise iminente em fevereiro de 2020, centenas de especialistas em saúde global e pesquisadores reuniram-se por dois dias intensos na sede da Organização Mundial da Saúde (OMS) em Genebra, onde elaboraram planos extensos para reunir o conhecimento científico global a fim de para acelerar a busca por uma vacina.
Seu plano equivalia a uma ousada rejeição do modelo farmacêutico usual, em que as empresas farmacêuticas realizam pesquisas por trás de paredes proprietárias, zelosamente protegendo sua “propriedade intelectual” enquanto correm para obter uma patente, que lhes dará o monopólio de seu novo produto.
Em vez disso, o plano urgente elaborado na sede da OMS por alguns dos maiores especialistas mundiais em doenças infecciosas foi baseado em um conceito raramente visto no mundo ultralucrativo dos medicamentos farmacêuticos – cooperação com vistas à criação de um bem público.
Mas, no inverno rigoroso e no início da primavera de 2020, os governos ao redor do mundo estavam tão assustados com o novo vírus mortal que pareciam dispostos a abraçar o tão radical esquema – mesmo apesar das objeções da Big Pharma (as gigantes do setor farmacêutico).
“Os primeiros dias apresentavam vislumbres tentadores de uma resposta pandêmica cooperativa e de ciência aberta”, observa Alexander Zaitchik, autor do próximo livro “Owning the Sun: A People’s History of Monopólio Medicine, from Aspirin to COVID-19.”
Mas o plano inspirador elaborado pelos cientistas – que prometia criar uma vacina pertencente essencialmente à população mundial, não aos acionistas corporativos – foi esmagado de forma bastante decisiva quando Bill Gates se entrou na briga.
O multibilionário, frequentemente descrito como o “czar da saúde global”, foi exultado, alcançou um status quase idolatrado, por doar dezenas de bilhões de sua fortuna em um esforço aparentemente altruísta para ajudar o mundo.
Ao contrário de outros filantropos bilionários, que esbanjam dinheiro nas universidades que cursaram ou em instituições culturais de prestígio, Gates tem se concentrado em ajudar os pobres do mundo.
Muito antes de a pandemia nos atingir, Gates estava canalizando bilhões de sua fundação para apoiar programas de vacinas no mundo em desenvolvimento.
E contudo, como documenta Zaitchik, Bill Gates quase sozinho descarrilou o plano que poderia ter levado a uma ‘vacina do povo’.
Apesar de toda sua filantropia, Gates está profundamente comprometido com a proteção dos direitos dos detentores de patentes. Ele fez sua própria mega fortuna por meio de patentes em suas inovações para computadores e há muito apoia a alegação da indústria farmacêutica de que as patentes são necessárias para estimular o investimento.
A Big Pharma ficou muito feliz em deixar o bilionário altruísta ser o representante de sua causa, aparentemente fornecendo evidências de sua validade moral.
Portanto, antes mesmo que a comunidade científica tivesse a chance de lançar sua iniciativa pública cooperativa em maio de 2020, Gates apresentou sua própria iniciativa para COVID baseada na proteção de patentes de medicamentos e no incentivo à filantropia de vacinas.
É claro que o modelo Gates-Big Pharma foi um desastre, com as empresas farmacêuticas obtendo lucros astronômicos ao distribuir suprimentos escassos de suas vacinas contra COVID patenteadas para quem oferecer mais, deixando os países pobres com poucas chances de vacinar seu povo antes de 2024.
Esse fracasso abjeto levou uma aliança de nações em desenvolvimento, lideradas pela África do Sul e Índia, a exigir que as patentes para vacinas e medicamentos para COVID fossem canceladas até o fim da pandemia.
Durante meses, os países ricos rejeitaram o pedido de dispensa de patente. Mas um recente endosso surpresa do governo Biden mudou um pouco a dinâmica, pressionando até mesmo a Fundação Bill e Melinda Gates a apoiar a iniciativa dos países pobres, embora o próprio Gates não tenha mudado de tom.
Entre outras coisas, a tragédia da vacina destaca o perigo representado pela extrema concentração de riqueza e poder que Bill Gates representa.
Acontece que sua megafilantropia vem com um obstáculo: permite que Gates desenvolva uma influência extraordinária em questões cruciais, como aquela de se os pobres do mundo terão ou não uma chance de sobreviver à pandemia.
O Dr. Jonas Salk, desenvolvedor da vacina contra a poliomielite, rejeitou a famosa questão sobre a propriedade de sua descoberta com a seguinte pergunta: “Você poderia patentear o sol?”
Ao que Bill Gates provavelmente responderia: “Com certeza. De que outra forma podemos incentivar o investimento?”
Fonte: Carta Maior
*Publicado originalmente em Common Dreams | Traduzido por César Locatelli