Presidente da Síria Bashar Al-Assad (AFP/Getty Images)
Em entrevista concedida no dia 1º de dezembro à emissora pública de televisão da República Tcheca, o presidente da Síria, Bashar al-Assad expôs que o mais importante a salvar na Síria é o secularismo, que faz com que todas as religiões do país sejam respeitadas e que promove a integração entre os povos que ali habitam.
Al-Assad também falou sobre o papel destruidor que as potências ocidentais (EUA, Reino Unido e França, principalmente) e as regionais (Arábia Saudita, Catar e Turquia) assumiram no terror instalado artificialmente no país a partir de março de 2011.
Leia abaixo a íntegra da entrevista:
TV tcheca: Senhor Presidente, obrigado por disponibilizar o seu tempo. Deixe-me começar com uma pergunta pessoal. O senhor é um médico. Em 2011, o senhor disse que escolheu a cirurgia ocular, porque não há, nesta área, nenhuma emergência e envolve apenas uma pequena quantidade de sangue. Isso foi em março de 2011, no mesmo período em que a guerra eclodiu na Síria, que é, indiscutivelmente, um dos mais sangrentos conflitos no mundo. Ou seja, é um estado de emergência de pesado calibre. Como o senhor lida com isso?
Presidente Bashar al-Assad: Se você quer fazer uma ligação entre esse trabalho ou qualquer outro trabalho relacionado à cirurgia, de um lado, e que está acontecendo na Síria por outro lado, então isso depende das intenções. Nas cirurgias sempre há sangue, mas esse sangue é para salvar a vida do paciente e não para matá-lo. Porém, o sangue derramado na Síria é causado pelos terroristas que estão matando os sírios. E nossa função, como governo, é salvar vidas através da eliminação dos terroristas. Esta é a única relação entre estes dois pontos. Espero ter entendido a sua pergunta.
Sim. Quero dizer …
Como eu disse, a nossa função é salvar vidas. E se isso leva ao derramamento de sangue, é porque decorre da defesa de nossa pátria. Os estados utilizam os exércitos para defender seus países.
Mas o número de mortos chegou a 250 mil pessoas. E isso é inimaginável em qualquer país.
Isso acontece como resultado da presença de um grande número de terroristas, apoiados por potências regionais e ocidentais. Os terroristas não vieram somente de dentro da Síria. Eles vieram de mais de cem países em todo o mundo. Eles quiseram fazer da Síria uma base para o terrorismo. Esta é a situação atual. Se não tivéssemos defendido o nosso país, esse número subiria exponencialmente.
O senhor mencionou o terrorismo. Parece-me que houve avanços significativos na crise síria nos últimos dias. Em sua opinião, qual é a data mais importante na crise síria? Foi em 30 de setembro com a intervenção russa ou em 13 de novembro com o ataque terrorista a Paris?
Certamente a data mais importante é a da participação da Rússia ou, como foi anunciado, a formação de uma frente para lutar contra o terrorismo.
Este é o acontecimento pragmático mais importante contra o terrorismo. Quanto ao que aconteceu em Paris, após o ataque terrorista, em termos políticos serviu para acalmar os ânimos dos franceses, sugerindo que os franceses atacarão o “Daesh” de uma maneira muito diferente. E o que isso significa? Será que a França não era séria antes do ataque a Paris? Então o que tinha acontecido foi apenas para acalmar os ânimos dos franceses e não uma resposta séria? Enquanto isso, os russos estão mostrando uma seriedade muito grande na luta contra o terrorismo e há cooperação entre eles e o exército sírio.
Então o senhor acredita que o aumento dos ataques da aliança ocidental, liderada pelos Estados Unidos não ajuda?
De acordo com os fatos, pode-se dizer que, desde a formação da aliança, houve uma expansão do “Daesh” e do número dos que aderiram à ele em todo o mundo. E para contrastar com isso, desde o início da participação da Rússia no mesmo processo, chamado de guerra contra o terrorismo, o “Daesh” e a “Frente al-Nusra” estão sitiados. O mesmo se aplica aos outros grupos terroristas. Os fatos falam por si.
Não seria a simples razão para isso, do ponto de vista militar, que a Força Aérea da Rússia está trabalhando com as tropas do exército sírio?
A razão para isso é a existência de cooperação. Foi isso que eu disse. Você não pode matar os terroristas ou erradicar o terrorismo a partir do ar. Não dá, é impossível. Os americanos tentaram isso no Afeganistão por um longo período. Por mais de doze ou treze anos. Eles conseguiram alguma coisa? Não. Não conseguiram nada. O terrorismo continua forte no Afeganistão. Você precisa cooperar com quem está dentro do país. Com qualquer força e a principal força na Síria é o exército sírio e, claro, o governo sírio.
O presidente francês está tentando formar uma ampla coalizão contra o terrorismo. Pairam dúvidas quanto a esta tentativa?
Certamente. Se eles querem aprender algo com o que aconteceu recentemente em Paris, por que eles não tiraram uma lição com o ataque ao Charlie Hebdo? É o mesmo princípio e o mesmo conceito. Dissemos, na época, que esta era a ponta do iceberg e que há algo muito maior ainda submerso. Eles não aprenderam. Em segundo lugar, você não pode lutar contra o terrorismo, enquanto estiver oferecendo a ele o apoio direto, através do fornecimento de armas e a formação de alianças com um dos maiores apoiadores do terrorismo no mundo, que é a Arábia Saudita. Você não pode fazer isso porque envolve uma contradição. Você não pode ser o ladrão e o policial ao mesmo tempo. Você tem que escolher de qual lado quer ficar.
Mas eu não ouvi falar de qualquer apoio ocidental ao “Daesh” ou à “Frente al-Nusra”.
Você pode verificar isso de forma clara através da Internet. Há partes francesas e, claro, as outras partes. Mas o exemplo francês existe. Como é que um país como a França pode vender armas para uma parte que desconhece e sequer conhece o destino destas armas? É impossível. Eles, certamente, sabiam disso por intermédio da Arábia Saudita, do Catar e, possivelmente, de outros países.
Aconteceu um acidente na fronteira com a Turquia, com a derrubada de um bombardeiro russo. O senhor acredita que esse incidente irá afetar o resultado dos esforços do presidente francês para formar uma aliança mais ampla? O senhor acredita que isso irá atrapalhar as conversações de paz na Síria?
Eu não penso assim. Mas acredito que isso levou Erdogan a mostrar a cara. Pode-se dizer até que ele perdeu as estribeiras, porque a intervenção russa alterou o equilíbrio das forças no terreno. Portanto, o fracasso de Erdogan na Síria e o fracasso de seus grupos terroristas significa o fim de sua carreira política. Por isso, ele quis fazer qualquer coisa para impor obstáculos diante de qualquer êxito. E foi por isso que ele fez o que fez. Mas eu não acredito que isso vá alterar o equilíbrio. A guerra contra o terrorismo continua. E a participação da Rússia será cada vez mais forte, embora já seja forte. Eu acho que não há espaço, neste sentido, para um retrocesso, mesmo se ele fizer isso de novo ou se agir de outro modo.
O presidente americano diz que não quer repetir o mesmo erro, ou seja, perpetrar uma ofensiva terrestre sem saber, de fato, quem irá preencher o vazio. A maioria dos candidatos presidenciais para as eleições nos Estados Unidos dizem que querem fazer muito mais do que apenas ataques aéreos. Qual abordagem o senhor acha que seria mais efetiva para derrotar o “Daesh”?
Na verdade, se você quer falar sobre terrorismo de uma forma geral e não apenas do “Daesh”, eu acredito que devemos atuar em vários eixos e encontrarmos uma solução multifacetada. Uma parte desta solução está relacionada à ideologia e a outra parte está relacionada à economia, às posições políticas e à cooperação política. E, por fim, a cooperação em segurança e a luta direta contra essas organizações, devido à situação em que estamos agora. Não há alternativa senão lutar contra eles diretamente. Mas isso não é suficiente. Se você quer lutar contra estas organizações e derrota-las, você deve cortar seus suprimentos e armas, dinheiro e voluntários que entram no país, principalmente através da Turquia, com o apoio dos sauditas e qataris. Este é o primeiro passo que deve ser tomado no momento em que estas organizações estão atacando no terreno. O problema agora é que estamos lutando contra terroristas que desfrutam de suprimentos ilimitados provenientes de diferentes países, principalmente de países da região e com o apoio ou a aquiescência do Ocidente ou, mais precisamente, de alguns países ocidentais.
O senhor disse que a sua prioridade é combater os terroristas e derrotá-los antes de uma solução política. O que o senhor quer dizer com derrotar o terrorismo? Significa que não reste nenhum grupo armado de oposição na Síria?
Você não pode falar no sentido político de oposição, se esta oposição pegar em armas. Quando vocês falam sobre a oposição em seus países, se referem somente a movimentos políticos. Em segundo lugar, se a oposição for política, ela deve ter bases populares, portanto, quando falamos em rebeldes ou combatentes que portam armas para atacar o povo sírio ou o exército sírio e para destruir as propriedades públicas e privadas, então isso é terrorismo. Não há outra definição para isso. Se nós não aceitamos a expressão ‘oposição lutadora’ ou ‘militar’ ou “oposição moderada” que carrega armas, é porque ela não é uma oposição e sim terrorismo. Para nós, a oposição é um movimento político que atua dentro ou fora da Síria, não importa. O outro aspecto da oposição, claro, é ser uma oposição nacional e não uma oposição formada na França ou no Catar ou na Arábia Saudita ou nos Estados Unidos ou no Reino Unido. Deve ser uma oposição síria, formada na Síria. Nós temos uma oposição síria. Temos uma verdadeira oposição síria, independente de sua extensão ou força. Isso não importa. Portanto, a derrota do terrorismo irá eliminar as barreiras diante de qualquer processo político. Agora, se chegarmos a um acordo sobre os passos ou as medidas com qualquer parte da oposição em qualquer lugar do mundo, ou seja, com uma oposição síria, o que pode ser alcançado? Poderíamos realizar eleições verdadeiras? Poderíamos alcançar a estabilidade com a oposição? Os terroristas vivem no seu próprio mundo e têm seus próprios objetivos. Eles têm uma agenda e uma ideologia próprias. É completamente diferente do aspecto político, portanto, se iniciarmos o processo político e devemos inicia-lo, porque eu não disse que ele não deve ser iniciado, eu disse que, se você quiser dar passos concretos, isso deve ocorrer somente depois de começarmos a derrotar o terrorismo. Eu não disse que devemos fazê-lo somente depois da derrota, até porque a derrota demanda um longo processo.
Temos um problema fundamental aqui. Falou-se em Viena sobre uma oposição moderada, incluindo grupos armados. E o senhor disse que não é possível negociar com quem carrega armas.
Não. O processo tem dois lados. Um deles se refere ao tratamento com a oposição política e o outro lado se refere ao tratamento com estes grupos. É o processo que chamamos, na Síria, de processo de conciliação e ocorrerá quando eles entregarem suas armas e voltarem às suas vidas normais. O governo lhes concederá a anistia.
Sob suas condições…
Não. Será uma anistia total, se a pessoa em questão voltar à sua vida normal. Não será acusada de qualquer crime. E será livre para viver uma vida normal. Uma vida pacífica, sem lutas, sem portar armas e sem aterrorizar as pessoas. Estas conciliações têm sido bem sucedidas na Síria. Na verdade, elas têm obtido mais resultados do que qualquer processo político. Por isso, nós não dizemos que não estamos lidando com esses militantes, porque se eles mudarem de posição, é claro, você vai ter que lidar com eles. Mas quando você fala sobre “Daesh” ou “Frente al-Nusra” e as outras organizações ligadas à al-Qaeda, você verá que eles não estão dispostos a depor as armas e negociar com o governo de forma alguma. Eles não aceitam isso e nós também não aceitamos. A ideologia deles é contra o governo e contra o país como um todo. Eles não reconhecem fronteiras e não reconhecem quem não se assemelha a eles. Portanto é difícil ou mesmo impossível chegar a qualquer consenso com eles. Eu estou falando sobre os outros grupos que aterrorizam as pessoas a fim de obter dinheiro ou plantar o medo nos corações das pessoas ou por qualquer outra razão. Temos sido bem sucedidos nas negociações com eles.
Então o senhor concorda plenamente com as negociações de Viena, que se referem às conversações entre o governo e os grupos de oposição, no período de um mês ou talvez à véspera do final do ano?
Desde o início desta crise, falamos da nossa disposição para negociar com qualquer parte, portanto, no que se refere à estes grupos, sabidamente ligados aos franceses e outros, e não aos sírios, nós os tratamos como uma oposição que representa aquele país. Porque os sírios conhecem a realidade. Nós não somos contra qualquer forma de cooperação ou diálogo ou negociações. O diálogo, na verdade, é a expressão mais precisa. Mas, de qualquer forma, se alcançarmos um acordo com esta oposição, que não possui nenhuma base popular na Síria, aonde chegaremos? É uma pergunta simples. Podemos negociar por meses e, em seguida, eles não executarão nada porque eles não têm qualquer influência sobre os terroristas. Então se eles não têm quaisquer bases populares e não influenciam os sírios, qual seria o significado dessas reuniões? Em princípio nós não dizemos não. Dizemos sim. Mas, na realidade, não podemos dizer às pessoas que esperamos alcançar algo por trás disso e que este é o caminho para resolver o problema.
Como o senhor descreveria este conflito? É um conflito entre o governo e os combatentes pela liberdade ou um conflito em que os xiitas lutam contra sunitas ou árabes contra os persas? É um confronto entre as grandes potências? É uma luta entre um país secular e os fanáticos religiosos? O que é exatamente?
Ele inclui todos os fatores que você citou. Mas nem todos esses fatores são verdadeiros. Isto é, se você está falando sobre os verdadeiros sentimentos dos sírios. Por exemplo, se pegares o fator sectário, que mencionastes, verás que ele não é real. Porque se fores, agora, a qualquer lugar da Síria, nas áreas que estão sob o controle do governo sírio, encontrarás todas as nuances dos espectros étnico e sectário da sociedade síria. Portanto, este fator não é verdadeiro. Caso contrário, não verias as pessoas convivendo umas com as outras. Então este não é o caso. O ódio sectário foi agravado pelos sauditas e qataris. Além disso, há sempre aqueles fanáticos que dão ouvidos a esse tipo de discurso. Em todo o caso, esta não é a situação. A guerra está sendo travada entre o governo e militantes apoiados por potências regionais e internacionais que têm a mesma agenda.
Eles podem ter motivações distintas, mas a agenda é a mesma. Eles querem mudar o governo. Querem derrubar o governo e o estado sírio, mudar o presidente e o sistema político como um todo, sem consultar o povo sírio. Esta é a realidade da batalha. Portanto, se estamos falando de rebeldes, eles não têm qualquer agenda. Negociamos com eles e concluímos que eles não têm quaisquer exigências políticas. Eles buscam apenas o dinheiro. Em sua maioria são mercenários que buscam realizar as agendas de outras partes. Se esta for a realidade da batalha, então a Rússia tem apoiado o governo porque ela apoia o Direito Internacional e a estabilidade na região, porque a estabilidade desta região significa a estabilidade do mundo como um todo. Quanto aos Estados Unidos, eles sempre buscam dominar o mundo e pelo fato da Síria ser independente, eles não aceitam a existência de um país que lhes diga não. A realidade é que esta guerra é entre o governo apoiado pela maioria do povo sírio contra os mercenários apoiados por esses países.
Em nível pessoal, houve um avanço significativo, que chama a atenção, sobre a forma como o senhor é visto. Especialmente no Ocidente. O senhor se transformou da esperança de seu povo para um dos principais malvados deste mundo. E o senhor passou a ser, mais uma vez, parte da equação na Síria. Como o senhor viveu este período de transformação?
Transformação de…
Transformá-lo de uma esperança para o seu país para…
Você quer dizer antes da crise?
Sim, quero dizer que todo mundo depende do senhor, agora, para garantir o futuro da Síria.
Se você se refere à relação com o Ocidente, em 2005 eu era um assassino, em 2008 tornei-me um pacificador e em seguida, em 2011, tornei-me um sanguinário. Agora há algo de uma mudança positiva. Digamos que seja uma mudança tímida e não muito explícita.
Como o senhor aceitou isso em termos pessoais? Como o senhor tem convivido com esta mudança?
Em termos pessoais, não houve qualquer impacto, pelo simples fato de que ninguém mais leva as autoridades ocidentais a sério. Para isso, há várias razões. Em primeiro lugar, eles não têm mais credibilidade. A segunda é que eles não têm visão e são conhecidos pela superficialidade. A terceira é que eles não são independentes e seguem as ordens dos Estados Unidos da América. Portanto eles não são sérios e, consequentemente, não têm nenhuma importância. Isso se aplica a maioria dos europeus. Nós observamos o senhor deles, ou seja, os Estados Unidos. Em suma, isso não me causou nenhum impacto em nível pessoal, especialmente quando estamos num estado de guerra, o importante mesmo é o que os sírios querem e a maneira como o povo sírio me vê. Isto sim é muito importante para mim. Não me importo com o que os outros acham. Então quando falamos sobre a volubilidade no comportamento europeu em relação à Síria ou em relação a mim como pessoa, isso costuma mudar de ponta a cabeça. Mas eu não mudei. Continuo sendo a mesma pessoa desde que me tornei presidente, em 2000, portanto você deve perguntar a eles pelo motivo de sua volubilidade e não a mim.
Então a mensagem para o Ocidente é que não há mortes ocorridas pela falta de distinção entre civis e combatentes desde o início da guerra na Síria. E não há torturas generalizadas contra os adversários do regime?
Vamos supor que isto seja verdade, de acordo com a campanha de propagandas deles. Como você poderia continuar desfrutando do apoio popular e permanecer no cargo por cinco anos, quando a potência mais poderosa do mundo está contra você e os países mais ricos do mundo estão contra você e quando seu povo, que você mata, está contra você? Como você pode resistir a tudo isso? Isso não pode ser real. É claro que você desfruta de apoio. E como você teria o apoio de seu povo, se você o mata? Você teria uma explicação? Não, porque não é verdade. Se você quer falar sobre as vítimas, toda guerra é ruim. Não existe guerra boa, mesmo que seja por uma boa causa. Ela continuará sendo uma guerra ruim. E você tem que agir para evita-la. Mas quando você não pode evita-la, a guerra estará relacionada aos assassinatos e as armas estão relacionadas ao assassinato. E há sempre vítimas inocentes em todas as guerras travadas ao longo da história. No que diz respeito às intenções, como é que você pode matá-los se está buscando o seu apoio?
Como o senhor se sente quando vê as fotos de centenas de milhares de sírios fugindo para a Europa?
Eu sinto uma enorme tristeza. Especialmente se você prestar atenção, você verá que cada um desses sírios que deixou a Síria, deixou para trás uma história triste. Isso reflete as dificuldades enfrentadas pela Síria durante a crise. Do ponto de vista racional, cada um destes sírios é considerado um recurso humano perdido pela Síria. Desta forma, isso irá prejudicar a estrutura da sociedade no país. Mas, no final, temos que tratar dos motivos. E eu acho que a pergunta que cada europeu deve fazer é: Por que eles saem? Eles estão saindo por várias razões. Em primeiro lugar, por causa dos terroristas que os atacam em todos os lugares, seja diretamente ou através dos ataques à infraestrutura, ao modo de vida, às necessidades básicas e assim por diante. Em segundo lugar, por causa do bloqueio econômico europeu, que beneficiou diretamente os terroristas, porque qualquer cerco é contra a população do país em questão. Muitos deixaram a Síria porque não puderam mais viver aqui. Porque eles não conseguiram garantir suas necessidades básicas para viver. Por isso, partiram para a Europa ou Turquia ou qualquer outro lugar.
Eles dizem que o senhor os decepcionou como líder.
Eu os decepcionei? Eu não destruí sua infraestrutura. Não dei armas aos terroristas para matar e destruir. A questão é quem fez isso? Foram os europeus, os sauditas e os cataris.
E o que a Europa deveria fazer agora? Os europeus devem temer essas pessoas ou ajudá-las?
Em primeiro lugar, grande parte deles não é síria. Quanto aos sírios, eles são uma mistura. Pode-se dizer que a maioria dos sírios é de pessoas boas e patriotas. São pessoas comuns. Mas há, naturalmente, a infiltração de terroristas entre eles. Isso é fato. Não temos como saber o número deles. Isso é muito difícil de determinar. Esta é a realidade. Acredito que existam algumas evidências na internet. Existem fotos e vídeos para provar que algumas das pessoas que estavam matando as pessoas e, em alguns casos, cortando cabeças, tinham deixado o país rumo à Europa, como cidadãos pacíficos.
Mas, de um modo geral, o senhor acha que devemos ajuda-los ou temê-los?
Isso depende de como os europeus vão tratá-los. Porque você não está tratando apenas de terrorismo. Está tratando de uma cultura. Até mesmo antes da crise e antes dessa enxurrada de refugiados que saem para ir aos seus países. O problema é como fazer para integrar estas culturas em suas sociedades e eu acredito que a Europa falhou nisso. Tanto na maneira como a Europa lida com essa situação, como no que diz respeito ao dinheiro gasto pelas instituições wahhabitas para deturpar o entendimento dos muçulmanos. Eu me refiro aos muçulmanos da Europa. Isso criou mais problemas que levaram ao crescimento do extremismo em seus países. Na verdade, esta área foi, por vezes, exportadora do extremismo para Europa. E agora, nesta crise que experimentamos, a Europa passou a exportar o extremismo para nós. Então, isso depende de como vocês lidarão com a situação. E eu não acredito que vocês vão conseguir chegar a uma integração facilmente.
Como o senhor se vê neste conflito? O senhor diz que os seus inimigos são os terroristas, os fanáticos e os agentes dos estrangeiros. Qual é a coisa mais preciosa que o senhor tenta proteger?
Em nosso país?
Sim.
O Secularismo. Porque a Síria é como um caldeirão onde se fundem os mais diferentes grupos sectários e étnicos. O secularismo na Síria difere daquele compreendido por alguns no Ocidente e talvez, de modo especial na França, de que ele é contra a religião. Na verdade, o secularismo na Síria é a liberdade de religiões, denominações e raças. Sem isso, ela não existiria como é conhecido no mundo há séculos. Portanto, esta é a coisa mais importante que nós estamos tentando proteger. A segunda coisa é a moderação porque, em virtude desta riqueza e da diversidade na comunidade, temos mantido esta moderação durante séculos. Sem moderação, não existiria o caldeirão do qual falei. O que os terroristas estão fazendo agora é criar uma nova geração que não sabe nada sobre a tolerância. Eles serão assassinos, extremistas e fanáticos que não aceitam o próximo. E, dentro de poucos anos, isso se tornará um perigo real. Como podemos lidar com esta nova geração? Não estamos falando aqui sobre aqueles que estão na faixa dos 20 anos ou mais, mas sim sobre aqueles que não chegaram aos vinte anos de idade. Este é o verdadeiro desafio que enfrentaremos.
Existe algo que não poderá ser feito para proteger esses valores que o senhor mencionou?
Não. Devemos fazer tudo o que pudermos para proteger nosso país. Você não pode proteger seu país se você não puder proteger a sua sociedade e os valores e princípios desta sociedade. A pátria não é apenas território e fronteiras, mas sim um povo e um modo de pensar.
Se o senhor tivesse a oportunidade de mudar uma única decisão tomada durante os últimos cinco anos, qual seria esta decisão?
Nós confiamos em muitos, nos quais não deveríamos ter confiado. Este é o maior problema dentro e fora da Síria. Isto se aplica, por exemplo, a Erdogan, no passado, e a muitos sírios que descobrimos, durante o conflito, serem fanáticos e seguirem uma ideologia extremista como a da Irmandade Muçulmana. Alguns deles pertenciam a al-Qaida e agora carregam armas e lutam. No início, pensamos que eles estavam lutando pela pátria. Essa foi a principal questão. Mas se estamos falando de estratégia, acredito que ela se baseou em dois pilares: O primeiro configurado no diálogo e o segundo na luta contra o terrorismo. Estes dois pilares não mudarão e nós não os mudaremos.
Nem mesmo o equilíbrio entre estes dois pilares?
Você não pode falar de equilíbrio, porque há uma realidade que muda todos os dias. Portanto, o diálogo deve continuar até o seu limite máximo. Assim como devemos continuar a lutar contra o terrorismo até o limite máximo. Deve haver uma relação estável entre os pilares sem que haja qualquer antagonismo entre eles. Neste caso, não há necessidade de equilíbrio neste sentido, mas sim a necessidade de trabalharmos, paralelamente, ao máximo em ambos.
Vamos falar um pouco sobre as relações com a República Tcheca. A República Tcheca foi um dos poucos países que mantiveram seus embaixadores na Síria durante todo o conflito. Qual é a extensão da importância disso para o senhor?
Isto é importante por várias razões. Em primeiro lugar, porque as relações pré-crise com a República Tcheca não eram relações calorosas. Na verdade, tivemos muitas divergências. Nossas relações com a maioria dos países europeus era melhor do que as nossas relações com o seu país. Na verdade, o que aconteceu durante a crise, quando a maioria dos países europeus adotou a campanha de propaganda ocidental sobre os acontecimentos na Síria, seu país manteve o equilíbrio no que diz respeito às nossas relações. Isso não significa que vocês apoiam o Governo da Síria ou o presidente sírio, mas sim que vocês estão desempenhando um papel natural, que cada país deveria desempenhar, ao manter as relações até mesmo com os adversários. Como você pode desempenhar um papel ou mesmo saber o que está acontecendo, sem que existam relações? Este é um dos lados da questão. O outro lado da questão é que a República Tcheca é um país pequeno, é parte da União Europeia e tem sido alvo de graves pressões por parte de muitos países ocidentais, incluindo os Estados Unidos, para mudar sua posição, que por vezes pode é simbólica, como manter a sua embaixada. Isso pode ser simbólico em alguns casos. No entanto, a República Tcheca quis ser independente e é isso o que está faltando no mundo de hoje. A maioria dos países não é independente e a maioria das autoridades não é independente, especialmente no Ocidente. Por outro lado, um pequeno país como a república Tcheca pode ser independente. Isso fez com que o seu país, pela sua posição, ganhasse um enorme respeito na Síria. Independentemente de concordarmos ou não com a sua posição. Mas, em suma, nós respeitamos sua posição. Este deve ser o comportamento das autoridades de Estado, no que tange as posições políticas de suas autoridades, e isso é muito importante para nós. A terceira face é a credibilidade de suas posições porque muitos governos europeus reconhecem, justamente agora, que sua posição estava certa sobre o que acontece na Síria e sobre manter um canal aberto com o governo sírio. Eu creio que eles precisarão, agora, de sua ajuda para que possam voltar ao caminho, especialmente no que diz respeito ao aspecto político. Desta forma, este assunto tem múltiplas faces, mas pode ser resumido por uma posição equilibrada sobre a situação na Síria.
Outro aspecto é que o Presidente Zemin falou sobre a possibilidade da assinatura de um acordo de paz sírio em Praga. O senhor apoia essa ideia?
Claro que apoiamos qualquer tentativa de encontrar uma solução para a crise na Síria, especialmente se estamos tratando de um governo que goza de credibilidade. Ficaremos, certamente, muito felizes em cooperar com ele.
Quanto ao sentido simbólico, quero dizer, no que diz respeito às conversações de Genebra e Viena, o processo de assinatura em Praga será realista?
Claro que será realista. Se você perguntar aos sírios, eles dirão que não seria possível realizar uma conferência de paz na França, por exemplo. Porque a França apoia o terrorismo e apoia a guerra. Ela não apoia a paz. Mas se você mencionar Praga, há uma aceitação geral da ideia devido à posição equilibrada do seu país.
Numa análise final, depois do que aconteceu na Síria nos últimos anos, todo mundo já viu aquelas imagens horríveis. O senhor sofre de insônia? Já teve sonhos perturbadores?
Você vive nesta situação de tristeza todos os dias. Você convive com o sofrimento das pessoas diariamente. Em cada hora do dia há uma notícia ruim. Portanto, este é o clima em que vivemos. Mas, ao mesmo tempo, os sírios sentem que este é um dos desafios produzidos pelos eventos e que não é somente a luta ou as posições políticas, mas sim viver a sua vida diária. Um exemplo da importância disto está nas famílias dos mártires do nosso país. Quando você os visita, você vê neles uma força de vontade. Eles estão tentando levar uma vida normal, dentro do possível. Portanto, você não pode deixar-se viver numa bolha de tristeza. Você tem que seguir sua vida e trazer esperança para as pessoas. E você deve manter o otimismo, para que você possa resolver os problemas e restabelecer a vida normal na Síria.
Existe margem de dúvidas para um homem na sua posição?
Duvidar de que?
Dúvidas sobre suas ações e sobre os passos que tens adotado?
Você quer dizer no passado?
Sim. Eu quis dizer quando o senhor pergunta a si mesmo.
Claro, você tem que rever suas decisões todos os dias. E se você prestar atenção aos detalhes, sempre há algo que você poderá fazer melhor. Porque não há nada que possa ser considerado absolutamente certo ou absolutamente errado. Portanto, você pode avaliar o percentual do acerto e do erro. Esta é uma questão pessoal. Você pode mudar de ideia, em tudo, todos os dias. Isso depende da situação, especialmente quando não há um fator destacado. Todos os fatores estão inter-relacionados e, portanto, alcançar um equilíbrio entre as várias ações que devem ser adotadas não é fácil. Você deve revisar e mudar continuamente. Mas eu acredito que uma avaliação real e objetiva somente poderá ser feita depois de superarmos a crise. Porque é difícil chegarmos a conclusões sobre tudo quando se está no meio de uma guerra. Então eu acho que depois da crise, seremos capazes de identificar os nossos erros. É certo que nós cometemos erros, assim como toda a humanidade.
Como o senhor vê a Síria daqui a dez anos?
Presidente Bashar Al-Assad: Em 10 anos, a nossa única opção será derrotar o terrorismo. Não há nenhuma outra maneira. Em segundo lugar, manter a sociedade secular e as suas várias seitas. Em terceiro lugar, realizar reformas na Síria para atender aos sírios no que diz respeito ao seu sistema e ao seu futuro político. Então, eu acredito que o mais importante é manter o secularismo e que os sírios se tornem muito mais integrados do que eram antes da crise. Apesar de já serem integrados, sempre há lacunas nas sociedades. Espero, ainda, alcançar a prosperidade para a Síria.
E onde o senhor se vê daqui a 10 anos? O senhor consegue imaginar uma vida fora do gabinete presidencial? Ou talvez fora da Síria?
Sinceramente, eu nunca me importei com o cargo. Não me importo e nunca me importarei. Eu não penso nisso em absoluto. Até mesmo antes de me tornar presidente, eu não tinha pensado no cargo. A questão é o que os sírios querem. Agora, nós estamos no centro desta guerra e eu não vou dizer que eu estou deixando o cargo, seja qual for o motivo, a não ser que o povo sírio queira que eu saia. Num estado de guerra, você deve cumprir com o seu dever de proteger seu país. Caso contrário, você seria um traidor. E isso é inaceitável, tanto para mim quanto para os sírios. Quando houver eleições, os sírios decidirão se me querem. E eu ficarei feliz em representá-los. E se não quiserem a minha presença, ficarei feliz em renunciar. Eu não tenho nenhum problema quanto a isso.
Ao longo de cinco anos, houve uma discussão sobre tira-lo do poder. Algumas vezes pareceu que a questão não era se o senhor renunciaria, mas quando isso iria acontecer. Depois de cinco anos, o senhor continua aqui. O que o senhor tem, que os líderes do Egito, da Tunísia e da Líbia não tem?
O apoio popular. Se você não goza de apoio popular, não terá sucesso e sim irá falhar. Se você quer falar sobre esses presidentes que você mencionou, você pode ver que eles não gozavam de apoio popular. Eles contavam, inicialmente, com o apoio do Ocidente. Mas quando o Ocidente percebeu que eles não gozavam de apoio popular, mudou sua posição e disse-lhes que eles devem deixar o poder. Enquanto que, na Síria, a única coisa que me manteve no cargo foi o apoio popular e nada mais.
Então o seu lugar na história será o de último sobrevivente?
Não. Não é assim. Tenho sido muito franco com os sírios desde o início. Eu sou uma pessoa muito franca. Em segundo lugar, é muito importante que as pessoas saibam que estão lutando pelo seu país e que você está lutando com elas. Você não está travando uma luta pessoal. E eles não estão lutando para me manter na presidência ou no poder. E eu não estou lutando para permanecer no cargo. Isso é algo sobre mim que eles conhecem muito bem. Se esta fosse a minha guerra e se ela estivesse sendo travada para me manter no poder, ninguém entraria nela. Essas pessoas não lutariam e não sacrificariam suas vidas por isso.
A última e a mais difícil pergunta. Quando haverá paz na Síria?
Presidente Bashar Al-Assad: Quando esses países que mencionei, a França, a Grã-Bretanha, os Estados Unidos, a Arábia Saudita, o Catar e alguns outros países que apoiam os terroristas, cessarem com este apoio. A situação mudará no dia seguinte e as condições estarão melhores dentro de poucos meses. E haverá uma paz ampla na Síria. Isto é certo.
Existe algum cronograma para isso?
Como eu disse, dentro de alguns meses. Se eles cessarem com o apoio. Se eles não cessarem e continuarem a impor obstáculos, isso vai mudar. Apesar desses obstáculos, nós sairemos vitoriosos. Quando? Isso é difícil de responder.
O senhor está otimista quanto a isso?
Certamente. Caso contrário, não teríamos lutado. Se não tivéssemos esperanças, nós os sírios, não teríamos lutado nesta guerra.
Obrigado, Sr. Presidente.
Obrigado por nos visitar. Gostei muito desta entrevista.
Fonte: Embaixada da República Árabe da Síria. Tradução de Jihan Arar