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sábado, 12 outubro, 2024

Barroso, intérprete e personagem do jeitinho brasileiro

Um dos estereótipos de brasileiro mais repetidos pela sociologia de orelha de livro é o do falso malandro, o sujeito propenso às pequenas espertezas, ao “jeitinho”, à malandragem menor. A cultura popular está coalhada desses exemplos, de Pedro Malasartes e Macunaíma, às raposas, coelhos, todos vistos como símbolo desse caráter errático do brasileiro.

Na mídia de massa, tornou-se célebre a campanha protagonizada pelo jogador Gerson, de “levar vantagem em tudo”.

Nos últimos tempos, o principal propagador dessa visão tem sido o Ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF).

Em um paper famoso, um amontoado de lugares-comuns, mas mantendo o formato de ensaio, com Sumário, Introdução, levantamento histórico e conclusão, e um título com jeito de autoanálise – “Ética e Jeitinho Brasileiro: porque a gente é assim?”, Barroso deu início à sua épica brasiliana.

Nela, brande suas expressões favoritas – “iluminismo” e “civilizatório” – e sua humildade intelectual, de tratar o texto como Ensaio e expor seu humilde propósito:

“Na Parte I, comento brevemente aspectos da colonização do Brasil, para concluir que começamos tarde e fomos herdeiros de tradições menos iluministas do que, por exemplo, os Estados Unidos. Na Parte II, analiso a categoria sociológica do jeitinho, identificando seus (poucos) traços positivos, seus aspectos negativos e contextualizando-o em suas influências sobre a realidade contemporânea brasileira. A conclusão é que o jeitinho brasileiro tem custos morais elevados e, na maior parte de suas manifestações, deve ser superado pelo avanço civilizatório”.

Na Introdução, define o “jeitinho” brasileiro:

“Na sua acepção mais comum, jeitinho identifica os comportamentos de um indivíduo voltados à resolução de problemas por via informal, valendo-se de diferentes recursos, que podem variar do uso do charme e da simpatia até a corrupção pura e simples. Em sua essência, o jeitinho envolve uma pessoalização das relações, para o fim de criar regras particulares para si, flexibilizando ou quebrando normas sociais ou legais que deveriam se aplicar a todos. Embutido no jeitinho, normalmente estará a tentativa de criar um vínculo afetivo ou emocional com o interlocutor”.

No “Ensaio”, cita a estranheza de um cliente inglês com a falsa intimidade de um funcionário brasileiro.

Não há novidade nem profundidade nas elucubrações de Barroso. Mas suscitam um desafio instigante: identificar quem é o personagem no qual Barroso se baseou para suas conclusões, a síntese definitiva e fatal do “ser brasileiro”, o brasileiro macunaímico, esperto, malandro, que muda de opinião de acordo com as circunstâncias.

Quem quiser ler o ensaio, clique aqui. Quem quiser contar a quantidade de vezes que ele se proclamou “homem bom”, “do bem”, “que só faz o bem”, consulte o Google. “Barroso e iluminista” aparece em 112 mil menções; “Barroso e civilizatório” em 87.500 menções.

Quem quiser saber como Barroso às vezes choca interlocutores estrangeiros com a falsa cordialidade clique aqui.

Mas vamos a uma análise de caso mais detalhada.

O garantista que virou punitivista

Ontem, em evento na Associação dos Advogados de São Paulo, perante uma plateia de advogados,  Barroso defendeu a Justiça contra o “clamor público”.

“Em matéria penal não há espaço nem para criatividade judicial, nem muito menos para ativismo judicial e tampouco para clamor público e menos ainda para ouvir voz das ruas. Eu não acho que se mude o país com o Direito Penal, nem com vingadores mascarados. Mas o Direito Penal tem um aspecto civilizatório”. (CQD: toda declaração sua tem que ter o “civilizatório” e o “iluminista”).

Pouco antes, no dia 12 de junho, criticou publicamente a decisão de seus colegas do STF, visando coibir os abusos na condução coercitiva para interrogatório. Segundo Barroso, foi uma “manifestação simbólica daqueles que são contra o aprofundamento das investigações” e que visaria “atingir e desautorizar, simbolicamente, juízes corajosos”.

O que levou Barroso a mudança tão rápida de opinião, na AASP, foi a mesa anterior do encontro. Nela, o ex-Ministro Nelson Jobim fez duras críticas à desmoralização do Supremo, na gestão Carmen Lúcia. E mirou um tipo peculiar de Ministro, aqueles que

“precisam do STF para construir suas biografias. A maneira mais “infantil” de fazer isso é o ministro se voltar contra o presidente que o indicou. A segunda maneira, mais sofisticada, é romper antiga jurisprudência para ficar com a “paternidade” de uma nova”.

Estava ali o desenho a bico de pena de Barroso.

Na mesma mesa, o ex-Ministro Cesar Peluso disparou:

“Qual é o problema dessa postura ditada por algumas decisões ou pelo teor aparente de algumas decisões? É passar ao povo a ideia de que os juízes não são instituídos para julgar, mas para serem justiceiros. A função da magistratura é apenas a de julgar. A revolução, seja ela de que ordem for, é papel das instâncias políticas e da sociedade civil, não é função do Judiciário”.

O discurso de Barroso visou apenas contemporizar, e se adaptar à plateia do momento. Afinal, essa flexibilidade é um dos traços do brasileiro de almanaque, imaginado por Barroso.

Os dois Barrosos

Em sua carreira como advogado, Barroso sempre apelou para esse estilo, de trabalhar seu marketing pessoal investindo em temas legitimadores e, ao mesmo tempo, atuar como advogado, por vezes ajudando a legalizar práticas nocivas.

O advogado e Procurador da Justiça Luís Roberto Barroso ganhou notoriedade defendendo no STF causas como casamento homossexual, direito ao aborto, enquanto o advogado (e Procurador) ganhava dinheiro dando pareceres reservados à Eternit em defesa do amianto. A defesa de teses civilizatórias era pública. O parecer em favor do amianto foi discreto. Consta que Barroso preferiu leva-lo impresso aos Ministros, em vez de passar pelos sistemas digitais da corte.

Esse mesmo estilo está sendo utilizado, agora, em sua atuação pública. A visibilidade conquistada, o discurso punitivista associado a uma capacidade ímpar de autoelogio (ele se define como um “iluminista”, um “agente civilizador”, um homem que só faz o bem) acabou expondo o caráter de Barroso de uma forma ampla.

Chegou ao Supremo com fama de garantista.

Uma reportagem de Maíra Magro e Luísa Martins, em O Valor, descreve bem essas mudanças de tática de Barroso.

“A performance penal do ministro surpreende ainda mais porque ao ser nomeado, bem ao final do julgamento do mensalão, ele dizia pregar o direito penal mínimo. Votou a favor da aceitação dos embargos infringentes, que garantiram a revisão do julgamento de alguns réus, e disse que o caso era um ponto fora da curva. Na época, foi interpretado como crítico de uma suposta politização do STF”.

Em 3 de junho de 2015, dizia ele, a respeito das penas aplicadas no “mensalão”:

Acho que logo ali na esquina do tempo, passadas as paixões políticas, qualquer pessoa que examine com frieza e isenção esta matéria chegará a esta conclusão. Isso sem demérito a quem quer que pense diferentemente, mas ali havia casos, por exemplo, de pessoas condenadas por corrupção ativa cuja pena foi elevada em 18%, 20%, presentes as circunstâncias judiciais do artigo 59 do Código Penal. As circunstâncias previstas no artigo são grau de culpabilidade, antecedentes, personalidade do agente e consequências do crime. E aí, quando analisou-se o crime de quadrilha ou bando, presentes as mesmas circunstâncias judiciais — os mesmos antecedentes, a mesma personalidade, as mesmas circunstâncias, as mesmas consequências — a pena foi majorada em 75%. Não há lógica que sustente isso”.

No dia 3 de abril de 2018, o outro Barroso dizia que

“Juiz tem que construir essas soluções criativas e argumentativamente. É contingência dessa pluralidade. Não pode fazer por seu sentimento pessoal, precisa interpretar o sistema constitucional, escutar o sentimento social e construir solução constitucional adequadamente”.

Como observou o advogado e colunista do Justificando, Márcio Paixão

“para Barroso, o Supremo é uma esquizofrenia que ora consiste “na vanguarda iluminista que empurra a história e tem papel contramajoritário”, ora “deve considerar o sentimento social na interpretação das leis”. Mas e se o sentimento social for constituído por bílis, ódio, rancor e mal secreto?”.

As razões da mudança

O que o levou a mudanças tão profundas?

Relembrando seu voto sobre o mensalão, Barroso contou:

Uma especulação possível é que isso foi feito para evitar a prescrição. Ou eventualmente assegurar que se condenasse alguns réus cumprissem pena em regime fechado. Mas, não é possível majorar artificialmente a pena aplicável para escapar da prescrição. Qualquer jurista dirá que isso não é legítimo. E, consequentemente, a minha convicção é que, aplicados os percentuais razoáveis de majoração da pena, o crime estava prescrito. Eu sei que a opinião pública toda esperava o contrário, porém ali talvez tenha sido o momento que definiu a minha vida como juiz. Qualquer pessoa, mas sobretudo um juiz, e mais ainda um juiz constitucional, deve fazer, na vida, o que é certo e, eventualmente, suportar as consequências. E elas foram muito penosas naquele momento. Porém eu me inspirava ali numa passagem famosa, atribuída a Sócrates: “É melhor sofrer uma injustiça do que cometer uma injustiça”. Ah, fui massacrado pela imprensa”.

Mas o “massacre” da imprensa, ataques de blogs de ultra-direita – que hoje o enaltecem – foram suficientes para Barroso Malasartes encontrar outros caminhos menos íngremes para sua escalada.

O aumento de penas no mensalão, criticado por Barroso, foi o mesmo procedimento adotado pelo TRF4, aumentando as penas aplicadas a Lula, no caso do tríplex, para evitar a prescrição. Não se ouviu uma crítica de Barroso porque, àquela altura, surgia em cena o Outro Barroso, o punitivista desvairado, invadindo as atribuições do Executivo e do Legislativo, ao votar contra o indulto de Natal ou, reinterpretando a Constituição, restringir o foro privilegiado de parlamentares. Sempre de olho na opinião das ruas, filtrada pela opinião do sistema Globo, a quem Barroso segue fielmente.

Conforme o Valor:

Uns o acusam de ter se somado, talvez por vaidade, talvez por pretensões políticas, aos que conclamam uma cruzada anticorrupção para salvar o Brasil – atitude que, partindo de um juiz, comprometeria a tão almejada imparcialidade”.

Essa mesma surpresa foi manifestada pelo subprocurador-geral da República aposentado Francisco Dias Teixeira, em comentário publicado na sua página no Facebook, sob o título “Maturidade e Mudança”, saudando o novo-velho Barroso:

“Nunca é tarde para se modificar. O ministro Luís Roberto Barroso, que já era um jurista maduro quando ingressou no Supremo Tribunal Federal, e no meio do julgamento do mensalão, começou decidindo pela cartilha do ‘garantismo’: sem demonstrar grande indignação diante dos fatos criminosos, e com base numa teoria liberal, ao réu, sobre a prova, absolveu acusados do crime de formação de quadrilha, e, posteriormente, concedeu indulto a condenado por crime de corrupção.

Mas, agora, na Lava Jato, parece seguir a escola do ‘ativismo’: implacável em seus atos e decisões, exultante em suas declarações, considera inconstitucional a concessão de indulto a corrupto”.

Em abril passado, o ex-garantista chegou ao ápice defendendo que o princípio da presunção da inocência não pode impedir prisões.

“O cumprimento da pena se torna uma necessidade em função da garantida da ordem pública”, afirmou.

Justificou-se, como homem bom que só faz o bem:

Eu aplico a todos, ricos e pobres, o mesmo direito penal. Não trato os pobres como se fossem invisíveis e os ricos como se fossem imunes. Nem viro os olhos paro outro lado se o réu for poderoso”.

O Barroso que anulou a Castelo de Areia

Assim como no episódio do amianto, havia dois Barroso em ação. De um lado, o juiz que admitia os abusos legais, o estado de exceção, porque “vive-se uma situação de exceção”.

No entanto, no mesmo momento coube a ele avalizar a mais notória operação de acobertamento de crimes do Brasil moderno: a anulação da Operação Castelo de Areia, interrompida por uma decisão do Ministro César Ásfora, alegando que toda a operação se baseara em uma denúncia anônima e, por isso, deveria ser anulada.

A Procuradoria Geral da República (PGR) apelou para o STF mostrando que o juiz Fausto de Sanctis tinha autorizado a escuta com base, também, em investigações prévias da Polícia Federal. O caso foi parar com o Ministro Barroso. E nosso intimorato linha-dura guardou na gaveta durante todo o ano de 2014.

À medida em que a Lava Jato ia avançando, apareciam os mesmos personagens da Castelo de Areia, como o presidente da Transpetro Sérgio Machado e uma enorme relação de projetos, que batia com aqueles identificados nos arquivos de Alberto Yousseff.

Três procuradores da República foram à Suíça levantar mais dados. Voltaram com informações, pressionando Barroso e se pronunciar sobre o recurso extraordinário.

No dia 18 de fevereiro de 2015, o Ministro Barroso, aquele que admite a quebra da legalidade em nome do combate à corrupção, entendeu que “tanto a inicial quebra do sigilo dos dados telefônicos do recorrido quanto as demais interceptações telefônicas autorizadas pelo juízo de origem tiveram como único ponto de partida delação anônima”. E decretou o fim da operação.

No dia 31 de março último, durante o Seminário “Diálogo entre Cortes: fortalecimento da proteção dos direitos humanos”, no Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília, o honrado Barroso apregoou (https://goo.gl/s8p4AH).

“É impossível não sentir vergonha pelo que está acontecendo no Brasil e não podemos desperdiçar a chance de fazer com que o futuro seja diferente. Nós nos perdemos pelo caminho e precisamos encontrar um caminho que nos honre como projeto de País e nação”.

Algum tempo depois, na histórica “Conferência Brasil”, de alunos da Universidade de Harvard, fez a famosa palestra tentando entender “porque a gente é assim”.

 “Improviso, sentimentos e interesse pessoais acima do dever, compadrio, cultura da desigualdade, quebra de normas sociais e violação da lei que vale para todos não são traços virtuosos, não podem fazer parte do charme de um povo e muito menos ser motivo de orgulho. Nesses exemplos, o jeitinho nada tem de positivo e consiste, na verdade, em desrespeito ao outro, em desconsideração à sociedade como um todo e em condutas simplesmente criminosas. É preciso retirar o glamour do mal e tratá-lo como tal: como um problema que precisa ser superado.”

E, assim, Barroso tornou-se não apenas o intérprete, mas a síntese desse Brasil que emergiu da Lava Jato.

Como diria o grande estudioso da malandragem brasileira, Bezerra da Silva,

“Para tirar meu Brasil dessa baderna, só quando o morcego doar sangue e o saci cruzar a perna”

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