– Em 2018 fizeram-lhe 235 entrevistas e teve 193 547 segundos de tempo de antena – mais do que qualquer outro político. O mesmo verificou-se nos anos seguintes.
Milei é o que no campo político se chama de um outsider. O que se passou com sua figura tão controversa, apoiada por jovens, homens na sua maioria, que ascendeu como espuma? A velha guarda peronista não o viu subir? Ela tem responsabilidade nos resultados deste 19 de novembro?
Vejamos por partes. Em primeiro lugar, Milei era um outsider na arena política, mas não nos meios de comunicação social. Mariana Moyano, a jornalista que infelizmente desapareceu há algumas semanas, verificou que ele foi o economista mais consultado nos programas de rádio e televisão em 2018. Segundo essa fonte, nesse ano ele foi entrevistado 235 vezes e teve 193.547 segundos de tempo de antena. Nenhuma outra figura da vida política se aproxima sequer destes números, e o mesmo aconteceu nos anos seguintes. Por outras palavras, foi uma construção mediática cuidadosamente planeada.
Em segundo lugar, o papel da juventude, a principal vítima do processo de informalização, “desalarização” e precarização do trabalho. O segmento entre 18 e 29 anos de idade, num total de oito milhões 337 mil 914 pessoas, representa 24,29% do eleitorado nacional. Além disso, um milhão 163.477 jovens entre 16 e 17 anos estão aptos a votar. A nível nacional, esta faixa etária representa apenas 3,3% do total dos cadernos eleitorais, uma proporção quase igual à da província de Entre Ríos. Por conseguinte, estamos a falar de um pouco mais de 27% do eleitorado constituído por jovens que pouco ou nada se sentem motivados a votar no candidato do partido no poder, ou que não têm uma memória muito viva dos acontecimentos de 19 e 20 de novembro de 2001 e mesmo da época dourada do kirchnerismo. Não estavam encantados com a proposta oficial, algo que era evidente até mesmo para um cego, bastando comparar o fervor juvenil dos eventos de Milei – cuidadosamente encenados, sem dúvida, mas adequados para despertar o entusiasmo dos jovens – com a embalagem e uma certa indiferença que prevaleceu em quase todos os eventos que o aparelho da Frente de Todos organizou para Massa.
Para concluir esta resposta, é óbvio que a velha guarda peronista, egocêntrica e entrincheirada na defesa dos seus interesses corporativos e setoriais, há muito que não vê o que está para vir, nem tem a mínima compreensão do que é e como funciona a sociedade contemporânea. Não é a única, mas é certamente o principal responsável por este desastre.
Quanto do que Milei prometeu na sua campanha é possível realizar na Argentina de hoje?
É difícil fazer um prognóstico. Há áreas em que a resistência social, espontânea, vinda de baixo, será muito forte. Estou a pensar no caso da tentativa de avançar com a privatização da segurança social, dada a experiência catastrófica da AFJP em todo o mundo. Noutros, talvez não tanto, por exemplo, se o objeto desta política fosse a Aerolíneas Argentinas; mas também aí pode haver surpresas. No caso da YPF, as coisas serão um pouco mais complicadas, porque as províncias são as proprietárias das riquezas do subsolo, o que implicaria abrir um debate difícil de prever para o governo, dada a composição das duas câmaras do Congresso. Em suma, será necessário olhar para cada caso e medir a correlação de forças que prevalece em cada instância.
Há muitos fatores que influenciam está disparidade de reações. Um deles é o facto de muitas das organizações sociais e forças partidárias estarem muito enfraquecidas e deslegitimadas. Segundo a decomposição do universo popular, fragmentado numa miríade de situações laborais marcadas pela precariedade absoluta, pela falta de representação sindical e pela ausência total de legislação protetora que beneficie um sector cada vez mais minoritário da população economicamente ativa. Terceiro, a luta no seio do bloco dominante heterogéneo, onde as fracções ligadas à especulação financeira têm mais influência do que as ancoradas na produção industrial e mesmo na agroindústria. Os resultados variáveis desta disputa entre fracções das classes dominantes serão muito importantes para facilitar ou dificultar a concretização das promessas de campanha do novo presidente.
Milei é uma mudança de paradigma que representa mais a juventude que vem crescendo acompanhada por redes sociais que circunscrevem a realidade a nada mais do que seus interesses?
Ele é um emergente dessa situação de extrema vulnerabilidade de uma juventude brutalmente atingida pela pandemia e pela quarentena e, além disso, por uma política económica que aprofundou a exclusão económica e social e aumentou a pobreza para níveis sem precedentes, com exceção dos breves episódios hiperinflacionários de maio-julho de 1989 e janeiro-março de 1990. Para esta categoria social, a experiência do governo de Alberto Fernández e do seu ministro das Finanças, Sergio Massa, foi um desastre absoluto. Para estes jovens, não havia políticas económicas que permitissem aumentar os salários (exceto para uma minoria, o que era insuficiente), nem uma epopeia que lhes permitisse verem-se como militantes de uma causa nacional, e muito menos um aparelho de comunicação que reforçasse as suas reivindicações e fizesse ouvir a voz dos detentores do poder. Resultado: uma corrida quase maciça em direção a alguém que, astutamente, foi apresentado pelos poderes dominantes como fresco, jovem, inovador, apesar de ser um homem de 53 anos. Surpreendente? Não para aqueles de entre nós que estudam o papel das redes sociais, dos algoritmos e das novas técnicas de neuromarketing político.
Ou para aqueles que, como eu, andaram a pregar no deserto a necessidade de travar a batalha das ideias para a qual tínhamos sido convocados por Fidel desde o final do século passado e que a esquerda em geral e o movimento nacional-popular subestimaram irresponsavelmente. O resultado: triunfo da “anti-política”; identificação da “casta” e do Estado como agentes predadores, ocultando o papel da burguesia e das classes dominantes como agentes da exploração coletiva; exaltação do hiper individualismo e seus correlatos, abandono, senão repúdio, das estratégias de ação coletiva e das organizações de classe, territoriais ou laborais, confiança na “salvação” individual e condenação dos que participavam em protestos coletivos, tudo em benefício da exaltação irracional de um hábil demagogo patrocinado pelos capitais mais concentrados.
Perante esta configuração cultural, era quase impossível, sobretudo com uma inflação a rondar os 13% ou 15% ao mês, que um ministro da Economia responsável por esta situação ganhasse as eleições. Perante este cenário, a votação obtida por Massa é verdadeiramente espantosa.
Será ele capaz de pôr fim ao Estado-providência que caracteriza a Argentina desde meados do século passado, com Perón e Evita?
A primeira pergunta responde em parte a esta questão. Mas há que acrescentar à Argentina de Perón e Evita os importantes avanços económicos e sociais dos anos do kirchnerismo, embora seja evidente que, por muito louváveis que tenham sido, não foram suficientes para enfrentar com êxito os estragos que a acumulação capitalista produz em todo o mundo e, muito especialmente, num país com um Estado tão débil e ineficaz como a Argentina.
Note-se que, como nos assegura um relatório da Central de Trabalhadores da Argentina (CTA), entre 2016 e 2022 a transferência de rendimentos do trabalho para o capital ascendeu a 87 mil milhões de dólares, dos quais 48 mil milhões de dólares foram transferidos em 2021 e 2022, anos em que governou uma coligação “nacional e popular”. O resultado: uma degradação muito grave dos salários, que na economia formal se situam mesmo abaixo do limiar de pobreza. Seria de esperar outra coisa que não fosse a frustração e a cólera de largas camadas do eleitorado face a esta dolorosa realidade económica? De que anticorpos dispunham para não se deixarem seduzir por um discurso disparatado, repleto de mitos absurdos (como, por exemplo, o de que a Argentina no início do século XX era o país mais rico do mundo, entre tantos outros absurdos!), mas que vociferava a necessidade de pôr fim a uma situação intolerável, deixando de lado tudo o que era antigo e execrando uma suposta “casta” que, em seu próprio benefício, os tinha condenado à pobreza e à miséria?
Como encara a oposição a Milei, haverá um movimento para vigiar o seu programa?
Dependerá da reorganização e rearticulação do campo popular, das suas propostas concretas de luta, do carácter da sua estratégia defensiva face aos ataques previsíveis de um governo obcecado em cortar direitos laborais e sociais e em provocar um ajustamento máximo da economia. Depende também do surgimento de lideranças credíveis e com grande poder de convocação, capazes de atrair os milhões de pessoas mergulhadas na miséria e na insegurança pela voracidade ilimitada do capital.
O sistema partidário entrou em colapso e, pior ainda, as forças e identidades políticas que marcaram grande parte da vida política argentina desde meados do século passado até há poucos anos –- o radicalismo e o peronismo – entraram numa crise de proporções sem precedentes. Provavelmente reaparecerão, em chave neoliberal e sob formas mutantes e provavelmente aberrantes que pouco ou nada terão a ver com o ADN que os constituiu.
O radicalismo orgânico desvaneceu-se e os seus eleitores lançaram-se com todas as suas forças na votação de alguém que tinha insultado grosseiramente os dois líderes mais importantes dessa força política: Yrigoyen e Alfonsín. E o aparelho do peronismo, e os eleitores dessa corrente, só em minoria apoiaram a candidatura de Massa. Basta ver o que se passou nas províncias que costumam ser bastiões do voto peronista (La Rioja, Salta, Tucumán, Chaco, Catamarca, Santa Cruz e, em menor medida, outras) para ver que esse eleitorado está agora disponível para qualquer demagogo ou qualquer arranjo cupular decidido pelos grupos que em cada província se apoderaram do selo de aprovação peronista. Nem os radicais nem os peronistas são hoje forças políticas com uma organização, liderança e estratégias de luta política de âmbito nacional. Fragmentaram-se em 24 partidos, um para cada província, e estão dispostos a negociar o seu voto de acordo com as circunstâncias.
Como é e como será a relação de Milei com as forças armadas?
Penso que será muito boa. A vice-presidente Victoria Villarruel é uma apologista descarada da ditadura genocida, uma admiradora do ditador Jorge Rafael Videla e dos seus comparsas na violação dos direitos humanos; será ministra da Defesa e da Segurança.
A socialização política reacionária das Forças Armadas, tarefa para a qual o Comando Sul e os vários tratados de colaboração militar entre os EUA e a Argentina desempenham um papel muito importante, abrirá certamente o caminho para que estas se encarreguem da repressão que as políticas ultraneoliberais de Milei irão necessariamente exigir.
Na linha do que disse e fez Patrícia Bullrich enquanto ministra da Segurança do regime de Macri, Milei dará sinal verde às Forças Armadas e à polícia para libertarem impunemente o seu potencial repressivo contra o “inimigo interno”. A “Doutrina Chocobar” era um protocolo que permitia às forças federais disparar sem dar o alarme contra qualquer suspeito, o que implica um retrocesso muito grave em termos de respeito pelas garantias individuais e pelo Estado de direito. Foi revogado por uma das primeiras iniciativas do governo de Alberto Fernández, mas infelizmente parece que está doutrina vai regressar com o novo governo.
No entanto, resta saber como reagirão as forças de segurança quando se confrontarem com milhares de jovens, mulheres e crianças que exigem justiça, embora as lições da história contemporânea da América Latina mostrem que a confusão entre segurança interna e defesa externa tende a ser a mãe de violações muito graves dos direitos humanos, como aconteceu no México nos anos anteriores ao governo de Andrés Manuel López Obrador. Nos Estados Unidos e nos países europeus, ambas as funções estão claramente delimitadas. O novo governo argentino parece disposto a fazer uma aposta com consequências desastrosas mais do que óbvias. Mas, nesta como noutras questões, como as políticas de redução ou anulação de direitos, seria um erro subestimar a reação da sociedade argentina, que em várias ocasiões se mostrou contrária a ditaduras ferozes ou a planos de ajustamento económico selvagens.
A história argentina oferece numerosos exemplos de resistência e, embora a sociedade tenha mudado muito nos últimos tempos, não seria estranho que essa rebeldia reaparecesse com força vulcânica, mesmo na ausência de estruturas organizativas adequadas. O “Cordobazo” de 1969 e a insurreição popular de 19 e 20 de dezembro de 2001 são espectros que, sem dúvida, perturbarão os sonhos daqueles que pretendem destruir as conquistas económicas, sociais e culturais que o povo argentino obteve através de grandes lutas.
Como o triunfo de Milei pode afetar geopoliticamente a região?
Em primeiro lugar, prejudicará a Argentina porque, de acordo com as exigências de Washington, fará da Argentina um aríete para reduzir a presença da China na região, mesmo à custa de prejudicar os interesses nacionais da Argentina, os seus sectores de exportação e a mão-de-obra a eles ligada. A vitória de Milei é provavelmente uma vitória de “sonho” para o establishment norte-americano, porque encontra no sul do continente um fanático disposto a executar sem questionar as mais pequenas sugestões de Washington: Anticomunista convicto (numa definição tão vaga que vai de Lula ao Papa Francisco, passando pela China, Cuba, Venezuela e Nicarágua); alinhado incondicionalmente com o Império, justificador do genocídio em curso em Gaza, admirador do Estado terrorista israelense e da sociedade norte-americana, Milei na Casa Rosada encorajará com o seu exemplo comportamentos semelhantes entre os líderes de direita dos países vizinhos.
Talvez, e mais uma vez devemos ter em conta as divisões no seio do bloco dominante, ele possa ir ao ponto de não só excluir a Argentina da União das Nações Sul-Americanas (Unasul) e da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e das Caraíbas (Celac), mas também de rejeitar ou adiar sine die a incorporação decisiva do nosso país nos BRICS plus, que deverá ter lugar a 1 de janeiro do próximo ano.
Em suma, a cruzada contra o “inimigo chinês”, segundo os documentos do Conselho de Segurança Nacional dos EUA, encontrou o seu profeta nestas distantes e turbulentas terras do Sul. E, do ponto de vista geopolítico, com Milei na presidência da Argentina, fica afetado negativamente o tabuleiro de xadrez internacional da América Latina e das Caraíbas.
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