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sexta-feira, 14 março, 2025

As relações internacionais

INICIANDO

Ingmar Bergman (1918-2007), grande personalidade das artes suecas, dirigiu, em 1955, o filme que no Brasil teve a tradução “Sorrisos de uma noite de amor” (“Sommarnattens leende”). Na cena em que o advogado e o militar disputam a reconquista da ex-amante, trava-se o diálogo que segue:

“Advogado para o militar: Está havendo alguma guerra, agora?”

“Militar: Não, por que haveria?”

“Advogado: É o que sempre me pergunto. Por que haveria?”

A História, que sempre tem lado, procura apresentar a guerra como uma das formas da convivência humana, na Terra e no espaço.

Porém as guerras, embora resultem necessariamente de disputas, representam antes de tudo o poder, desde o poder sobre a pessoa amada, as guerras conjugais, às do poder político-econômico, as guerras e genocídios deste século XXI.

E que poderes procuram ganhar a maior ou total adesão das nações neste século no qual vivemos? Aquele que foi designado na década de 1990 do “fim da história”, ou seja, da unipolaridade, subordinado à potência hegemônica ocidental, ou aquele que surgiu, na primeira década do segundo milênio, vindo de duas fontes diferentes, mas constituindo a mesma multipolaridade.

Levarão as duas correntes à liberdade ou à dependência? E que tipo de dependência? Dominadora ou para, no esforço conjunto e igualitário, atingirem um só e comum objetivo?

DO SURGIMENTO E ESTABELECIMENTO DA UNIPOLARIDADE

O passado mais próximo da construção da unipolaridade se dá com as consequências das duas Grandes Guerras da primeira metade do século XX: a disputa entre três poderes. Em queda o capitalismo financeiro que conheceu seus dias de glória nos séculos XVIII e XIX. O país que melhor o representou foi o Reino Unido, antiga Grã-Bretanha.

Como vitoriosos, após a II Grande Guerra, o capitalismo e o socialismo industriais. No entanto, pela divergência mais profunda entre capitalismo e socialismo, em especial após o desempenho neste segundo conflito da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), os capitalismos financeiro e industrial representavam a farsa da unidade, diante de um inimigo comum, muito poderoso. Representavam a unipolaridade os Estados Unidos da América (EUA), secundado pelo Reino Unido e pelo então nascente Estado de Israel, este último cujo maior proselitismo ocorre agora, no século XXI.

Para consolidação da unipolaridade, os estrategistas, desde os anos 1950, trabalharam no sentido da constituição de uma União Europeia (UE), criando suas estruturas institucionais e preparando quadros, especialmente para lhes dar operacionalidade.

Assim criou-se um Estado congregando Estados, com os mesmos poderes: executivo, legislativo e judiciário, da tradição ocidental. Para as forças armadas firmaram a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Tendo dois fortes Estados, seguiu-se a dominação dos gentios, como na prática dos europeus: na África, nas Américas e na Oceania. A Ásia sempre resistiu às investidas coloniais principalmente mantendo suas línguas tradicionais ativas, quer nas conversas cotidianas, quer nas manifestações artísticas musicais e literárias, quer mesmo nos documentos de valor para a comunidade.

Este fato nos leva a compreender porque a Ásia está sempre na construção das multipolaridades, como se detalhará mais adiante.

Completando a formação da União Europeia, criou-se uma moeda – o euro – para ter outra expressão de soberania, além da governança e da militar, a monetária, muito cara aos condutores desta “unidade”, cuja ideologia era e continua sendo neoliberal financeira.

Do lado dos EUA, a plutocracia governante deu tranquilidade ao reforçar as condições de dominação, mais voltadas desde a Doutrina Monroe (1923) para o controle das Américas Central e do Sul, além do México e do Caribe. Basta recordar os golpes que impuseram as ditaduras militares de Alfredo Stroessner, no Paraguai (1954-1989), de Castelo Branco (1964), no Brasil, e tantas outras como na Bolívia (1964), na Argentina (1966), no Uruguai (1973), no Chile, de Augusto Pinochet (1973), e repetidas por outros ditadores.

Porém muitas das instituições que atuam em prol da unipolaridade surgiram dos Acordos de Bretton Woods (1944), que estabeleceram um sistema para as conversões das moedas, tendo o dólar estadunidense (USD) como referência, e criaram instituições como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial (World Bank) e a Organização das Nações Unidas (ONU), em 1945.

Pode-se afirmar que ao chegar a unipolaridade, nos anos 1980, as mídias das Américas a saudaram como “processo de redemocratização” e não como imposição, não mais de ditadores militares, mas desta feita com ditadores financeiros, banqueiros.

E assim vivemos no Brasil nestes últimos 40 anos. Porém houve países que se libertaram, primeiro Cuba, em 1959, com Fidel Castro, seguindo-se a Nicarágua, com a Revolução Sandinista de 1960, a Venezuela, com Hugo Chaves, a Bolívia, com Evo Morales, Honduras, com Manuel (Mel) Zelaya, e, mais recentemente, o México, com Andrés Manuel López Obrador e Claudia Sheinbaum.

Porém na imensa maioria dos 30 países que compõe a América Latina, a unipolaridade e a sujeição aos capitais apátridas já estão impostas.

Na África está surgindo uma segunda leva de Independências. A primeira seguiu-se ao fim da II Grande Guerra, em Gana, antiga Costa do Ouro, em 6 de março de 1957, por acordo de Kwame Nkrumah com representantes do Reino Unido. Com guerras, acordos com os colonizadores e com diversificados governos, perdurou por mais de uma década. Esta segunda independência está retirando os últimos laços com o imperialismo europeu, que recebe apoio dos EUA, submetendo as nações africanas. E já algumas, soberanamente, se incorporam ao conjunto das apoiadoras da multipolaridade.

MULTIPOLARIDADE, UMA CONQUISTA DO SÉCULO XXI

Três instituições, todas constituídas no século XXI, respondem pelo mundo multipolar, embora apenas uma com base em evento deste século. Uma delas remonta a mais de 2000 anos, quando a China abriu-se ao comércio com a Ásia, com o Oriente Médio, chegando até à Europa: a Rota da Seda, em atividade desde 130 a.C. e atuante até a Idade Média europeia (1453).

São elas os BRIC, a Organização para Cooperação de Xangai (OCX) e a Iniciativa do Cinturão e Rota (ICR).

OCX – Em junho de 2001, o grupo de países, que haviam constituído em abril de 1996 os “Cinco de Xangai” (Cazaquistão, China, Quirguistão, Rússia e Tajiquistão), decidem ampliar para nova estrutura de nove membros permanentes, incluindo a Índia, o Irã, o Paquistão e o Uzbequistão, de três observadores (Afeganistão, Bielorrússia e Mongólia), nove “Parceiros do Diálogo” (Arábia Saudita, Armênia, Azerbaijão, Camboja, Qatar, Egito, Nepal, Sri Lanka e Turquia) e quatro convidados, um país (Turquemenistão) e três organizações: Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN), Comunidade dos Estados Independentes (CEI) e Organização das Nações Unidas (ONU), formando a OCX, cujos objetivos, já discutidos desde 1997, incluem além da cooperação econômica, a colaboração política e militar para segurança mútua.

BRICS – Em novembro de 2001, analista do Goldman Sachs escreve artigo sobre os países em desenvolvimento que emergiam como candidatos ao estágio de desenvolvidos, no século entrante, criando o acrônimo BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China). Em 2006, os Ministros das Relações Exteriores destes países se reúnem em Nova Iorque para discutirem uma operacionalização de temas de interesse conjunto. Três anos depois reúne-se, pela primeira vez, a cúpula dos BRIC, com seus dirigentes. Em 2011, a África do Sul pede para ser incluída nas reuniões, trazendo o S para o acrônimo: BRICS.

Desde então, o protagonismo dos BRICS e a estrutura de atuação, que permite grupar diversidades de políticas e de ideologias mantendo as identidades nacionais, tem feito crescer os pedidos de incorporação. Na última cúpula, em Kazan (República do Tartaristão, Rússia), em outubro de 2024, e com o ingresso da Indonésia em janeiro de 2025, os BRICS são atualmente onze membros plenos: Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul, Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia, Irã e Indonésia. Há grande número de países candidatos ao ingresso nesta organização que dá a impressão de ser a resposta à unipolaridade de organizações criadas no após II Grande Guerra, incluindo a ONU, com a existência do Conselho de Segurança, com poder de veto sobre as decisões dos 193 estados membros, para somente cinco deles: China, EUA, França, Reino Unido e Rússia.

ICR – Em setembro de 2013 foi criada a Iniciativa do Cinturão e Rota (ICR) que conta atualmente com 149 países, apenas 44 a menos do que a ONU, distribuídos pela África (53), Ásia e Oriente Médio (34), Europa (29), América Latina e Caribe (21) e Pacífico (12).

Entre 2013 e 2023, mais de um trilhão de dólares estadunidenses (USD) já foram aportados pela ICR, mais da metade em projetos de construção (USD 634 bilhões). Como ocorrera há mil anos, a presença comercial da China transformara o mundo; basta ver as tecnologias chegadas à Europa que a permitiram cruzar o Oceano Atlântico e se enriquecer a custa das riquezas e do genocídio praticado por espanhóis, ingleses, holandeses e portugueses no Novo Mundo.

Hoje, em condições ainda agressivas, no entanto mais contidas, esta presença da China está sendo fundamental na consolidação do mundo multipolar.

Detenhamo-nos nesta compreensão da multipolaridade. Não existe um estágio intermediário: ou o país é soberano ou é colônia. Se o representante de qualquer país senta à mesa de negociações com alguma restrição ao seu poder negocial, o país é colônia. Pode ter alguma flexibilidade, mas não goza de autonomia. E ser colônia não significa dependência de outro país mais poderoso, mas de um sistema político, econômico e até religioso. Nas condições existentes no século XXI, a colonização mais evidente está no domínio das finanças apátridas, das organizações financeiras como BlackRock, Vanguard, State Street, Fidelity, Amundi, que atuam pelas suas representantes locais.

Veja-se o caso do Brasil. Em 25 de fevereiro de 2021, foi publicada no Diário Oficial da União (DOU) a Lei Complementar nº 179 que estabelece a “autonomia do Banco Central”, vulgarmente chamada de “independência do Banco Central”. Independência de quem? Ora, caros leitores, do Brasil. Ele passa a estar subordinado aos capitais apátridas cujas organizações gestoras exemplificamos nas cinco do parágrafo anterior.

Esta Lei Complementar que leva a assinatura de Jair Messias Bolsonaro, presidente do Brasil, de Paulo Guedes, ministro da Fazenda, e de Roberto de Oliveira Campos Neto, presidente do Banco Central, e até hoje não foi revogada, demonstra que o Brasil não é um Estado Independente, e explica também porque não aderiu à ICR.

Por outro lado, estando praticamente toda a África na ICR, é fácil entender porque aquele continente esteja passando por uma “segunda luta pela Independência”, agora voltada para a soberania nacional, e não pelas disputas ideológicas da “primeira luta pela Independência”.

As relações internacionais nesta formatação do século XXI de submissos à unipolaridade ou aderente à multipolaridade diz muito sobre a condição submissa e soberana das nações.

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