Foto: Ricardo Stuckert/PR
Heba Ayyad*
No dia 26 deste mês, há exatamente oitenta anos, cinquenta países assinaram a Carta das Nações Unidas em São Francisco, EUA. O documento entrou em vigor quatro meses depois, inaugurando uma nova era nas relações internacionais, baseada no primado do direito internacional, na igualdade entre os Estados, na resolução pacífica de disputas e no compromisso de cada país em respeitar, acatar e implementar as decisões da organização.
Para marcar a ocasião, foi realizada uma exposição de arte na sede da ONU, intitulada “Revivendo o Espírito de São Francisco”, com a exibição da cópia original da Carta e as assinaturas dos Estados fundadores.
Não há dúvida de que, após vivenciar duas guerras mundiais e o fracasso da Liga das Nações, o mundo precisava de uma organização internacional que trabalhasse para “salvar as gerações futuras do flagelo da guerra, que por duas vezes em nossas vidas trouxe sofrimento indizível à humanidade”. Essa era a esperança, a visão e a determinação.
No entanto, os acontecimentos não se desenrolaram como os fundadores esperavam. O mundo logo entrou na chamada Guerra Fria; conflitos entre Estados — ou entre grupos de Estados — retornaram, e surgiram novos desafios que não estavam claramente definidos na época da assinatura da Carta. Esses desafios transcontinentais não podem ser enfrentados por nenhum Estado — ou grupo de Estados — de forma isolada. Entre eles, destacam-se as mudanças climáticas, a pobreza extrema, os desastres naturais, o crime transnacional, o tráfico de drogas, o terrorismo, as armas de destruição em massa, a corrida armamentista, a militarização do espaço sideral, o cibercrime e, por fim, os perigos da inteligência artificial.
Para sermos justos na análise das conquistas das Nações Unidas, devemos enfatizar, desde já, que essa organização internacional estabeleceu três objetivos interconectados e complementares para criar um mundo melhor, menos hostil, mais próspero e mais igualitário:
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O primeiro e mais importante objetivo: a manutenção da paz e da segurança internacionais.
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O segundo objetivo: a proteção dos direitos humanos, individuais e coletivos, sem discriminação de cor, gênero, religião, raça ou condição social.
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O terceiro objetivo, organicamente vinculado aos dois anteriores, é promover o desenvolvimento em seu sentido amplo, com vistas a elevar os países menos desenvolvidos e inseri-los no caminho do progresso e da justiça social.
Se atribuíssemos notas a cada um dos três objetivos, veríamos que a pontuação relativa à manutenção da paz e da segurança internacionais diminuiria; as questões de direitos humanos teriam um leve avanço; e as questões de desenvolvimento apresentaram um crescimento ainda mais significativo.
Secretários-Gerais
Gostaria, no entanto, de revisar brevemente a história da organização internacional no campo da manutenção da paz e da segurança internacionais, por meio das experiências e desafios enfrentados pelos nove Secretários-Gerais, bem como dos marcos mais importantes que caracterizaram cada um de seus mandatos.
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Trygve Lie (1946–1953, Noruega) — Um homem misterioso.
Durante seu mandato, eclodiu a Guerra Fria. A rivalidade entre os dois blocos paralisou a atuação da organização internacional. O Muro de Berlim foi erguido. A Palestina foi dividida, Israel foi admitido nas Nações Unidas e o povo palestino foi deslocado.
Lie foi um dos mais fervorosos defensores da resolução que determinou a divisão da Palestina e o reconhecimento do Estado de Israel. Em 17 de setembro de 1948, o mediador internacional sueco, Conde Folke Bernadotte, foi assassinado em Jerusalém por gangues sionistas, por rejeitar a proposta de divisão.
Mais tarde, foi comprovado que Trygve Lie demonstrava inclinação ao lado ocidental e mantinha laços estreitos com organizações sionistas. Em resposta, a União Soviética decidiu boicotá-lo e exigiu sua saída. Pressionado, renunciou em 1953, deixando o cargo de forma humilhante.
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Dag Hammarskjöld (1953–1961, Suécia) — Um homem corajoso.
Hammarskjöld se destacou por enfrentar tanto o bloco ocidental quanto o oriental. Morreu em 1961, após a queda de seu avião sobre o Congo — evento ainda investigado por uma comissão da ONU. A suspeita é de que tenha sido abatido por se opor às potências coloniais e à secessão da região de Katanga.
Foi um firme opositor da agressão tripartite ao Canal de Suez. Em seu mandato, foi estabelecida a primeira missão de paz entre Egito e Israel: a Força de Emergência das Nações Unidas (UNEF).
Outro marco de sua gestão foi a adoção da histórica Resolução 1514, em 1960, que tratava da “concessão da independência aos países e povos coloniais”. Essa medida impulsionou movimentos de libertação, especialmente na África, promovendo a independência de várias nações e alterando profundamente a composição e os rumos das Nações Unidas.
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U Thant (1962–1971, Birmânia/Mianmar) — Um homem calmo.
Durante seu mandato, ocorreu a Guerra de 1967. U Thant autorizou a retirada da Força de Emergência da ONU do Sinai, o que abriu caminho para o conflito. A guerra terminou com a ocupação de territórios pertencentes a quatro países árabes por parte de Israel.
Após o conflito, foi adotada a Resolução 242 (1967), que exigia a retirada israelense dos territórios recém-ocupados. Esse período também marcou o auge da Guerra do Vietnã, representando um dos momentos mais intensos da Guerra Fria.
Nos últimos dias de sua gestão, presenciou ainda a Guerra entre Índia e Paquistão (1971), que resultou na independência de Bangladesh.
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Kurt Waldheim (1972–1981, Áustria) — Um aristocrata.
Durante seu mandato, ocorreu a Guerra de Outubro de 1973, e um poderoso grupo árabe foi formado. Nesse período, diversas resoluções foram adotadas em favor da Palestina, destacando-se a concessão do status de observador à Organização para a Libertação da Palestina (OLP) — o primeiro concedido a um movimento de libertação nacional.
Durante sua gestão, o árabe passou a ser a sexta língua oficial das Nações Unidas. Em 1974, foi adotada a Resolução 3236, que definia os direitos inalienáveis do povo palestino. No ano seguinte, a ONU aprovou a Resolução 3379 (1975), que classificava o sionismo como uma forma de racismo.
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Javier Pérez de Cuéllar (1982–1991, Peru) — Um homem sem cor, gosto ou cheiro.
Durante seu mandato, a Guerra Fria chegou ao fim e a União Soviética se desintegrou. Entre os conflitos mais importantes de sua gestão destacam-se:
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a invasão israelense do Líbano,
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a Guerra Irã-Iraque, e
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a invasão do Kuwait pelo Iraque,
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eventos que tiveram profundo impacto sobre a ação conjunta dos países árabes.
Nos últimos anos de seu mandato, testemunhou-se o colapso do bloco socialista e o encerramento definitivo da Guerra Fria.
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Boutros Boutros-Ghali (1992–1996, Egito) — Um acadêmico determinado.
Eleito para um único mandato, teve sua recondução vetada pelos Estados Unidos. Durante sua gestão, dezenas de conflitos se espalharam, transformando-se de guerras interestatais em conflitos intraestatais entre grupos étnicos ou religiosos — como ocorreu na Somália, ex-Iugoslávia, Geórgia, Armênia e Azerbaijão.
O período também foi marcado pela desintegração de grandes potências e por dois genocídios que chocaram o mundo:
Ruanda, em 1994,
Bósnia e Herzegovina, em 1995.
Também foi testemunhado o fim do apartheid na África do Sul.
Em 1996, Boutros-Ghali insistiu na publicação de um relatório da ONU sobre o massacre de Qana, ocorrido no sul do Líbano, que atribuía a responsabilidade do ataque deliberado a Israel. Em resposta, a embaixadora norte-americana Madeleine Albright liderou a iniciativa que vetou sua permanência para um segundo mandato.
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Kofi Annan (1997–2006, Gana) — Um homem gentil.
Foi o primeiro Secretário-Geral negro e o primeiro africano a ocupar os cargos mais altos da organização. Demonstrava grande preocupação com os conflitos africanos e desempenhou papel ativo diante de diversos eventos internacionais.
Durante seu mandato:
Ocorreram as guerras africanas,
Aconteceu a guerra do Afeganistão, em 2001,
E a guerra do Iraque, em 2003, a qual ele classificou como “ilegítima”.
Em 2006, também foi testemunha da guerra entre Israel e o sul do Líbano.
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Ban Ki-moon (Coreia do Sul, 2007–2016) — O homem ansioso.
Durante seu mandato, ocorreram três guerras israelenses em Gaza (2008/2009, 2012 e 2014), sem que desempenhasse nenhum papel efetivo. Seu período à frente da ONU não deixou impacto significativo. Também foi durante sua gestão que eclodiu a Primavera Árabe, seguida pelas guerras civis na Líbia, Síria e Iêmen.
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António Guterres (Portugal, 2017–2026) — O homem de posições tíbias.