O governo brasileiro acompanha com tensão a escalada entre EUA e Venezuela. Recentemente, o presidente estadunidense, Donald Trump, autorizou operações da CIA na Venezuela e afirmou
não descartar missões militares terrestres no país sul-americano, sob a justificativa de combate ao narcotráfico.
Em resposta à escalada, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez diversas afirmações nos últimos dias. Em Brasília, na sexta-feira (17), ele afirmou que nenhum outro presidente deve
“dar palpite” sobre a Venezuela e que
“o povo venezuelano é dono do seu destino”.
Já hoje (20), em seu discurso durante a cerimônia de entrega de novas credenciais de embaixadores, Lula evitou falar diretamente dos Estados Unidos e da Venezuela, mas citou um clima de tensão no continente e lembrou que a região é comprometida com a paz. Ademais, afirmou que muitas vezes as tentativas de intervenção podem agravar ainda mais o problema.
As declarações de Lula vêm em um momento que Trump passou a incluir, além do presidente venezuelano, Nicolás Maduro, o colombiano Gustavo Petro no rol de chefes de Estado sul-americanos acusados de liderar cartéis de drogas. Em resposta, o colombiano não só criticou o líder estadunidense em suas redes sociais, como também convocou seu embaixador em Washington, Daniel García-Peña, para consultas.
Colocando-se diretamente no conflito, Lula pretende levar uma proposta de mediação brasileira a Donald Trump quando os líderes se encontrarem, embora a reunião ainda não tenha data definida.
À Sputnik Brasil, Carolina Pedroso, professora de relações internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), destaca que a diplomacia brasileira tem tradição em mediação de conflitos.
A especialista lembra que, em mandatos anteriores de Lula, o país atuou como bombeiro durante crises entre os vizinhos da região, como em 2008, quando houve atritos entre a Colômbia governada por Álvaro Uribe; o Equador de Rafael Correa; e a Venezuela de Hugo Chávez.
À época, militares colombianos adentraram território equatoriano para confrontar integrantes das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC). O episódio levou, inclusive, à morte de um dos comandantes da milícia, Raúl Reyes.
Como as relações entre os países já não andavam bem, Venezuela e Equador posicionaram suas forças armadas, desencadeando uma crise que levou os países à beira de um conflito.
“Naquele momento, o Brasil conseguiu intermediar, com bastante sucesso, uma negociação entre os países para que a situação desescalasse e efetivamente os países voltassem a ter um mínimo de laço diplomático e não caíssem na tentação de entrar em um conflito cujo resultado é sempre inesperado.”
Segundo a especialista, o Brasil atua internacionalmente como porta-voz da América Latina em diferentes fóruns. Em destaque está o seu papel como um dos fundadores do BRICS.
“Em alguns momentos, realmente, os demais países olham para o Brasil e esperam que o Brasil se posicione. Seja pela sua grandeza territorial, pelo seu peso no cenário internacional, pelo seu peso econômico, pela sua larga tradição diplomática de mediar conflitos em várias partes do globo…”
Esse papel teve um dos seus auges durante os primeiros mandatos do governo Lula, quando ocorreu a criação da União de Nações Sul-Americanas (Unasul), instrumento que foi desmobilizado durante a chamada “maré azul”, que atingiu o continente na década de 2010.
Hoje, diz Pedroso, há vontade do governo Lula de retomar essas iniciativas, que já se mostraram bem-sucedidas em evitar conflitos e suscitar a cooperação entre países sul-americanos.
“O Brasil conseguiu fazer isso em outros momentos e está tentando retomar esse papel ativo novamente. Então, sem dúvida, nessa crise entre Venezuela e EUA, o Brasil pode vir a ter um papel fundamental. Mas tem um porém, e esse porém é que o Brasil precisa ser aceito em uma eventual mesa de negociação pelas duas partes.”
Com o enfraquecimento desses instrumentos multilaterais, outro caminho que o Brasil poderia buscar para mediar a crise seria construir uma coalizão de países que seriam diretamente afetados por um conflito entre Estados Unidos e Venezuela, como a Colômbia e o México.
Ambos os países possuem um destaque regional e afinidade à visão brasileira de construir uma agenda altiva no cenário internacional. Além disso, seus líderes, Gustavo Petro e Claudia Sheinbaum, possuem boa relação com o presidente Lula.
“E também são países que têm tido posicionamentos muito importantes no sentido de resistir a algumas investidas unilaterais por parte dos EUA”, afirma.
Em sua fala à Sputnik Brasil, Pedroso frisa que há dois elementos que deixam o Brasil em alerta em relação à crise EUA-Venezuela.
O primeiro é a possibilidade de Trump expandir os ataques, hoje concentrados no mar do Caribe próximo à Venezuela, a outros países da região.
“O segundo precedente, que é muito perigoso, é esse deslocamento das frotas navais e aéreas em direção à Venezuela. E a presença de armamentos nucleares em uma zona que desde os anos 1960 se consolidou como livre de armas nucleares.”
Para piorar, uma possível intervenção pode agravar ainda mais a questão da segurança pública regional, aponta a especialista em relações internacionais. “A Venezuela já é um país que tem um problema de criminalidade muito alto”, diz. E, caso o governo venha a cair, grupos criminosos armados terão ainda mais espaço para atuar. “E isso certamente vai acabar passando pela fronteira.”
Uma situação do tipo ocorreu no Haiti em 2021, quando o presidente Jovenel Moïse foi assassinado durante uma tentativa de golpe de Estado. Desde então, o país, que já enfrentava sérios problemas de segurança pública, viu sua situação piorar, com grandes áreas do país em controle de gangues armadas.
Brasil se distanciou do papel em 2024
Luis Javier Ruiz, analista internacional e cientista político venezuelano, avalia que o Brasil pode ser um mediador da crise, ainda que tardiamente, já que o ideal seria ter adotado essa posição em 2024.
“A liderança brasileira é reconhecida como um ator geopolítico, econômico e político. […] Acredito que a atitude do Brasil — o governo brasileiro, o governo Lula ou o Itamaraty — vacilou no ano passado e efetivamente anulou seu papel de mediador. E [a iniciativa] deve ser retomada.”
Entretanto ele diz observar o contrário, com o Brasil desempenhando um papel não importante ou decisivo na questão e “uma espécie de distanciamento” de Lula.
“É lamentável que, neste momento, na minha perspectiva, o Brasil esteja desempenhando um papel muito contido, um papel muito discreto, quando tem as qualidades para ter um perfil mais elevado e se posicionar contra os EUA em termos diplomáticos.”
Ele acrescenta que embora a ameaça à Venezuela, e aos demais países sul-americanos, não seja só militar mas também econômica e comercial, ainda há “muita ambiguidade no governo em relação aos assuntos internacionais”.
“Esse possível conflito afetaria diretamente a região da América Latina. Por exemplo, no tema das importações e da atividade comercial marítima, a atividade comercial portuária. É bom dizer isso porque a maioria dos nossos países tem economias de portos, e essas economias de portos dependem, em boa medida, da navegação no Atlântico”, explica.
Entretanto, ainda não é tarde para o Brasil desempenhar um papel mais ativo na região de mediador geopolítico e de contrapeso aos Estados Unidos.
“O Brasil poderia ser um contrapeso em termos comerciais, em termos políticos, ao lado do México, em relação às políticas de Trump, mas não está fazendo isso. Eu creio que se México e Brasil se unirem em defesa do desenvolvimento econômico da América Latina, os EUA seriam obrigados a retroceder em relação às medidas tarifárias e à movimentação militar na região.”