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sexta-feira, 4 outubro, 2024

ALIANÇAS, TRAIÇÕES E INTERESSES DE CLASSE

 Pedro Augusto Pinho*
Recente artigo do pensador, político e jurista Tarso Genro, publicado no jornal Brasil 247, “Névoa na memória: Montalban e a estratégia petista”, trouxe-me duas sensações. A primeira de tristeza, por se ter perdida, durante os governos de Lula e Dilma, uma dúzia de oportunidades de elevar o debate no Supremo Tribunal Federal (STF) com a presença de Tarso Genro. A segunda da urgência de se discutir, há um ano das eleições, o significado das alianças.
Para esta segunda, tentarei, sem o brilho e a profundidade do Tarso Genro, discorrer, pedindo a compreensão do meu prezado leitor para breve resumo histórico.
A unificação alemã, em 1871, representou um novo período de tensões na Europa. Recordemos que o Congresso de Viena, em 1815, deixara a Inglaterra praticamente sem concorrentes na colonização da África e da Ásia. Historiadores apontam a inteligência britânica em evitar o surgimento de um rival no continente europeu. A fragmentada Alemanha – a Confederação era formada por 39 estados independentes – passou boa parte daqueles anos em lutas pela liderança germânica, ao fim conquistada pela Prússia, ao coroar Guilherme I, Imperador.
Duas citações mostram, a meu ver, as diferenças internas na formação do Império Alemão. Alberto Malet e J. Isaac, em “Los Tiempos Modernos” (Editoral Iztaccihuatl, México, 1959), afirmam ser a Prússia “uma ideia, realizada por uma família, os Hohenzollern, e um exército”. Já a Áustria, que disputava a liderança germânica, era “um verdadeiro congresso de principados e de reinos”.
Mas não nos iludamos com esta “democracia” austríaca. Em estudo sobre os Habsburgo, que por mais de um século dirigiram a Áustria, o historiador e político inglês Alan Sked (Declínio e Queda do Império Habsburgo, Edições 70, Lisboa, 2008) atribui ao estadista austríaco, Príncipe Metternich, a frase: “tudo pelo povo, nada através do povo”. Confirmando a descrição do viajante Peter Turnbull, em 1840: “provavelmente não há região da Europa que mais abunde doações caridosas do que nas abastadas províncias do Império Austríaco” (Austria, vol. 2, Forgotten Books, 2008, versão digital).
Um tanto atrasada na disputa colonial e com grandes demandas internas, a Alemanha busca as compensações com a I Grande Guerra. Sua derrota em 1918, um ano após o Império Russo se transformar em República Socialista, só aguça os problemas. O pós guerra vê surgir partidos, associações, grupos com múltiplas tendências e soluções para a enorme crise: crise política, crise econômica,  crise social e também crise militar.
Este fértil período, entre 1918 e 1923, denominado Revolução Alemã, servirá para os exemplos de nossa reflexão. Não só pelas forças políticas e econômicas, mas pelas motivações que ainda permanecem, além da trágica resultante: a ascensão e a vitória do nazismo. Ressalto que a história é sempre única. Mas alianças, traições e interesses de classes são humanos.
Em ótimo trabalho sobre “A Revolução Alemã” (Unesp, SP, 2017), a professora Isabel Loureiro enumera os partidos e tendências que serão os protagonistas, a partir de 1918. Resumo:
– à direita, o Partido Nacional Popular Alemão (DNVP), principal partido após 1919, com monarquistas, grandes proprietários de terra, industriais, oficiais e parte da classe média, sobretudo no leste alemão.
– ao centro-direita, o Partido Nacional Liberal, liderado por Gustav Stresemann, que será substituído, em 1919, parcialmente pelo Partido Popular Alemão (DPV), com Stresemann e Thyssen, representando os interesses do grande capital;
– ao centro, o Zentrum (Centro), partido católico, que será dividido, em 1919, no Zentrum, fração democrática, liderada por Erzberger e Joseph Wirth, dominada pela ala da direita; e o Partido Popular Bávaro (BVP), denominação local que exprime, principalmente, os interesses dos operários e pequenos camponeses católicos.
Também no centro, o Partido do Progresso Alemão, que acolhia a ala esquerda dos liberais, liderados por von Payer e Haussmann. Uma ala do Partido Nacional Liberal (centro-direita) e o Partido do Progresso Alemão formarão, em 1919, o Partido Democrata Alemão (DDP), representando a burguesia liberal e a pequena burguesia. Neste estará o irmão de Max Weber, Alfred Weber.
– à esquerda: Partido Social Democrata Alemão (SPD), que será majoritário e irá  se inclinando para direita e terminará por apoiar até os monarquistas. Poderia dizer que é um partido burocrata conservador. Seus líderes mais importantes são Friedrich Ebert, Philipp Scheidemann e Hermann Müller. O Partido Social Democrata Alemão Independente ((USPD), com duas alas: da direita com Dittmann, Kautsky e Bernstein, e da esquerda com Ledebour e Kurt Eisner (este importante líder bávaro).
A Liga Spartakus que pertencerá até dezembro de 1918 ao USPD, quando formará o Partido Comunista Alemão (KPD). Muitos de seus líderes são conhecidas personalidades históricas, como Rosa Luxemburg, Karl Liebknecht, Clara Zetkin e Paul Levi. E os Delegados Revolucionários (RO), nascidos nas fábricas de Berlim, nos anos da guerra, liderados por Richard Müller.
Elemento importante nas lutas políticas, que se transformaram em conflitos armados na Revolução Alemã, são os Conselhos, que Hannah Arendt chamará “tesouro perdido”. Havia Conselhos de Operários, de Soldados, formados regionalmente e nacionalmente.
A experiência de Conselhos, como instrumento de administração democrática, foi tentada, mas não aprofundada, nos governos petistas – Sistema Nacional de Participação (SNPS) – até o Decreto nº 8.243, de 23/05/2014 (Política Nacional de Participação Social (PNPS), ser detonado no Congresso, com o relatório de Eduardo Cunha (PMDB-RJ).
Também na Alemanha a discussão teve idêntica argumentação: os Conselhos enfraqueciam a representação parlamentar. Este foi também um argumento que levou o SPD caminhar para direita. Mas, efetivamente, o que se observou foi a política de dar corda para a ação popular, acreditando na pouca experiência administrativa, na gravidade da situação econômica, e no capital minando qualquer solução ou benefício para a maioria.
Isabel Loureiro apresenta um caso que qualifico exemplar e é seguido por grande número destes agentes do terror e da fome. Transcrevo, resumindo:
“Hugo Stinnes, industrial poderoso referia-se à arma da inflação, que sabia manejar com destreza em proveito próprio. Ele e outros grandes industriais tinham fácil acesso ao crédito bancário. Com isso compravam empresas menores sem acesso ao mesmo crédito. Durante a guerra, o império Stinnes abarcou minas de carvão, fábricas de aço, indústrias elétricas, fábricas de papel, jornais, editoras, estaleiros, hotéis e fazendas. Especulando com o marco comprou 572 empresas. Realizava seus ganhos em moedas estrangeiras e pagava com os desvalorizados marcos. Quando Joseph Wirth, chanceler, pediu sua colaboração, ele propôs a privatização das ferrovias e vantagens fiscais”.
Dispensado qualquer comentário, chamo apenas a atenção para a compra de jornais.
Em algumas oportunidades, as esquerdas conseguiram maioria e puderam governar. Foram sabotadas pelos Stinnes e pela direita, que tinha boa parte da imprensa a seu lado. Quando a direita sofre a segunda derrota em Munique, o governo de Johannes Hoffmann resolve chamar os Freikorps (grupos paramilitares) de Gustav Noske (Ministro da Defesa) que entram assassinando, aniquilando a República dos Conselhos. Não é surpresa que entre estes “corpos francos” se encontrem Rudolf Hess, Ernst Röhm (Estado Maior das SA), Heinrich Himmler, que faziam assim seu treinamento para 1933.
Vemos, nesta experiência multipartidária alemã, com partidos que transitam da esquerda para direita (o que não nos assombra neste tempo golpista), que as alianças são instáveis. No Partido Comunista Alemão, após o II Congresso da Internacional Comunista, houve radical mudança de posição, passando do apoio aos “métodos legais da democracia parlamentar”, pregados pelo SDP, à “hora decisiva” em que a classe operária combaterá “de armas na mão”.
Também a democracia parlamentar – já criticada por K.M. Panikkar, nas conferências de 1958, na École des Hautes Études (Problèmes des États Nouveaux, Calmann-Lévy, Paris, 1959), “este sistema não penetrou no povo, nem nos próprios dirigentes”, como na introdução de “A Revolução Alemã”, “a democracia parlamentar, hoje mais que nunca apenas uma máscara para a acumulação do capital” – é o modelo que temos para alianças ou fixação de posições diferenciadas.
Curioso que no livro atribuído a Adolf Hitler – Minha Luta – haja um subtítulo (II Parte, Capítulo VIII) “O forte é mais forte sozinho”, onde se lê sobre alianças: “Toda realização importante será geralmente a satisfação de um desejo alimentado, de há muito, secretamente, por milhões de entes humanos” e adiante, no mesmo capítulo, “a fundação do Reich alemão resultou de uma luta pela hegemonia, sendo a Prússia que saiu vitoriosa”. “Quem acreditaria, há duzentos anos, que a Prússia dos Hohenzollern seria a célula mater do novo reino?” “Quem poderia imaginar um Reich alemão implantado sobre as bases de uma dinastia corrompida?”
Vemo-nos, portanto, diante de uma decisão mais complexa do que um simples acordo eleitoreiro. Uma aliança deve se firmar sobre princípios e projetos que as partes tenham idêntica vontade de ver triunfar.
Seria possível ver a crise política como uma crise de representatividade e propugnar pela formação, valorização e aprofundamento dos Conselhos? Aqueles rejeitados por Eduardo Cunha? Ver a crise econômica como uma consequência do modelo concentrador do capitalismo financeiro e propor a efetiva interferência do Estado na fixação de câmbios e juros, diferenciados conforme os objetivos e o interesse social? Ou aceitar um Estado Mínimo, vestibular para o Nenhum Estado?
Ou então não teremos alianças, mas uma pré estreia de outro golpe. Mais um oportunismo, desacreditando a política aos olhos do povo, com as graves consequências que podemos antever.
Não estou investido de autoridade para me responsabilizar pelos resultados, isto me inibe de apontar caminhos ou dar soluções, mas imagino que as lideranças partidárias, os candidatos devam considerar as consequências de seus atos para o próprio futuro da atividade política.
*Pedro Augusto Pinho, avô, administrador aposentado

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