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segunda-feira, 14 outubro, 2024

Algo de podre na cena de Obama contra ‘os russos’

Matt Taibbi, Rolling Stone
5ª-feira, num desenvolvimento extraordinário, o governo Obama anunciou várias sanções contra a Rússia. 35 cidadãos russos serão expulsos do país. O presidente Obama distribuiu declaração tensa, em que parece culpar a Rússia pelo hacking dos e-mailsdo Comitê Nacional Democrata. “Esse roubo de dados e exposição de atividades só podem tem sido dirigidas pelos mais altos escalões do governo russo,” escreveu Obama. No primeiro momento a Rússia, em tom sombrio, ameaçou retaliar. Hoje a mídia russa até publica que Putin convidou “filhos de diplomatas norte-americanos” a visitar a “árvore de Natal no Kremlin,” como cúmulo de resposta sarcástica/ameaçadora/repugnante à moda Putin.

Essa história dramática empurra todos os jornalistas para uma loteria perigosa. Sem verificação independente, os repórteres terão de confiar em avaliações secretas por agências de inteligência, para cobrir a história.

Muitos jornalistas que conheço estão em silencioso frenesi, por terem de fazer exatamente o que tiveram de fazer com resultados catastróficos. Todos nós nos lembramos do fiasco que foi o ‘evento’ das (inexistentes) Armas de Destruição em Massa.

Déjà vu. Está acontecendo tudo outra vez” é o mínimo que um amigo me diz.

Vê-se o constrangimento estampado nas manchetes que circularam pela Internet na 5ª-feira. Algumas agências de notícias pareciam divididas entre ou declarar sem meias palavras que os russos “hackearam, sim”, ou elevar a aposta e deixar a responsabilidade com o governo, usando formulações do tipo “Obama diz que”.

O New York Times foi mais agressivo, escrevendo com todas as letras “Obama responde à Rússia, pelo hacking nas eleições”. E apoiou sua matéria com um link para um relatório conjunto do FBI e Segurança Nacional que detalha o modo como serviços civis e militares russos (designados como “RIS” no relatório) teriam quebrado em duas ocasiões as defesas “de um partido político nos EUA”, presumivelmente os Democratas.

O relatório é cheio de jargão, e ralo de fatos. Mais da metade é só uma lista de sugestões para medidas preventivas.

A certa altura se sabe que o nome em código na comunidade de inteligência para os russos ciber-do-mal é GRIZZLY STEPPE, detalhe até que bem sexy.

Mas não se descobre grande coisa sobre o que teria levado nosso governo a decidir a) que os hacks seriam obra do governo russo; ou b) que foram empreendidos com o objetivo de influenciar a eleição e, especialmente, de ajudar a eleger Donald Trump.

O problema com essa história é que, como na infinita trama de mentiras que foram as “Armas de Destruição em Massa” no Iraque, acontece em ambiente fortemente politizado, quando os motivos de todos os atores relevantes são suspeitos. Nada faz sentido.

Se as agências de segurança dos EUA tivessem prova indesmentível de que os russos organizaram uma campanha para intervir em eleições para a presidência dos EUA e entregar a Casa Branca a Trump, nesse caso expulsar umas três dúzias de diplomatas é resposta esquisitamente frouxa e fora de hora. Hoje, ouvem-se vozes dos dois partidos nos EUA que dizem exatamente isso.

“Na Rússia não acontece muita coisa sem Vladimir Putin,” disse o presidente Obama em conferência de imprensa dia 16 de dezembro, comentando as acusações de que hacking feitas aos russos.

Senadores John McCain e Lindsey Graham Republicanos observaram o “preço baixo” que Rússia pagou por seu “ataque descarado”. O Comitê Nacional Democrata, por sua vez, disse na 5ª-feira que, se ficar só nisso, a resposta de Obama é “insuficiente” como reação aos “ataques de uma potência estrangeira contra os EUA.”

O “preço baixo” é, mesmo, surpreendente e estranho. Também, como na fábula das Armas de Destruição em Massa, há um elemento de ‘insistência de vendedor que quer empurrar seu produto’ no modo como Obama está insistindo em alimentar a narrativa dos ‘hackers russos’, suficiente para deixar os repórteres nervosos. Por exemplo, essa linha da declaração de Obama sobre diplomatas norte-americanos que estariam sendo tratados inadequadamente em Moscou:

“Além disso, nossos diplomatas passaram por nível inaceitável de incômodos e abusos em Moscou, pelos serviços de segurança e de polícia russos ao longo de todo o ano passado.”

O comentário parece fazer referência a um incidente durante o verão, no qual um diplomata norte-americano foi espancado fora do das instalações diplomáticas em Moscou. Aconteceu depois de um caso de 2013, quando um diplomata norte-americano de nome Ryan Fogle foi preso em circunstâncias similares.

Fogle foi descrito inequivocamente como agente da CIA em várias matérias. Fotos do “kit espião” de Fogle, com perucas e um mapa da cidade que ele estaria transportando ao ser preso – foram tema de incontáveis piadas na imprensa e nas mídias sociais russas. Assim como hoje, nessa história de ‘hackers russos’, os russos comuns pareciam divididos sobre o que acreditar.

Se os russos influíram numa eleição, é motivo suficiente para disparar resposta massiva – muitíssimo mais forte e profunda que a resposta possível em caso de eventos corriqueiros de espiões. Obama falar dessas tolices sem gravidade dá a impressão de estar precisando ‘acrescentar’ substância ao caso que, de tão frágil, não sobreviveria sem elas.

Acrescenta-se ao problema que nos últimos meses da campanha e também desde a eleição, vivemos em clima de invencionices diárias na imprensa, com clara motivação política, sempre que se fala de Rússia. Colunistas e especialistas em geral com tendência a favor dos Democratas mostram-se exasperantemente rápidos ao repetir a frase “a Rússia hackeou a eleição.”

Essa ‘presteza’ levou a confusão generalizada entre os públicos que assistem aos noticiários de TV e rádio, sobre se os russoshackearam os e-mails do Comitê Nacional Democrata (história para a qual há, pelo menos, alguma rala prova, ainda que não seja prova muito forte), ou se os russos hackearam os boletins de contagem de votos em estados críticos (fábula muito mais descabelada, para a qual absolutamente não há nenhum tipo de prova em que se possa acreditar).

Como observaram The Intercept e outros veículos, uma pesquisa de Economist/YouGov realizada esse mês mostra que 50% de todos os que votaram em Clinton acreditam que os russos hackearam as planilhas de contagem de votos.

É número tão incômodo quanto os 62% de eleitores de Trump que creem na denúncia sem qualquer prova feita por Trump/Alex Jones, de que “milhões” de imigrantes sem documentos votaram na eleição.

Há também o episódio da publicação, no Washington Post de matéria completamente alucinada sobre os russos estarem aumentando o fluxo de “notícias falsas” nos EUA. Essa matéria irresponsável, como adiante se descobriu, baseava-se em grande parte em publicações de uma fonte de idoneidade gravemente duvidosa chamada “PropOrNot”, que teria identificado 200 organizações de mídia alternativa nos EUA que estariam sendo usadas como “idiotas úteis” pelo estado russo.

O Post depois se distanciou da matéria, dizendo que “não se responsabilizava pela veracidade dos informes divulgados por PropOrNot.” Modo muito estranho de pôr as coisas numa declaração, que não chegou a ser retratação completa. A noção de que seria OK publicar acusações quando você não confia absolutamente no que diz sua fonte estão muito distante do que se supunha que fosse a regra num jornal como o Post.

Houve outros excessos. Uma entrevista que Julian Assange concedeu a um jornal italiano foi degradada nas publicações ocidentais, com jornais como Guardian ‘informando’ que Assange teria “elogiado” Trump e feito comentários lisonjeiros sobre os russos, o que absolutamente não se confirma se se lê o texto original real da entrevista. (Depois, o Guardian realmente “emendou” vários trechos da matéria inicial).

Matérias assinadas por repórteres simpáticos aos Democratas – como Kurt Eichenwald, que publicou matérias realmente muito suspeitas, inclusive uma que ele próprio admitiu que não tinha nenhum fundamento real, de que nos anos 1990s Trump teria cumprido sentença de prisão – têm tentado argumentar que prepostos de Trump podem ter tido contatos com os russos, porque ou visitaram a Rússia ou apareceram em programas da rede de notícias RT. Matérias semelhantes sobre conspirações russas também sempre se baseavam em fontes da segurança, “que pediram que” seus nomes não fossem divulgados.

E agora é essa história das sanções, que é mais um enigma. Parece que amplos setores da mídia estão engolindo sem questionar a conversa sobre interferência dos russos nas eleições, que brota dos meandros do governo Obama.

Foram os russos? É possível. Se foram, é preciso fazer muito barulho e divulgar o mais possível. Mas no momento a única certeza é que a imprensa embarcou num voo cego. Insistir e aprofundar os relatos mais delirantes mas que não têm nem vestígio de prova é problemático, porque estão em jogo incontáveis cenários possíveis, todos muito diferentes entre eles.

Numa ponta do espectro, os EUA podem ter sido vítimas de um golpe de estado virtual arquitetado em combinação por Donald Trump e Vladimir Putin – evento que pode ser o mais grave de tudo que jamais aconteceu à democracia norte-americana.

Mas também é possível que se trate de escandalosa campanha para tentar livrar a cara, inventada e disseminada por um Partido Democrata que deu muitos sinais de precisar desviar a atenção do país para bem longe da extensão monumental de seus próprios fracassos eleitorais.

Parece que os Democratas, já perto do ocaso de um governo catastrófico, podem estar-se valendo de uma “avaliação” de inteligência super-super interpretada, para deslegitimar o governo Trump que chega e empurrar Trump para uma situação política embaraçosa: E agora? Trump aliviará na relação com os russos, e se deixará ver como covarde e tolo? Ou escalará cada vez mais, nesse confronto com uma potência nuclear?

Bem pode ser também alguma coisa entre esses dois pontos. Talvez os russos não tenham encomendado o crime, mas apenas ajudaram a tornar possível o hacking? Ou talvez os russos realmente hackearam o Comitê Nacional Democrata, mas o material de WikiLeaks veio, de fato, de outra fonte? Há até matéria já publicada sobre isso, que tem por fonte um ex-embaixador britânico (não que ex-embaixadores britânicos sejam mais confiáveis que qualquer outra fonte).

O problema está, precisamente, é que não sabemos de coisa alguma.

Deveríamos ter aprendido do episódio de Judith Miller. Não apenas os governos mentem como, além disso, não hesitam em jogar à fogueira as agências de notícias. Num momento de desespero, sempre usam qualquer salafrário que se apresente, se acrescentar algo que facilite a fuga. (…)

Já saímos queimados várias vezes antes, em histórias desse tipo, sempre com resultados desastrosos. Isso, precisamente, é que torna ainda mais surpreendente que nenhum jornalista esteja investigando a fundo, dedicado a não se deixar enganar mais uma vez.*****

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