No último sábado (29) moradores da capital leram em um microfone, por doze horas, nomes, idades e profissões dos mortos na repressão
Nome, sobrenome, idade, profissão, data de fuzilamento. E de novo: nome, sobrenome, profissão… Todos os anos, no dia 29 de outubro, véspera do Dia em Memória dos Mortos pela Repressão Política, ativistas proferem esses dados em um microfone no centro de Moscou.
A ação civil “Devolução dos nomes” acontece todos os anos, na mesma data, há uma década. Dessa maneira, os russos tentam preservar a memória de milhares de engenheiros, médicos, professores e trabalhadores soviéticos que um dia deixaram suas casas para nunca mais retornar, vítimas da repressão stalinista (que durou do final dos anos 1920 até o início dos 1950).
“O Estado totalitário não apenas matava as pessoas, mas buscava apagar seus nomes da história, destruir qualquer memória sobre elas. O restabelecimento dos nomes é a devolução das memórias dessas pessoas, caluniadas e mortas, é a rejeição da ditadura, é nosso passo rumo à liberdade”, lê-se em comunicado da sociedade internacional “Memorial”, organizadora do evento.
A lista tem mais de 40 mil nomes, mas, nesses anos todos, só foi possível ler metade dela.
A ação acontece diante da Pedra Solovétski, principal monumento às vítimas da repressão, localizado na Praça Lubiânskaia, em frente ao prédio do FSB (serviço de segurança que substituiu a KGB).
Ali, as pessoas esperam, em pé em uma fila, por duas a quatro horas para ter a chance de fazer sua contribuição ao microfone lendo alguns nomes.
Uma fila com sentido
Em 2016, a fila teve mais pessoas que no ano anterior. Os pretendentes ao microfone se postam em silêncio, depois leem, por alguns minutos, os dados que lhes são fornecidos pelos organizadores, para retornarem só no ano seguinte e continuar a leitura.
Os termômetros da capital costumam marcar, no fim de outubro, quase zero graus Celsius. Mas os participantes vestem roupas quentes e classificam a fila para o microfone como “a mais consciente da Terra”.
“Uma mulher grávida na fila para a ação Devolução dos Nomes dizia ao telefone que ou chegava logo na pedra, ou daria a luz ali mesmo. Mas o mais tocante é quando são vozes de crianças lendo os nomes e datas de fuzilamento”, escreveu nas redes sociais a participante Marina Dedales.
Outro participante, Mikhail Danilov, lembra como viajava com os pais a um lago próximo à cidade de Scherbinki, nos arredores de Moscou:
“Íamos nadar em um pequeno lago ali, sem saber que a apenas algumas centenas de metros, no Polígono Bútovski, estavam atulhados em um fosso dezenas de milhares de fuzilados”.
Atualidade da Gulag
O sistema de campos e locais de reclusão não tem lugar na nova identidade pós-soviética da memória sobre a Gulag (da sigla em russo, “Administração Geral dos Campos de Trabalho Correcional e Colônias”), de acordo com o jornalista Oleg Káshin.
A Rússia após os anos 1990 e 2000 tentou “com anuência e resignação” inventar uma nova identidade nacional baseada na guerra de 1941-1945, diz ele.
A Gulag assustou, mas apenas em um contexto comunista, para que não se permitisse o retorno dos “vermelhos” ao poder. Era algo “sobre o qual não era interessante pensar e não se podia chorar”, completa Káshin.
Agora, o tema da Gulag está atualizado: a quantidade de presos políticos na Rússia em 2016 dobrou, de acordo com o “Memorial”.
Mesmo que chegue a 100, porém, esses números não são equiparáveis aos da era Stálin. “Mas é justamente devido ao aumento da pressão sobre civis, ao retorno de monumentos a tiranos como Stálin, à justificação de seus crimes pela ‘economia efetiva’ que mais e mais pessoas voltam à Pedra Solovétski “, diz a ativista Ekaterina Mámontova.
Afinal, de algumas das pessoas na lista, tudo o que restou foram aquelas linhas.
“Em 29 de outubro de 2014, fui pela primeira vez à ação Devolução dos Nomes. No caminho, li a lista e encontrei ali meu bisavô Nikolai… E não sei como transformar essa linha escrita em uma pessoa”, diz o ativista Ígor Kononko, que participou de um braço da ação em Londres.
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