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sexta-feira, 29 março, 2024

Abraçar com os olhos Eduardo Galeano

Nestes dias em que, contraditoriamente, os abraços poderiam fazer-nos dano; estamos nos lembrando daquele autor que lhes dedicou um livro e, se isso não bastasse, mostrou-nos com a firmeza de sua palavra, a necessidade de que esse gesto meigo se convertesse em arma solidária para banir do planeta o rosto de um capitalismo que asfixia e mata.

Se — como é bem sabido — lembrar é um convite a voltar passar pelo coração, retornemos hoje àquele que, a partir de sua caneta efusiva e profunda, nos ensinou simples formas de querer-nos; aquele que, embora ainda esteja vivendo entre nós, faz cinco anos empreendeu a viagem definitiva.

Não existe livro dele que, após ter sido lido, não haja ninguém que não tenha saído solidamente comprometido com o bando justo do mundo. Ler Eduardo Galeano nos junta com os «João-ninguém», provoca-nos batimentos que enaltecem a condição humana. Tanto faz se lermos Las venas abiertas de América Latina — escrito com apenas 30 anos — com verdades tão contundentes que, se bem contribuiu para abrir «espaços de liberdade», foi proibido pelos ditadores do sul do continente.

Tanto faz se o escutamos com sua voz testemunhal em Días y noches de amor y de guerra, onde as verdades descritas abalam a paz imperturbável daqueles que não se envolvem; ou se a aproximação é à obra Patas arriba, la escuela del mundo al revés, publicada por volta do ano 2000, onde se eternizam, a partir da escrita, realidades envergonhantes que fazem abalar os mais céticos e reforçam as consciências.

Se bem perante estas e outras não citadas obras de Galeano, o leitor não apenas sucumbe, mas se prontifica e define, seduzido pela narração histórica, a afluência de dados, a anedota que acaba em aparentes simplezas, ou as curiosidades que exaltam, o convite destas linhas hoje é para reencontrarmo-nos com Espejos, una historia casi universal, o livro de mais de 400 páginas que lançou em sua última visita à Casa das Américas, instituição que galardoou o dito livro com o Prêmio de narrativa José María Arguedas, em 2011.

Na Casa, Galeano leu na época, vários dos mais de 600 relatos que conformam este livro singular, onde desfilam atores principais e secundários desse grande «romance» que pinta a civilização humana, quase cronologicamente, desde sua gênese até os nossos dias.

A partir das primeiras páginas, umas perguntas nos pedem refletir: não teremos sido capazes de sobreviver, quando sobreviver era impossível, porque soubemos defender-nos juntos e partilhar a comida? Esta humanidade de agora, esta civilização do salve-se quem puder e do cada um no seu teria durado algo mais do que um tempinho no mundo. Como pudemos?

Muito avançada a leitura, quando já não é possível se afastar dos textos, o capítulo Humanitos, faz-nos envergonhar:

(…) Já não sabemos se somos obras perfeitas de Deus ou piadas péssimas do Diabo. Nós, os humanitos: / os exterminadores de todo, / os caçadores do próximo, / os criadores da bomba atômica, a bomba de hidrogênio e a bomba de nêutrons, que é a mais saudável de todas, porque liquida as pessoas, mas deixa intatas as coisas, / os únicos animais que inventam máquinas, / os únicos que vivem ao serviço das máquinas que inventam, / os únicos que engolem sua casa, / os únicos que poluem a água que lhes dá de beber e a terra que lhes dá de comer, / os únicos capazes de se alugar ou de se vender ou de vender seus semelhantes, / os únicos que matam por prazer, / os únicos que torturam, / os únicos que violam. / E também os únicos que riem, / os únicos que sonham acordados, / os que fazem seda da baba da lagarta, / os que convertem o lixo em beleza, / os que descobrem cores que o arco-íris não conhece, / os que dão novas músicas às vozes do mundo, / e criam palavras para que não sejam mudas, / a realidade nem sua memória.

Para revisitar o autor dos abraços, aquele que apostou na esperança e na perpétua batalha, nunca melhor do que agora, quando o medo coletivo e o desafio pela luz da vida nos exigem que os novos capítulos da história tenham, para a humanidade toda, um final menos aterrador.

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