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sexta-feira, 7 novembro, 2025

A UERJ é uma brasa, mora! A festa de 75 anos (I)

José Bessa Freire

Entretenir la tradition c’est ne pas conserver les cendres, c’est souffler sur les braises, pour veiller à ce que le feu reste allumé”.  (Jean Jaurés, 1911)

Se me permitem, darei uma sopradinha nas brasas que foram deixadas pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) ao longo do caminho em seus 75 anos de existência. A data do aniversário é 4/12, mas a comemoração oficial já começou em 15/09 com lançamento do site criado pela Diretoria de Comunicação Social (Comuns). O logotipo da tocha acesa traduz o sopro proposto pelo historiador Jean Jaurés, deputado socialista da França, assassinado no início da Primeira Guerra Mundial:

– Do passado, apoderemo-nos do fogo e não das cinzas – diz Jaurés ou, numa versão mais clara mencionada no comentário abaixo pelo querido amigo Hans Alfred Trein, “Tradição é trazer as brasas do passado para o presente e não as cinzas”. Jaurés critica certos “bombeiros”, que apagam as chamas do passado julgadas “inconvenientes” pelo sistema de poder, justamente ali onde nós sopramos para fazer renascer a centelha da memória sempre viva e incandescente. A memória é seletiva e faz parte de uma disputa política, como sabe muito bem o escritor britânico Alan Moore, autor do romance gráfico “Batman: a Piada Mortal”, no qual o personagem Coringa sentencia:

– “Se eu vou ter um passado, prefiro que seja de múltipla escolha”.

A luta para apagar ou acender o fogo da Uerj se dá em diversos lugares, com distintos nomes. Ao nascer, em 1950, no Rio – então capital do país – foi batizada como Universidade do Distrito Federal (UDF). Oito anos depois se tornou a Universidade do Rio de Janeiro (URJ), mas após um par de anos, com a criação do novo Estado, foi rebatizada como Universidade do Estado da Guanabara (UEG). A fusão da Guanabara com o Rio deu origem, em 1975, à atual UERJ. Priorizamos aqui os vestígios de brasa no período das duas últimas.

Cultura e barbárie

Indiscutível patrimônio cultural do povo fluminense, a UERJ é uma das mais respeitáveis universidades do Brasil e da América Latina. Possui campi em uma dezena de cidades, com o campus principal colado no estádio do Maracanã cercado pelas escolas de samba da Mangueira, Salgueiro e Vila Isabel. Além de unidades externas em vários bairros do Rio, mantém mais de 100 cursos de graduação, igual número de mestrado e doutorado, 3 mil professores, 5.998 servidores técnico-administrativos  e cerca de 46 mil alunos.

No entanto, bens culturais, que são produtos do esforço criativo de gente sensível transbordante de humanismo, convivem em situações adversas com a bestialidade e incivilidade de seus contemporâneos, com os quais se enfrentam. Walter Benjamin opera com um “conceito novo, um conceito positivo de barbárie”, que pode ser entendido de várias formas:

– “Não há nunca um documento de cultura sem ser ao mesmo tempo um documento de barbárie”.

Cabe, então, a pergunta: Qual são os documentos de barbárie concernentes à Uerj, que precisamos identificar para compreender o processo contraditório de sua trajetória?

Durante a celebração de 75 anos, valerá a pena colocar o dedo na ferida para relembrar a repressão no período de terror da ditadura militar: suspensões, expulsões, prisões, torturas e assassinatos de alunos da Universidade? Será revanchismo, no meio dos festejos, desenterrar as “ossadas” daqueles professores, cassados e demitidos pelo AI-5, com a conivência de autoridades acadêmicas da época?

O que ganhamos, quando recordamos a censura interna arbitrária e as medidas punitivas contra qualquer brote de pensamento crítico e de circulação livre de ideias, numa universidade, cuja autoridade máxima definiu, por escrito, sem nenhum pudor, seu “compromisso de colaborar com a Segurança Nacional”? O que passou, passou? Concederemos anistia ampla, geral e irrestrita a colegas para consolidar o esquecimento de tanta ignomínia?

Favela do Esqueleto

O resgate da memória, apesar de ser muitas vezes uma operação dolorosa, proporciona um componente crucial na construção da identidade coletiva, na definição dos rumos da instituição e no direcionamento do olhar. Uma mulher de três olhos que pode ver as coisas passadas, presentes e futuras é assim que Tomás de Aquino simboliza a memória. Com um dos olhos voltados ao passado, ganhamos um pouco de sabedoria e de prudência.

Ganhamos também, é verdade, o desacordo dos senhores da memória e do esquecimento, celebrantes de datas festivas que descartam as “lembranças desagradáveis” dos “estraga-festas”. Preferem o “oba-oba” triunfalista no lugar de notas dissonantes das “provocações dispensáveis”. Sepultam assim a barbárie no silêncio das cinzas, que escondem a chama ardente e abrasadora da resistência.

Queremos ressaltar essa resistência nos cinco textos sequenciados, que aqui apresentamos semanalmente, registrando os dados retirados da principal fonte de consulta: o boletim oficial da UEG/UERJ, com foco central no período da ditadura militar, complementado com alguns documentos confidenciais e com pesquisas recentes sobre o tema, uma delas sobre a construção do campus Maracanã no terreno da Favela do Esqueleto, onde cerca de 12 mil pessoas ocupavam moradias precárias na década de 1960.

A Federação das Associações de Favelas do Estado da Guanabara (FAFEG) defendia a urbanização do local, com a construção de conjuntos residenciais. Daí a resistência dos moradores à remoção para a distante Vila Kennedy, quando foram reprimidos brutalmente pelas forças policiais. A FAFEG foi fechada pela ditadura e preso seu presidente Etevaldo Oliveira. Com o terreno “limpo”, a Construtora Norberto Odebrecht S.A, assinou contrato com o reitor João Lyra Filho para executar as obras em 720 dias.

É uma brasa, mora!

A Favela do Esqueleto, “uma das maiores e mais emblemáticas do Rio”, foi desocupada manu militari em 1965. A brasa que lhe deu vida foi soprada pela antropóloga e coordenadora de núcleos de pesquisa Letícia de Luna Freire, docente da Faculdade de Educação. Ela buscou textos oficiais e acadêmicos, ouviu os ex-moradores e reconstituiu a vida local, sua remoção, a intimidação, a violência, mas também a resistência. No espaço da comunidade, vítima da barbárie, foi erguido um monumento de cultura.

No livro e no documentário de 1h5min, ambos intitulados “Raízes: histórias da Favela do Esqueleto”, a serem lançados brevemente, a autora caminhou descalça sobre brasas acesas, recuperando fagulhas e faíscas, que corriam o risco de serem apagadas definitivamente. A reitora Gulnar Azevedo, que também sopra as brasas sobre as quais caminha, convidará ex-moradores para celebrar esses 75 anos no território que habitaram, hoje ocupado pela Uerj sem muros.

Tal convite tem o apoio do filósofo Heráclito, para quem o fogo é o princípio de tudo, da memória e do esquecimento, do bem e do mal, da vida e da morte. Conta ainda com a concordância de Jaurés residente hoje na cripta do Mausoléu do Panteão de Paris, que traz no frontão a frase: “Aux grands hommes, la Patrie reconnaissante”. Com ele moram 70 escritores, cientistas, filósofos e outros personagens da história da França. Para orientar nossa busca, decidimos consultá-lo.

Minha amiga amazonense Marilza Foucher, que mora em Paris, visitou o Mausoléu e perguntou a Jean Jaurés, ex conferencista da Universidade de Toulouse e especialista em recuperação da memória, se ainda existiam outras brasas da Uerj dignas de serem sopradas.  “Ce n’est pas par hasard si le symbole de l’UERJ est une torche enflammée” – ele respondeu e acrescentou de forma surpreendente.

– Uerj? Dis donc! C´est une braise, tu as pigé? Ça chauffe, tu as pigé? – que Marilza traduziu usando bordão da época da construção do campus do Maracanã:

– O quê? A Uerj? A Uerj é uma brasa, mora!

Adelita na ABL

Com apoio de Jaurés, nos próximos capítulos sopraremos brasas ao som do Hino da UEG, musicado pelo maestro Armando Prazeres com letra de João Lyra Filho. A poesia está no DNA da família. Seu irmão, general Aurélio de Lyra Tavares, presidente da Junta Militar Ditatorial em 1969, compôs a Canção da Engenharia do Exército Brasileiro, o que serviu de pretexto para a Academia Brasileira de Letras (ABL), que puxava o saco dos militares, lhe conceder uma cadeira fazendo  Machado de Assis tremer de vergonha em sua sepultura. Poemas assinados com o pseudônimo de Adelita – as iniciais de seu nome – foram ridicularizados pelos “comunistas”.

O Hino da UEG nos assegura que “Seguiremos por onde a Pátria Avança” e nos convida a cantar “duplamente satisfeitos vivendo nossa Pátria em miniatura” como veremos a seguir. Não saia daí. O Taquiprati, à semelhança do Altas Horas de Serginho Groisman, VOLTA JÁ.

Próximos capítulos:                                

Miss Amnésia e a UEG: por onde a Pátria avança (II)

UEG: Cantando a Pátria em miniatura (III)

Movimento estudantil: a invasão russa na UERJ (IV)

Américo Piquet Carneiro: o cúmplice da UERJ (V)

Referências:

1.Jean-Pierre Rioux. Jean Jaurès, Paris, Perrin, 2008.

2.Alan Moore e Brian Bolland.“Batman: a Piada Mortal”. São Paulo. Opera Graphica. 2002

3.Walter Benjamin. Documentos de Cultura, Documentos de Barbárie: Escritos Escolhidos. Seleção Willi Bolle. São Paulo. Edusp. 1986.

4, Letícia de Luna Freire. “Raízes: histórias da Favela do Esqueleto”. Rio. Editora Consequência. 2025

5. José R. Bessa Freire. Uerj: faltam convidados para a festa de 40 anos. Uerj Em Questão. Ano II, nº9, novembro de 1990. pp.4-5.

6 .______________ Departamento de Alunos. A que será que se destina?  Relatório apresentado ao Conselho Universitário da UERJ.  Março de 1988.

7. Conselho Universitário. Abertura dos arquivos. Ivo Barbieri,. Oficio circular. ofício-circular nº 235 – GR/88 (11/05/1988),

8. João Lyra Filho (letra) e Armando Prazeres (música). Hino do Coral da UEG.  In UEG: “Catálogo Geral”. Gráfica Editora Livro S.A. Rio-GB. 1971.

9. Diretoria de Comunicação Social (Comuns). Uerj lança site comemorativo de 75 anos da instituição.

https://www.uerj.br/noticia/uerj-lanca-site-comemorativo-de-75-anos-da-instituicao-como-parte-de-acoes-do-calendario-oficial-de-aniversario/#:~:text=

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