– O erro fatal cometido por Bruxelas em 2014 foi forçar Kiev a fazer uma escolha impossível entre a Europa e a Rússia
Pepe Escobar [*]
Um espectro assombra o Ocidente coletivo: a zumbificação total, cortesia de uma constante operação psicológica que carimba a inevitabilidade da “agressão russa”.
Vamos perfurar o nevoeiro da histeria perguntando ao ministro da Defesa ucraniano, Reznikov, o que está a acontecer:
“Posso absolutamente dizer que, até à data, as forças armadas russas não criaram um grupo de ataque que pudesse efetuar uma invasão vigorosa da Ucrânia”.
Bem, Reznikov não está obviamente consciente de que a Casa Branca, com acesso a inteligência possivelmente privilegiada, está convencida de que a Rússia irá invadir “a qualquer minuto a partir de agora”.
O Pentágono redobra a sua posição: “É muito claro que os russos não têm neste momento qualquer intenção de desescalarem”. Assim, a necessidade, expressa pelo porta-voz John Kirby, de preparar uma força multinacional de resposta da OTAN de 40.000 soldados: “Se for ativada… para derrotar a agressão, se necessário”.
Portanto, “a agressão” é um dado adquirido. A Casa Branca está a “refinar” planos militares – 18 na última contagem – para todas as formas de “agressão”. Quanto a responder – por escrito – às propostas russas sobre garantias de segurança, bem, isso é demasiado complexo.
Não há “data exata” para o seu envio a Moscovo. E os proverbiais “responsáveis” imploraram aos seus homólogos russos que não a tornassem pública. Afinal de contas, uma carta não é sexy. No entanto, a “agressão” vende-se. Especialmente quando pode acontecer “a qualquer minuto a partir de agora”.
Os “analistas” hacks gritam que Putin “está quase certo” de efetuar um “ataque limitado” nos “próximos dez dias”, completo com um ataque a Kiev: isso configura o cenário de uma “guerra quase inevitável”.
Vladimir Dzhabarov, Primeiro Vice-Presidente da Comissão dos Assuntos Internacionais do Conselho da Rússia, prefere aproximar-se da realidade: os EUA preparam uma provocação para empurrar Kiev para “ações imprudentes” contra a Rússia no Donbass. Isso liga-se aos soldados de infantaria da República Popular de Lugansk, relatando que “grupos subversivos preparados por instrutores britânicos” chegaram à área de Lisichansk.
Luminárias como Ursula von der Leyen da Comissão Europeia, Jens Stoltenberg da OTAN e “líderes” do Reino Unido, França, Alemanha, Itália e Polónia anunciaram, após uma video-chamada, que “um pacote de sanções sem precedentes” está quase pronto se a Rússia “invadir”.
Fizeram-no como “unidade internacional face à crescente hostilidade da Rússia”. Tradução: o OTANstão implora à Rússia que, por favor, invada tão logo quanto possível.
Da UE 27, 21 são membros da NATO. Os EUA dominam o lote inteiro. Assim, quando a UE anuncia que “qualquer nova agressão militar contra a Ucrânia teria consequências muito graves para a Rússia”, são os EUA a dizer à OTAN para dizer à UE “o que dizemos, andem”. E sob esta estratégia de ambiente de tensão, “o que dizemos” significa aplicar a divisão e o governo imperial em bruto, para manter a Europa totalmente subjugada.
Os erros fatais do Ocidente
Nunca se deve esquecer que a Maidan 2014 foi uma operação supervisionada por Obama/Biden. No entanto, ainda há muitos negócios inacabados – quando se trata de atolar a Rússia. Assim, o visceralmente russofóbico Partido de Guerra em Washington DC tem agora de parar de ordenar à NATO para incitar Kiev a iniciar uma guerra quente – e assim encurralar a Rússia. Zelensky, o Comediante, chegou mesmo a registar o desejo de “ir para a ofensiva”.
Portanto, está na hora de divulgar as falsas bandeiras.
O indispensável Alastair Crooke delineou como “‘cerco’ e ‘contenção’ se tornaram efetivamente a política externa padrão de Biden”. Não “Biden”, na verdade – mas a combinação amorfa por detrás do auricular/telecomandado fantoche que há mais de um ano designo como o Crash Test Dummy.
Crooke acrescenta, “a tentativa de consolidar esta meta-doutrina está atualmente a ser aplicada via Rússia (como o passo inicial). A adesão essencial pela Europa é a “peça fundamental” para a contenção física e o cerco da Rússia”.
“Cerco” e “contenção” têm sido, sob vários disfarces, instrumentos excepcionais durante décadas. A noção mantida pelo Partido de Guerra de que é possível executar ambas de uma frente tripla – contra a Rússia, a China e o Irã – é tão infantil que torna ociosa qualquer análise. Ela pede só uma bebida e uma boa gargalhada.
Quanto a sanções adicionais para a imaginária “agressão russa”, algumas almas benevolentes tiveram de recordar ao Pequeno Tony Blinken e a outros participantes do círculo de “Biden” que os europeus seriam muito mais afetados letalmente do que os russos; sem mencionar que tais sanções iriam agravar a crise económica coletiva do Ocidente.
Uma breve recapitulação é essencial para enquadrar como acabámos por ficar atolados no atual pântano de histeria.
O Ocidente coletivo desperdiçou a oportunidade que teve de construir uma parceria construtiva com a Rússia semelhante ao que fez com a Alemanha depois de 1945.
O Ocidente coletivo também a desperdiçou ao reduzir a Rússia ao papel de uma entidade menor e dócil, impondo que existe apenas uma esfera de influência no planeta: o OTANstão, é claro.
E o império estragou tudo quando visou a Rússia, mesmo depois de ter alegadamente “vencido” contra a URSS.
Durante os anos 90 e 2000, ao invés de ser convidada a participar na construção da “casa comum europeia” – com todas as suas falhas gritantes – a Rússia pós-soviética foi forçada a ficar de fora a olhar como esta “casa” foi melhorada e decorada.
Ao contrário de todas as promessas feitas a Gorbachev por vários líderes ocidentais, a esfera de influência tradicional russa – e mesmo o território da ex-URSS – tornou-se objeto de disputa no saqueio da “herança soviética”: apenas um espaço a ser colonizado pelas estruturas militares da OTAN.
Ao contrário da esperança de Gorbachev – que estava ingenuamente convencido de que o Ocidente partilharia com ele os benefícios dos “dividendos da paz” – foi imposto à economia russa um modelo neoliberal anglo-americano extremo. A juntar às consequências desastrosas desta transição estava o sentimento de frustração nacional de uma sociedade que foi humilhada e tratada como uma nação derrotada na Guerra Fria, ou na III Guerra Mundial.
Esse foi o erro fatal do Exceptionalistão: acreditar que com o desaparecimento da URSS, a Rússia como uma realidade histórica, económica e estratégica desapareceria também das relações internacionais.
O novo pacto de aço
E é por isso que a War Inc., o Partido da Guerra, o Estado Profundo, como se quiser chamar, está agora a ficar fora de si – em grande estilo.
Eles descartaram Putin quando ele formulou um novo paradigma em Munique em 2007 – ou quando ele regressou ao Kremlin em 2012.
Putin deixou muito claro que os legítimos interesses estratégicos da Rússia teriam de ser novamente respeitados. E que a Rússia estava prestes a recuperar os seus “direitos de veto” de facto na gestão dos assuntos mundiais. Bem, a doutrina de Putin já estava a ser implementada desde o caso georgiano em 2008.
A Ucrânia é uma manta de retalhos que até há pouco tempo pertencia a diferentes impérios – austro-húngaro e russo – bem como a várias nações, tais como a Rússia, a Polónia e a Roménia. Reagrupa o catolicismo e a ortodoxia e tem milhões de russos étnicos e falantes de russo com profundos laços históricos, culturais e econômicos com a Rússia.
Assim, a Ucrânia era de facto uma nova Jugoslávia.
O erro fatal cometido por Bruxelas em 2014 foi forçar Kiev, bem como a população ucraniana no seu conjunto, a fazer uma escolha impossível entre a Europa e a Rússia.
O resultado inevitável teria de ser o Maidan, completamente manipulado pela inteligência americana, mesmo quando os russos viram claramente como a UE passou da posição de intermediário honesto para o papel humilde de caniches americanos.
Os falcões russófobos norte-americanos nunca renunciarão ao espetáculo do seu adversário histórico atolado numa guerra fratricida lenta no espaço pós-soviético. Assim como nunca renunciarão ao Divide e Impera imposto sobre uma Europa desordenada. E assim como nunca concederão “esferas de influência” a qualquer ator geopolítico.
Sem a sua marca tóxica, 2014 poderia ter-se desenvolvido de uma maneira bastante diferente.
Para dissuadir Putin de restaurar a Crimeia no seu devido lugar – a Rússia – teria sido preciso duas coisas: que a Ucrânia fosse gerida decentemente depois de 1992 e não ser forçada a escolher o campo ocidental, mas torná-la uma ponte, ao estilo da Finlândia ou da Áustria.
Depois do Maidan, os acordos de Minsk foram o mais próximo possível de uma solução viável: vamos acabar com o conflito no Donbass; desarmar os protagonistas; e restabelecer o controlo das fronteiras da Ucrânia, proporcionando ao mesmo tempo uma autonomia real à Ucrânia Oriental.
Para que tudo isso acontecesse, a Ucrânia teria precisado de um estatuto neutro e de uma dupla garantia de segurança, por parte da Rússia e da OTAN. E tornar o acordo de associação entre a Ucrânia e a UE compatível com os laços estreitos entre a Ucrânia Oriental e a economia russa.
Tudo isso teria talvez configurado uma visão europeia de relações futuras decentes com a Rússia.
No entanto, o Estado Profundo Russofóbico nunca o permitiria. E o mesmo se aplicava à Casa Branca. Barack Obama, aquele cínico oportunista, estava demasiado envolvido pelo duvidoso contexto polaco de Chicago e não estava livre da obsessão excepcionalista com antagonismo profundo para poder construir um relacionamento construtivo com a Rússia.
Depois há o argumento conclusivo (clincher), revelado por uma fonte de inteligência de alto nível dos EUA.
Em 2013, o falecido Zbigniew “Grand Chessboard” Brzezinski recebeu um relatório classificado sobre mísseis avançados russos. Ele ficou fora de si. E respondeu conceptualizando o Maidan 2014 – para atrair a Rússia a uma guerra de guerrilha na altura, tal como havia feito com o Afeganistão na década de 1980.
E aqui estamos nós agora: é tudo uma questão de negócios inacabados.
Uma palavra final sobre as fundas e flechas de uma fortuna ultrajante. No século XIII, o Império Mongol estabeleceu a sua suserania sobre o Kievan Rus – ou seja, sobre os principados ortodoxos cristãos que correspondem hoje ao norte da Ucrânia, Bielorrússia e parte da Rússia contemporânea.
O jugo tártaro sobre a Rússia – de 1240 a 1552, quando Ivan O Terrível conquistou o Kazan – está profundamente marcado na consciência histórica russa e no debate sobre a identidade nacional.
Os Mongóis conquistaram separadamente vastas extensões da China, Rússia e Irã. Séculos após a Pax Mongólica, que ironia que o novo pacto de aço entre estes três principais atores eurasianos seja agora um obstáculo geopolítico intransponível, esmagando todos os planos elaborados por um bando de arrivistas históricos transatlânticos.
[*] Analista geopolítico, escritor e jornalista.
O original encontra-se em www.strategic-culture.org/news/2022/01/26/russia-and-west-piercing-fog-of-hysteria/
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