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terça-feira, 16 abril, 2024

A recorrente Ucrânia: guerra, russofobia e Gasodustão

por Pepe Escobar [*]

Situação militar no leste da Ucrânia, 08/Abr/21.A Ucrânia e a Rússia podem estar à beira da guerra – com consequências terríveis para toda a Eurásia. Vamos diretos ao assunto e mergulhar de frente na névoa da guerra.

Em 24 de Março, o presidente ucraniano Zelensky assinou o decreto nº 117/2021 que, para todos os efeitos práticos, é uma declaração de guerra contra a Rússia.

O decreto estabelece que a retomada da Criméia à Rússia é agora a política oficial de Kiev. Foi exatamente isso que levou um conjunto de tanques ucranianos a ser despachado para o Leste em vagões de plataforma aberta, após a saturação do exército ucraniano pelos EUA com equipamentos militares, incluindo veículos aéreos não tripulados, sistemas electrónicos de guerra, sistemas anti-tanque e sistemas portáteis de defesa aérea (MANPADS).

Mais crucialmente, o decreto de Zelensky é a prova de que qualquer guerra subsequente terá sido provocada por Kiev, desmascarando as proverbiais alegações de “agressão russa”. A Criméia, desde o referendo de Março de 2014, é parte da Federação Russa.

Foi esta (itálico meu) declaração de guerra de facto, que Moscovo levou muito a sério, que levou ao posicionamento de forças russas extras na Criméia e para junto à fronteira russa com o Donbass. Significativamente, estas incluíam a 76ª assalto Brigada de Assalto da Guarda Aérea, conhecida como os pára-quedistas de Pskov e, segundo um relatório de inteligência que me foi citado, capaz de tomar a Ucrânia em apenas seis horas.

Zelensky. Certamente não ajuda que no início de Abril o secretário de Defesa dos EUA, Lloyd Austin, recém-saído de sua posição anterior de membro da administração da fabricante de mísseis Raytheon, tenha telefonado a Zelensky para prometer “apoio inabalável dos EUA à soberania da Ucrânia”. Isso está de acordo com a interpretação de Moscou de que Zelensky nunca teria assinado o seu decreto sem um sinal verde de Washington.

Controlando a narrativa

Sebastopol, quando a visitei em dezembro de 2018 , já era um dos lugares mais fortemente defendidos do planeta, impenetrável até mesmo a um ataque da OTAN. No seu decreto, Zelensky identifica especificamente Sebastopol como um alvo principal.

Mais uma vez, estamos de volta a 2014, aos negócios inacabados pós-Maidan.

Para conter a Rússia, uma combinação de estado profundo dos EUA / NATO precisa controlar o Mar Negro – o qual, para todos os efeitos práticos, agora é um lago russo. E para controlar o Mar Negro, eles precisam “neutralizar” a Criméia.

Se alguma prova extra fosse necessária, ela foi providenciada pelo próprio Zelensky na terça-feira desta semana num telefonema com o secretário-geral da OTAN, o dócil fantoche Jens Stoltenberg.

Zelensky pronunciou a frase chave: “A NATO é o único meio de acabar a guerra no Donbass” – o que na prática significa a NATO a expandir sua “presença” no Mar Negro. “Tal presença permanente deveria ser um poderoso dissuasor para a Rússia, a qual continua a militarização em grande escala da região e atrapalha a navegação mercante”.

Todos esses desenvolvimentos cruciais são e continuarão a ser invisíveis para a opinião pública global quando se trata da narrativa predominante e controlada do poder hegemónico.

A combinação Estado Profundo/OTAN está a assinalar 24 horas por dia e 7 dias por semana, que tudo o que acontecer doravante será devido a uma “agressão russa”. Mesmo que as Forças Armadas Ucranianas (UAF) lancem uma guerra relâmpago contra as Repúblicas Populares de Lugansk e Donetsk. (Fazer isso contra Sebastopol na Criméia seria um suicídio em massa confirmado).

Nos Estados Unidos, Ron Paul foi uma das poucas vozes a declarar o obvio :  “De acordo os mídia do complexo militar-industrial-congressional-mediático dos EUA, os movimentos de tropas russas não são uma resposta a ameaças claras de um vizinho mas sim apenas mais uma ‘agressão russa’ “.

O que está implícito é que Washington / Bruxelas não têm um plano de jogo táctico claro, muito menos um plano de jogo estratégico: apenas controle total da narrativa.

E isso é alimentado por uma russofobia raivosa – magistralmente desconstruída pelo indispensável Andrei Martyanov, um dos maiores analistas militares do mundo.

Um sinal possivelmente esperançoso é que em 31 de Março, o chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas Russas, General Valery Gerasimov, e o Presidente do Estado-Maior Conjunto, General Mark Milley, falaram ao telefone sobre as proverbiais “questões de interesse mútuo”.

Dias depois saiu uma declaração franco-alemã conclamando “todas as partes” a diminuir a escalada. Merkel e Macron parecem ter entendido a mensagem na sua videoconferência com Putin – que deve ter subtilmente aludido ao efeito gerado pelos Kalibrs, Kinzhals e variadas armas hipersónicas se as coisas ficarem duras e os europeus sancionarem uma guerra relâmpago de Kiev.

O problema é que Merkel e Macron não controlam a OTAN. Ainda assim, Merkel e Macron estão plenamente conscientes de que se a combinação EUA / OTAN atacar forças russas ou detentores de passaportes russos que vivem no Donbass, a resposta devastadora terá como alvo os centros de comando que coordenaram os ataques.

O que quer a potência hegemónica?

Como parte do seu presente ato enérgico, Zelensky franziu os sobrolhos. Segunda-feira passada visitou o Catar junto com uma grande delegação e fechou uma série de negócios , não circunscritos ao GNL, mas incluindo também voos diretos Kiev-Doha; o arrendamento ou compra por Doha de um porto do Mar Negro; e fortes “laços de defesa / militares” ?– os quais poderiam ser um lindo eufemismo para uma possível transferência de jihadistas da Líbia e da Síria para combater russos infiéis no Donbass.

Exatamente no momento apropriado, segunda-feira próxima, Zelensly encontrará Erdogan da Turquia. Os serviços de inteligência de Erdogan administram os proxies jihadistas em Idlib e os fundos duvidosos do Catar ainda fazem parte do cenário. Indiscutivelmente, os turcos já estão a transferir esses ditos “rebeldes moderados” para a Ucrânia. A inteligência russa está a monitorar meticulosamente toda esta atividade.

Uma série de discussões informadas – veja, por exemplo, aqui e aqui – está a convergir naquilo que podem ser os três principais alvos para a potência hegemónica em meio a toda esta confusão, sem guerra: provocar uma fissura irreparável entre a Rússia e a UE, sob os auspícios da NATO; arruinar o oleoduto Nord Stream 2; e promover lucros nos negócios de armas para o complexo militar-industrial.

Assim, a questão chave é saber se Moscou seria capaz de aplicar um movimento Sun Tzu antes de ser atraída para uma guerra quente no Donbass.

No terreno, as perspectivas são sombrias. Denis Pushilin, um dos principais líderes das repúblicas populares de Lugansk e Donetsk, afirmou que as probabilidades de evitar a guerra são “extremamente pequenas”. O atirador sérvio Dejan Beric? – que conheci em Donetsk em 2015 e que é um perito certificado em campo – espera um ataque de Kiev no princípio de Maio .

O extremamente controverso Igor Strelkov, o qual pode ser denominado um expoente do “socialismo ortodoxo”, um forte crítico das políticas do Kremlin que é um dos poucos senhores da guerra que sobreviveram a 2014, afirmou inequivocamente que a única possibilidade de paz é o exército russo controlar o território ucraniano pelo menos até o rio Dnieper. Ele enfatiza que uma guerra em abril é “muito provável”; para a Rússia, guerra “agora” é melhor do que a guerra mais tarde; e há 99% de possibilidade de que Washington não combaterá pela Ucrânia.

Sobre este último ponto pelo menos Strelkov tem razão; Washington e a OTAN querem uma guerra travada até o último ucraniano.

Rostislav Ischenko, o principal analista russo da Ucrânia com quem tive o prazer de me encontrar em Moscou no fim de 2018, argumenta persuasivamente que “a situação diplomática, militar, política, financeira e económica geral exige que as autoridades de Kiev intensifiquem operações de combate no Donbass.

“A propósito”, acrescentou Ischenko, “os americanos pouco se importam se a Ucrânia resistirá por algum tempo ou se será estraçalhada em bocados num instante. Eles acreditam que têm a ganhar com qualquer um dos resultados “.

Precisa defender a Europa

Vamos supor o pior no Donbass. Kiev lança sua blitzkrieg. A inteligência russa documenta tudo. Moscou anuncia imediatamente que está a usar toda autoridade conferida pelo Conselho de Segurança da ONU para impor o cessar-fogo de Minsk 2.

No que seria uma questão de 8 horas ou no máximo 48 horas, as forças russas esmagam todo o aparato da blitzkrieg em pedacinhos e enviam os ucranianos de volta à sua caixa de areia, que fica a aproximadamente 75 km ao norte da zona de contato estabelecida.

No Mar Negro, aliás, não há zona de contato. Isto significa que a Rússia pode enviar todos os seus submarinos avançados mais a frota de superfície para qualquer lugar no “lago russo”: eles já estão implantados de qualquer modo.

Mais uma vez, Martyanov fala com autoridade quando prevê, referindo-se a um grupo de mísseis russos desenvolvidos pelo Novator Design Bureau: “Destruir o sistema de comando e controle dos Ukies é uma questão de poucas horas, seja perto da fronteira ou na profundidade estratégica e operacional e Profundidade estratégica dos Ukies. Basicamente, toda a ‘marinha’ ucraniana vale menos do que a salva de 3M54 ou 3M14 que seriam necessários para afundá-la. Acho que um par de Tarantuls serão suficientes para acabar com isso ao largo ou perto de Odessa e em seguida dar a Kiev, especialmente seu distrito governamental, um gostinho das modernas stand-off weapons”. [NT]

A questão absolutamente fundamental, que não pode ser enfatizada o suficiente, é que a Rússia não (itálico meu) irá “invadir” a Ucrânia. Ela não precisa e não quer. O que Moscou certamente fará é apoiar as repúblicas populares da Novorossiya com equipamentos, inteligência, guerra electrónica, controle do espaço aéreo e forças especiais. Mesmo uma zona de exclusão aérea (no-fly zone) não será necessária; a “mensagem” ficará clara: se um caça a jacto da OTAN aparecesse perto da linha de frente, ele seria sumariamente abatido.

E isso nos traz ao “segredo” aberto murmurado apenas em jantares informais em Bruxelas e chancelarias por toda a Eurásia: os fantoches da NATO não têm a coragem de entrar num conflito aberto com a Rússia.

Uma coisa é ter cachorros a ladrar como a Polónia, Roménia, a gang do Báltico e a Ucrânia amplificados pelos media corporativos no seu script da “agressão russa”. Factualmente, a OTAN teve seu apoio de retaguarda chutado sem cerimónias no Afeganistão. Ela estremeceu quando teve de combater os sérvios no final da década de 1990. E na década de 2010, ela não ousou combater as forças de Damasco e do Eixo de Resistência.

Quando tudo falha, o mito prevalece. O de entrar o Exército dos EUA ocupando partes da Europa para “defendê-la” contra – de quem mais? – aqueles russos irritantes.

Esta é a lógica por trás do [exercício] anual DEFENDER-Europe 21 do Exército dos EUA, agora até o fim de Junho, mobilizando 28.000 soldados dos EUA e 25 aliados e “parceiros” da OTAN.

Este mês, homens e equipamentos pesados pré-posicionados em três depósitos do Exército dos EUA na Itália, Alemanha e Holanda serão transferidos para múltiplas “áreas de treino” em 12 países. Oh, as alegrias da viagem, nenhum confinamento num exercício ao ar livre, já que todos foram perfeitamente vacinados contra Covid-19.

Gasodustão uber alles

Nord Stream 2.O Nord Stream 2 não é algo muito importante para Moscovo; o seu cancelamento seria, quando muito, uma inconveniência para o Gasodustão. Afinal de contas, a economia russa não ganhou um único rublo com o gasoduto ainda não existente durante a década 2010 – e ainda assim correu tudo bem. Se o Nord Stream 2 vier a ser cancelado, já há planos em cima da mesa para redirecionar o grosso do gás russo rumo à Eurásia, especialmente a China.

Paralelamente, Berlim sabe muito bem que cancelar o NS2 será uma violação de contrato extremamente grave – envolvendo milhares de milhões de euros [2]. Foi a Alemanha que teve a iniciativa de solicitar a construção do gasoduto.

A energiewende (política de “transição energética”) da Alemanha tem sido um desastre. Os industriais alemães sabem muito bem que o gás natural é a única alternativa à energia nuclear. Eles não gostam que Berlim se torne um mero refém, condenado a comprar gás de xisto ridiculamente caro da potência hegemónica – mesmo assumindo que essa potência será capaz de cumprir, pois a sua indústria de fraturação (fracking) está em frangalhos. Merkel a explicar à opinião pública alemã por que devem voltar a usar carvão ou comprar gás de xisto dos Estados Unidos será um espetaculo digno de se ver.

Tal como está, as provocações da OTAN contra o NS2 prosseguem sem cessar – navios de guerra e helicópteros. O NS2 necessário de uma permissão para trabalhar em águas dinamarquesas, que foi concedida há apenas um mês. Mesmo que os navios russos não sejam tão rápidos na colocação de tubos como os navios anteriores da Allseas , com sede na Suíça, que recuou intimidada pelas sanções dos EUA, a Fortuna russa está fazendo progressos constantes, conforme observado o analista Petri Krohn: um quilómetro por dia nos seus melhores dias, pelo menos 800 metros por dia. Com 35 km restantes, isso não deve demorar mais de 50 dias.

Na sua forma atual, as provocações da OTAN contra o NS2 prosseguem sem abrandamento – através de navios de guerra e helicópteros. O NS2 precisava de uma autorização para trabalhar em águas dinamarquesas e esta foi concedida só há um mês atrás. Mesmo que os navios russos não sejam tão rápidos na colocação da tubagem como os anteriores navios da Allseas sediada na Suíça, que recuou, intimidada pelas sanções dos EUA, o Fortuna russo está a fazer progressos constantes, como notou o analista Petri Krohn: um quilómetro por dia nos melhores dias, pelo menos 800 metros por dia. Com 35 km restantes, isso não deve demorar mais de 50 dias.

Conversações s com analistas alemães revelam um fascinante jogo de sombras na frente de energia entre Berlim e Moscou – sem mencionar Pequim. Compare-se com Washington: diplomatas da UE reclamam que não há absolutamente ninguém com quem negociar a respeito do NS2. E mesmo supondo que haja algum tipo de acordo, Berlim tende a admitir que o julgamento de Putin está correto: os americanos “não são capazes de chegar a um acordo”. Basta olhar o registo.

Por trás da névoa da guerra, no entanto, emerge um cenário claro:   o complexo estado profundo/OTAN a utilizar Kiev para começar uma guerra como uma prece de Ave-Maria para enterrar o NS2 e, assim, as relações germano-russas.

Ao mesmo tempo, a situação está a evoluir rumo a um possível novo alinhamento no coração do “Ocidente”: EUA/Reino Unido enfrentados contra a Alemanha/França. Alguns excepcionais da Anglosfera são certamente mais russofóbicos do que outros.

O encontro tóxico entre Russofobia e o Gasodustão não acabará mesmo que o NS2 seja completado. Haverá mais sanções. Haverá uma tentativa de excluir a Rússia do SWIFT. A guerra por procuração na Síria será intensificada. A potência hegemónica não será impedida de continuar a criar todo tipo de assédio geopolítico contra a Rússia.

Que bela operação para distrair a opinião pública interna da maciça impressão de dinheiro que mascara um colapso económico iminente. À medida que o império se desmorona, a narrativa é gravada em pedra: é tudo culpa da “agressão russa”.

NT

[1] Stand-off weapons: Armas que podem ser lançadas a uma distância suficiente para permitir o ataque pessoal e a evasão do fogo defensivo da área alvejada.

[2] Seria um caso análogo ao da encomenda dos navios Mistral, cancelada pelo presidente Hollande em 2014 devido à pressão dos EUA. O governo francês foi obrigado a pagar uma indemnização de 950 milhões de euros pela quebra do contrato.

[*] Jornalista. Seu último livro é Raging Twenties .

O original encontra-se no Asia Times

e em www.unz.com/pescobar/ukraine-redux-war-russophobia-and-pipelineistan/

Este artigo encontra-se em https://resistir.info

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