– Uma decisão de estabilidade institucional
Por Mariane Baroni*
No último dia 31 de julho de 2025, a Corte Costituzionale italiana publicou a Sentença n. 142/2025, resultado do julgamento realizado em 24 de junho, na qual julgou ações reunidas dos Tribunais de Bologna, Roma, Milão e Florença que colocavam sob escrutínio a constitucionalidade do modelo italiano de transmissão da cidadania por descendência. O foco da análise era o art. 1, comma 1, lett. a) da Lei n. 91/1992, que prevê o reconhecimento da cidadania italiana ao filho de pai ou mãe cidadãos italianos, sem imposição de limites geracionais ou vínculos adicionais com o território ou a sociedade italiana.
As teses centrais das remessas se assentavam na alegação de que a concessão da cidadania italiana a descendentes de italianos nascidos e residentes no exterior — sem exigência de conexão efetiva com o país — comprometeria a ideia de “popolo” soberano, violaria o princípio da proporcionalidade e, ainda, entraria em conflito com os compromissos assumidos pela Itália no plano internacional e europeu, sobretudo diante dos artigos 9 do Tratado da União Europeia e 20 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.
Em resposta a esse conjunto de provocações, a Corte Costituzionale optou por uma linha de firmeza institucional e jurídica: rejeitou todos os fundamentos centrais das ações. A decisão não apenas reafirma a legitimidade constitucional do modelo do ius sanguinis, como também delimita com clareza os limites do controle jurisdicional em matéria de cidadania, atribuindo ao legislador o papel exclusivo de eventual revisão da disciplina vigente.
Segundo a Corte, o critério de transmissão da cidadania por filiação encontra respaldo histórico, jurídico e político no ordenamento italiano. Desde o Código Civil de 1865, a cidadania italiana foi vinculada à descendência. A escolha legislativa de manter essa lógica por mais de um século — com ajustes pontuais — foi compreendida pela Corte como expressão legítima de política estatal, que não pode ser simplesmente desconstituída por juízos de conveniência ou propostas de redefinição do “povo” italiano pela via judicial.
É preciso destacar que a Corte reconhece expressamente que a cidadania é um instituto dotado de forte densidade constitucional, mas não admite que, sob esse pretexto, se substitua o papel do Parlamento. Ao fazê-lo, a sentença preserva o princípio da legalidade e reafirma a separação de poderes: cabe ao legislador, e somente a ele, reformar o modelo de cidadania, se entender necessário.
Contudo, a Corte também deixa claro que o exercício dessa competência legislativa permanece sujeito ao controle de constitucionalidade. O fato de a matéria envolver escolhas políticas legítimas não torna essas escolhas imunes ao juízo de compatibilidade com os princípios constitucionais. Essa afirmação ganha especial relevo diante da recente conversão do Decreto-Lei n. 36/2025 na Lei n. 74/2025, que introduziu, por meio do art. 3-bis, severas restrições à retroatividade do reconhecimento da cidadania iure sanguinis. A sentença 142/2025, ainda que não trate diretamente dessa nova norma, sinaliza de forma inequívoca que mudanças legais nessa seara não escaparão ao escrutínio constitucional — especialmente quando impactarem direitos historicamente reconhecidos e consolidados.
Um dos trechos mais relevantes da decisão, sob o ponto de vista jurídico-material, é a reafirmação de que a cidadania italiana transmitida por filiação se adquire a título originário, ou seja, no momento do nascimento, e que o respectivo status civitatis é, nas palavras da própria Corte, imprescritível, permanente e irrevogável. Essa formulação reforça com nitidez a natureza declaratória do reconhecimento — e não constitutiva — da cidadania italiana aos descendentes. E mais: consolida o entendimento de que a existência da cidadania não está condicionada a prazo, a vínculo territorial, ou a critérios subjetivos de “efetividade” cultural ou linguística.
Essa posição doutrinária e jurisprudencial está em evidente tensão com os fundamentos da Lei 74/2025, que impôs um corte temporal arbitrário (27 de março de 2025) e pretende negar efeitos a situações consolidadas apenas por não terem sido “reivindicadas a tempo”. A sentença da Corte, portanto, não apenas reafirma a constitucionalidade do modelo vigente, como também antecipa as linhas de resistência jurídica à nova legislação restritiva.
A decisão também é importante por outro motivo: foi proferida em um momento de forte pressão institucional e política decorrente da própria Lei 74/2025. Apesar de tais mudanças legislativas não estarem sob análise neste julgamento, o contexto era inevitavelmente sensível. Ainda assim, a Corte não se deixou arrastar por argumentos de conveniência administrativa ou políticas migratórias de ocasião.
Pelo contrário, preservou a coerência com a jurisprudência constitucional e com a tradição jurídica italiana.
A mensagem institucional que emana da Sentenza n. 142/2025 é inequívoca: o modelo de cidadania por descendência continua válido, legítimo e eficaz, até que eventualmente seja reformulado pelo Parlamento dentro das balizas constitucionais. A Corte não acolheu qualquer argumento que vinculasse a legitimidade da cidadania italiana a vínculos afetivos, culturais, linguísticos ou territoriais com o país. Reafirmou que o vínculo de sangue, por si só, permanece suficiente para configurar o status civitatis.
Se houvesse, por parte da Corte, concordância com o espírito restritivo da Lei 74/2025, essa teria sido a ocasião ideal para declarar a superação constitucional do modelo vigente. Não o fez. Ao contrário, optou por proteger uma estrutura normativa que, embora ampla e desafiadora para a administração consular e judiciária, é expressão legítima de um vínculo jurídico e histórico que a Itália, até aqui, escolheu preservar com seus descendentes no mundo.
A decisão tem, portanto, alto valor jurídico e político. Não apenas resguarda os direitos daqueles que já foram reconhecidos cidadãos italianos por via judicial, como também reforça a segurança institucional daqueles que se encontram em processo de reconhecimento. Em tempos de tentativas legislativas de restrição de direitos, a Corte Costituzionale recorda que a cidadania não é uma concessão — é um status jurídico originário, transmissível, imprescritível e amparado pelo Estado de Direito.
*Do Departamento Juridico da Master Cidadania