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quinta-feira, 25 abril, 2024

A namoradinha do Bolsonaro: o adeus à atriz

José Bessa Freire

 “E no ABC do Santeiro, o que diz o A, o que diz o A?

O A diz adeus à matriz. O que diz o B, o que diz o B?

O B é a batalha da morte.  (Sá & Guarabyra. 1985)

A humanidade só surge no cenário histórico do planeta quando aquele animal, que hoje chamamos de ser humano, começa a criar arte – escreve o filósofo austríaco Ernst Fischer em “A necessidade da arte”. Essa parteira da humanidade aparece embutida em muitas palavras da nossa língua, está em toda parte, como mostrou o ator Lima Duarte ao chorar os artistas mortos. No entanto, a humanidade fenece, quando a arte não se reparte, quando fica sem um baluarte, aprisionada no quartel, para quem Regina, que por ironia é Duarte, bate continência ostensiva, ou quando os mártires são esquartejados pela tortura, que ela justifica. Foi o que aconteceu nesta semana.

Na última segunda-feira (4), este locutor que vos fala teve que ir cedinho ao Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE) da Uerj, onde acabava de morrer o compositor e letrista Aldir Blanc. Havia um atmosfera de tristeza nos corredores. Paciente de alto risco, Aldir rejeitou outras clínicas, porque sabia – conforme declarou o diretor do HUPE, Ronaldo Damião – que ali teria tratamento comparável ao dos melhores hospitais do mundo, graças ao pessoal qualificado, aos médicos e enfermeiros, que dedicaram carinho ao paciente, conscientes da sua importância para a arte e a cultura nacional.

No mesmo dia, o ator Flávio Migliaccio se despediu da vida com uma carta de suicídio. O Brasil viu: está lá um corpo estendido no chão. A parte sadia do país chorou e se manifestou na mídia e nas redes sociais. Lima Duarte, 90 anos, divulgou imediatamente um vídeo, lembrando o amigo e o perrengue que passaram juntos na época da ditadura militar, as prisões, a censura ao Teatro de Arena, onde descobriram com Augusto Boal que “era preciso, era urgente que se pusesse o brasileiro em cena”.

O brasileiro entrou em cena. Como no Baião de Lacan cantado por Aldir Blanc, “O Brasil batucou na ladeira: Bafo, Congo, Exu, Taieira”. No entanto – disse Lima Duarte – “agora, quando sentimos o hálito putrefato de 64, o bafio terrível de 68, agora, 56 anos depois, quando eles promovem a devastação dos velhos, não podemos mais. Eu não tive a coragem que você teve”.  Concluiu com a fala de um personagem da peça “Os Fuzis da Senhora Carrar”, de Bertold Brecht, por ele interpretado no Teatro de Arena sobre aqueles que se omitem (ouviram Toffoli, Maia, Alcolumbre?):

– Os que lavam as mãos, o fazem numa bacia de sangue.

As mãos de Regina

Tô certo ou tô errado? – perguntaria o Sinhôzinho Malta ao prantear os nossos mortos, chacoalhando suas pulseiras.

Ele está certo. As mãos de Regina Duarte, secretária de cultura de Bolsonaro e não do Brasil, ficaram tingidas diante de tantas omissões. Ela se omitiu quando, a exemplo do seu chefe, permaneceu muda diante das mortes do escritor Rubem Fonseca, do cantor Moraes Moreira, do poeta Aldir Blanc, do ator Flávio Migliaccio e agora do teatrólogo Jesus Chediak – todos eles representantes de diferentes formas de expressão artística e cultural do melhor do Brasil. “Parece que eram pessoas conhecidas”, como disse o capitão quando da morte de João Gilberto.

Numa entrevista à TV CNN, cobrada pela jornalista Daniela Lima sobre o posicionamento da secretária de cultura diante do significado dessas perdas para o país, a namoradinha do Bolsonaro alegou que homenageou o empresário recém-falecido Ricardo Brennand, colecionador de arte brasileira, que era seu amigo e a recebia em sua casa em Recife, mas que nunca tivera um contato pessoal com Aldir Blanc.

À imagem e semelhança do seu chefe, ela não distingue o ego da pessoa física do lugar institucional que ocupa, ou pelo menos deve ocupar. Ninguém cobrou manifestação pessoal, mas o pronunciamento institucional da secretária sobre aqueles que viveram para a arte e a cultura. Não basta um assessor enviar por whatsApp, em seu nome, mensagem privada de condolências à família, mas se requer uma manifestação pública ao povo brasileiro da Secretaria de Cultura.

– “Não quero arrastar um cemitério de mortos nas minhas costas, sou leve, estou viva, estamos vivos. Vamos ficar vivos. Por que olhar para trás? Não vive quem fica arrastando cordéis de caixões. A Covid-19 está trazendo uma morbidez insuportável” – declarou, vivíssima, quando questionada por fazer parte de um governo presidido por quem defende a tortura. Diante das críticas da atriz Maitê Proença, a ex-atriz Regina Duarte interrompeu de forma destemperada a entrevista: “Vocês estão desenterrando mortos”. A jornalista Daniela Lima respondeu: “Não estamos desenterrando, estamos enterrando mortos, dentre eles alguns de seus colegas”.

Enterrando os mortos

A incapacidade da secretária de Bolsonaro para definir as diretrizes que orientam a pasta, à maneira de outras pastas, a habilitam para o cargo, tornando evidente que serve a um governo preocupadíssimo com o capital, inclusive dos negócios dos milicianos, mas que não demonstra a mesma preocupação em relação à saúde, à educação e à cultura. Um governo genocida que marcha com empresários desavisados ao STF para exigir o fim do isolamento social, explicitando desprezo pela vida. Com linguajar confuso, difuso, non sense, weintraubiano, Regina Duarte está à deriva em relação ao patrimônio cultural e artístico do país.

O pior papel de canastrona da Regina Duarte foi representar o personagem Regina Duarte, que nos fez esquecer a suína viúva Porcina. A mimese, recriação da vida própria da arte de representar, ela transformou em caricatura do poder. Aquele riso que um dia encantou e enganou o Brasil hoje parece abjeto e repugnante, no contexto de mais de 10.000 mortos, excluindo as subnotificações. A ex-atriz e pecuarista gargalhou quando pediu “Gente, vamos pra frente” e cantou com fingida alegria a música da ditadura: “Prá frente Brasil”. Só faltou fazer um dueto com o major Curió, responsável pelo assassinato de 41 militantes no Araguaia, que foi recebido no Palácio do Planalto.

“Essa véia embonecada metida a inteliquituar” – como a definiu Olavo de Carvalho nas redes sociais – está sendo fritada pela “ala ideológica” do governo, por isso quis mostrar serviço com um discurso digno de Carlucho.  No entanto, a arte, que aparece no Duarte da Regina, se manifesta também em descarte, que é o destino de todo lambe-botas, quando deixa de ser útil ao poder. Taí o ex-ministro da Justiça que não me deixa mentir.

O que diz o A? O que diz o B?

O A diz Adeus à atriz,

o B é o Bozo da morte.

E o que diz o C, o que diz o C?

Coitado do povo infeliz.

P.S. 1 – A entrevista de Regina Duarte nos fez mudar o tema da coluna de hoje, que já tinha até um título: Da arte de fazer balbúrdia contra o Covid-19”.  Abordaríamos a Marcha Virtual organizada pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) no 07 de maio e, dentro dela, reunião com orientandos de doutorado e mestrado do Programa de Pós-Graduação em Memória Social da UNIRIO para mostrar a importância da pesquisa que realizam. Entre eles, um pesquisador do Benin, outra do Chile, dois do Pará, uma de Minas e duas do RJ: Magé e Campos. “Balbúrdia” como essa é que fez do HUPE da Uerj um hospital de referência, com recursos conquistados à base de sua competência científica.

PS. 2 – Quanto à divulgação dos testes de Bolsonaro para o coronavirus, processo em andamento no Poder Judiciário, o Brasil espera a confirmação do tão citado João (8:32): “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”.

 

 

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