Por Grazielle Albuquerque, no jornal Le Monde Diplomatique-Brasil:
O “detalhe” da democracia
Saindo da esfera midiática, ao focar na ruas, o Supremo foi alvo de críticas à esquerda, durante a onda de protestos que fizeram parte do processo de impeachment de Dilma Rousseff, em 2016. Os apoiadores do governo Dilma apontavam a atuação do Tribunal de forma seletiva como um dos elementos centrais do seu impedimento. Pouco tempo depois, em uma passeata pró-Lava Jato, em dezembro de 2016, era possível ver na avenida Paulista como fora aberto um fosso; dessa vez eram os apoiadores da operação que criticavam os ministros do STF. Assim, agora as críticas ao Supremo vinham pela direita.
A essa altura talvez o leitor se pergunte em que ponto o argumento sobre as críticas ao Supremo, no que hoje parece o longínquo ano de 2016, tem relação com a conjuntura atual. Pois bem, retomemos a pesquisa Jota/Ibpad. Um dos pontos levantados é que a descrença com a democracia brasileira aparece com índices mais acentuados entre as pessoas que dão maior apoio ao presidente Jair Bolsonaro.
Em outra pesquisa recente, também do dia 8, o Instituto Datafolha mostra dados de um país dividido em três partes, onde praticamente cada terço da população tem opiniões distintas sobre o governo Bolsonaro. Retirando os 31% que consideram o governo regular e os 33% que atribuem termos como ótimo ou bom, sobram 33% cuja classificação está em ruim ou péssimo. Os números colocam Bolsonaro como o presidente com a pior avaliação no início do mandato desde a presidência de Fernando Collor de Mello (1990-92), também alvo de impeachment. Coincidentemente, Bolsonaro consolida sua margem de apoio, com os piores números, quando a #VazaJato aumenta sua repercussão, após a decisão do Intercept de compartilhar dados com a revista Veja e a Folha de São Paulo. Embora não se possa alegar causa e efeito, ao menos cronologicamente esses fatores se coadunam.
Há, assim, uma clara ligação entre os apoiadores do governo e aqueles que se opõem ao Supremo. É neste ponto que os temas da democracia e do bolsonarismo se juntam, deixando a Justiça no corner. Aqui vale ressaltar o óbvio: quando o ex-juiz Moro passa a integrar a equipe de Bolsonaro, a Lava Jato, em muitos aspectos, se cola ao governo de forma definitiva. Moro que chegou a ser tido como reserva moral e técnica do governo, passou de fiador a devedor do bolsonarismo, capturado pela mesma base de apoio. Dito sem rodeios: Moro está dependente do bolsonarismo, enquanto a Lava Jato vive dias de cobranças sem precedentes.
Disputa suicida
Dito de outra forma, não seria um erro pensar que a Justiça se colocou numa enrascada. Enquanto sua cúpula é antagonizada pelos apoiadores do governo, a base se prende a esse mesmo quinhão. Uma disputa entre dois polos que, sem exageros, pode ser ilustrada por um suicídio institucional. Em síntese, não só a Lava Jato se opõe ao Supremo, como ambas as extremidades da Justiça estão enredadas pela base de apoio governamental. Em um eixo a Justiça se defende do bolsonarismo, no outro depende dele. Seja qual for o caminho, essa mecânica parece ser uma chave interpretativa. Dois vetores de entendimento, ou talvez uma lança de duas pontas para ilustrar a Justiça que retalha a si própria.