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sábado, 20 abril, 2024

A insuportável leveza da China 

O ex-diplomata e autor de Cingapura Kishore Mahbubani fala em um evento da Sociedade da Ásia em uma foto de arquivo (Foto: Flickr Commons)

Pepe Escobar, Asia Times

Em seu novo livro, Kishore Mahbubani argumenta que o rejuvenescimento da China não é movido por impulso de ‘missão’ – fato que EUA debilitados recusam-se a ver

Como corporificação viva de como Ocidente e Oriente devem convergir, Mahbubani é muito mais capaz de falar sobre intrincados aspectos conectados à China, que os rasos, ocos, autodeclarados “especialistas” ocidentais em assuntos de Ásia e China.

Especialmente agora, quando uma guerra híbrida 2.0 carregada de demonização contra a China é feita por quase todas as facções no governo dos EUA, do Estado Permanente [também dito “Estado Profundo”, mas que não é ruim por ser profundo, é ruim por ser permanente (NTs)] e do establishment da Costa Leste.

Membro emérito do Instituto de Pesquisa sobre a Ásia da Universidade Nacional de Cingapura, ex-presidente do Conselho de Segurança da ONU (2001 e 2002) e reitor fundador da Escolha Lee Kuan Yew de Política Pública (2004-2017), Mahbubani é a quintessência do diplomata asiático.

Irritar interlocutores não é com ele. Ao contrário, sempre manifesta infinita paciência – e conhecimento de insider – quando se dedica a tentar explicar, especialmente a norte-americanos, o que faz a civilização-estado chinesa funcionar.

Em livro de argumentação elegante, cheio de fatos persuasivos, é como se Mahbubani esteja aplicando o Tao. Seja como a água. Deixe fluir. Ele flutua como borboleta e alcança ainda mais longe que sua “conclusão paradoxal”: “Uma grande disputa entre EUA e China é ao mesmo tempo inevitável e evitável”. E concentra-se nas trilhas rumo ao “evitável”.

O contraste com a forma mental confrontacional, emperrada e irrelevante da Armadilha de Tucídides prevalecente nos EUA não poderia ser mais patente. É iluminador observar o contraste entre Mahbubani e Graham Allison da Universidade Harvard – que parecem admirar-se mutuamente – num debate do China Institute.

Chave importante para o seu modo de abordar a questão aparece quando Mahbubani conta que sua mãe, hindu, costumava levá-lo aos tempos hindus e budistas em Cingapura – embora no estado-ilha a maioria dos monges budistas fossem de fato chineses. Aqui encontramos encapsulado o cruzamento cultural/filosófico chave Índia-China (em português, 247) que define o Leste da Ásia “profundo”, ligando confucionismo, budismo e o Tao.

Tudo sobre o EUA-dólar

Para agentes asiáticos, e para aqueles que, como no meu caso, realmente viveram em Cingapura, é sempre fascinante ver o quanto Mahbubani é essencialmente discípulo de Lee Kuan Yew, embora sem a arrogância. Dado que seu esforço para compreender a China por dentro, em todo o espectro, por décadas, é muito claramente exposto, Mahbubani está longe de ser discípulo do Partido Comunista Chinês (PCC).

E destaca esse ponto de várias formas, mostrando como, no slogan do partido, “Chinês” é muito mais importante que “Comunista”: “Diferente do Partido Soviético Comunista [ing. Soviet Communist Party, (the SCP)], não está surfando uma onda ideológica; surfa a onda de uma civilização ressurgente (…) a mais forte e mais resiliente civilização de toda a história.”

Inescapavelmente, Mahbubani delineia os desafios e fracassos geopolíticos e geoeconômicos de ambos, da China e dos EUA. E isso nos leva, pode-se dizer, ao argumento chave no livro: como ele explica aos norte-americanos a recente erosão da confiança global na ex “nação indispensável”; e como o EUA-dólar é agora o calcanhar de Aquiles do país.

Assim, mais uma vez, temos de enfrentar o pântano interminável do status de moeda de reserva; seu “privilégio exorbitante”, a recente total conversão do EUA-dólar em arma de guerra e – inevitavelmente – o contraponto: aquelas “vozes influentes” que agora operam para deixar de usar o EUA-dólar como moeda de reserva.

Entra em cena a tecnologia de blockchain e o movimento chinês para criar uma moeda alternativa baseada nessa teologia do “protocolo da confiança”. Mahbubani nos leva a um Fórum China Finance 40, em agosto do ano passado, quando o vice-diretor do Banco do Povo da China, Mu Changchun, disse que o PBOC estava “próximo” de emitir sua própria criptomoeda.

Dois meses adiante, o presidente Xi anunciou que a tecnologia blockchain passaria a ter “alta prioridade” e questão de estratégia nacional de longo prazo. Agora, está acontecendo. O yuan digital – como num protocolo soberano de confiança [ing. sovereign blockchain] – é agora iminente.

E isso nos leva ao papel do EUA-dólar no financiamento do comércio global. Mahbubani analisa corretamente que, assim que isso seja modificado, “o complexo sistema internacional baseado no EUA-dólar pode vir a baixo, rapidamente ou lentamente.” O plano máster da China é acelerar o processo conectando as próprias plataformas digitais – Alipay, WeChat Pay – num sistema global.

O século asiático

Como Mahbubani explica cuidadosamente, “os líderes chineses desejam rejuvenescer a civilização chinesa, mas não são movidos por qualquer impulso missionário para controlar o mundo e converter todos em chineses”. Apesar disso, “EUA convenceram-se de que a China ter-se-ia tornado ameaça existencial.”

Os melhores e mais brilhantes em toda Ásia, Mahbubani incluído, jamais deixam de se estarrecer ante a total inabilidade do sistema norte-americano para “proceder a ajustes estratégicos para essa nova fase na história”. Mahbubani dedica um capítulo inteiro – “Os EUA conseguem dar meia volta?” [ing. Can America make U-turns?”] – a essa questão.

Em apêndice, até acrescenta um texto de Stephen Walt, desmontando “o mito do excepcionalismo norte-americano”. Não se vê qualquer sinal de que o etos do Excepcionalistão esteja sendo seriamente contestado.

Recente matéria de McKinsey analisa se o “próximo normal” emergirá da Ásia, e algumas de suas conclusões são inevitáveis: “A futura história global começa na Ásia.” E vai muito além de números prosaicos: à altura de 2040, “espera-se que a Ásia represente 40% do consumo global e 52% do PIB.”

Naquela matéria lê-se que “talvez venhamos a olhar para trás, para a pandemia de hoje, como o ponto de virada, que deu realmente início ao Século Asiático.”

Em 1997, na mesma semana durante a qual estive cobrindo a ‘devolução’ de Hong Kong, publiquei um livro no Brasil, intitulado 21: O Século da Ásia [ing. 21st: The Asian Century]  (excertos de alguns capítulos podem ser lidos aqui aqui , em português). Naquele momento e já vivia há três anos na Ásia e já aprendera algumas importantes lições da Cingapura de Mahbubani.

A China então ainda era ator distante no novo horizonte. Hoje o jogo é completamente diferente. O Século Asiático – na verdade, Século Eurasiano – já está em andamento, conforme a integração da Eurásia desenvolve-se, puxada por siglas que trabalham duro (ICE, Iniciativa Cinturão e Estrada; BAII, Banco Asiático de Infraestrutura e Investimento; OCX, Organização de Cooperação de Xangai; União Europeia Euroasiática, UEEA) e a parceria estratégica Rússia-China.

O livro de Mahbubani, ao capturar a insuportável, elusiva leveza da China, é a mais recente ilustração desse fluxo inexorável da história.

Has China Won? The Chinese Challenge to American Primacy (Kishore Mahbubani)Ed. Public Affairs (EUA$19.89).

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