Matthieu Auzanneau
entrevistado por Harrison Stetler
A inflação atual não se deve apenas a uma recuperação pós-pandemia nos preços dos combustíveis, mas também a um esgotamento de longo prazo da produção de petróleo. Devemos acabar com a nossa dependência dos combustíveis fósseis sem que isso se torne um pretexto para uma nova onda de austeridade.
O preço do petróleo bruto subiu de menos de 20 dólares o barril no início da pandemia para mais de 90 dólares [NR]. É um dos principais impulsionadores da alta inflação que se tornou um grande problema não só nos Estados Unidos, mas em todo o mundo, muitos países enfrentando uma volatilidade de preços não vista em décadas. As interrupções na cadeia de fornecimentos e a escassez de novos investimentos em petróleo induzida pelo COVID-19 são parcialmente responsáveis por esta situação. Mas há algo mais profundo do que a pandemia e suas consequências que está a desestabilizar o capitalismo global.
Matthieu Auzanneau é um autor especializado na indústria do petróleo e diretor do Shift Project, um centro de estudos parisiense dedicado a acabar com o uso de combustíveis fósseis. Seu livro de 2015, Or noir, la grande histoire du pétrole publicado por La Découverte, é uma extensa história da indústria do petróleo. Pétrole: Le déclin est proche (Seuil, 2021, em coautoria com a jornalista Hortense Chauvin) discute os efeitos de ter sido atingido em 2008 o pico da produção convencional de petróleo.
Harrison Stetler, da Jacobin, conversou com Auzanneau sobre as perturbações na indústria do petróleo, a transição para outras fontes de energia e a questão de quem deve pagar por isso.
HS: Na véspera da cimeira da COP26 no ano passado em Glasgow, a Agência Internacional de Energia (AIE) divulgou o seu relatório anual o World Energy Outlook 2021. Pode ler-se no documento: “Os mercados mundiais de energia estão confrontados com um período de perturbações e volatilidade se a transição para fontes de energia não-carbónicas não for acelerada.” De que realidade está falando a AIE?
MA: Existem dois elementos-chave por trás da declaração da AIE. Quando se fala em riscos de volatilidade, ou riscos de stress no mercado, há antes de tudo um fenómeno cíclico ligado à recuperação pós-COVID. E depois há um fenómeno muito mais profundo, que é a dificuldade crescente que as empresas petrolíferas encontram em obter recursos petrolíferos inexplorados para compensar a metade da produção mundial que está estruturalmente em declínio porque as reservas estão em situação crítica.
Um conceito muito importante na indústria do petróleo, encontrado em qualquer indústria extrativa, é a “maturidade de recursos”. Quando falamos de um recurso “maduro”, significa que já extraímos pelo menos metade das reservas existentes. Hoje, tanto a AIE como as principais fontes de referência determinaram que cerca de metade da produção mundial de petróleo está madura. Isso significa que só podem diminuir.
Foi por isso que em 2018, antes da crise do COVID, a AIE afirmou no seu relatório executivo destinado a decisores, que o pico da produção de petróleo líquido convencional – que constitui três quartos do total – havia sido ultrapassado; e foi ultrapassado em 2008, ano em que rebentou a bolha especulativa dos subprime, sustentando a tese de um nexo de causalidade entre o pico do petróleo convencional e a crise do subprime.
Quando a AIE publicou este relatório em 2018, já destacava a imensa dificuldade, sobretudo sistemática, que as empresas petrolíferas encontravam para descobrir os recursos necessários para compensar o declínio das fontes existentes. Por isso alertaram para o risco de escassez de oferta até 2025, se a produção de petróleo de xisto não pudesse triplicar para 20 milhões de barris por dia a partir de 2025 – na época, era de 7 a 8 milhões por dia.
Não é de forma alguma o que se passa. A crise COVID-19 agravou a lacuna de investimento em petróleo que já existia em 2018. Vemos agora as tensões a acontecer porque os investimentos em jazidas de petróleo não convencional e extremas – óleo de xisto, perfuração offshore ultraprofunda – que seriam necessários para compensar o declínio não foram realizados. Desde então, a procura voltou, mas o que falta é capacidade de produção adicional. Há uma coisa muito importante a saber sobre a indústria do petróleo: é que se nada se fizer, se parar de se investir, a produção não pode ser mantida.
HS: Em 18 de janeiro, Le Monde publicou uma longa reportagem sobre a indústria do petróleo, na qual é citado. No primeiro parágrafo, os jornalistas afirmam que “as reservas comprovadas no subsolo são suficientes para durar pelo menos cinquenta anos com base no consumo anual atual”. É toda a história?
MA: Esta ilusão é clássica e é enganosa por duas razões. A primeira é uma razão económica, que – como constatamos constantemente – o preço do petróleo é de natureza a provocar uma recessão. A procura de petróleo é extremamente pouco sensível ao preço do barril. Foi exatamente o que aconteceu em 2008: quando as pessoas não têm meios para comprar gasolina ou gasóleo, cortam noutras despesas, como pagamento de hipotecas. Se se estima que para fazer investimentos basta que o preço do barril suba para 150, 160 ou mesmo 200 dólares – como imaginávamos no início da década de 2010 – então deparamo-nos com o fenómeno recessivo do preço do petróleo.
Mas a segunda razão pela qual essa ilusão é fundamentalmente enganosa e, na minha opinião num nível nitidamente mais grave, é por razões práticas. O barril suplementar é encontrado em depósitos de baixo rendimento (“barril marginal”) em locais cada vez mais inacessíveis. O horizonte da indústria petrolífera era a perfuração offshore, depois offshore “profunda”. Hoje, falamos em perfuração offshore “ultraprofunda” ou no Ártico. Será cada vez mais difícil compensar o declínio do petróleo fácil de extrair por petróleo não convencional de jazidas profundas, do Ártico ou de outros lugares.
Este critério simples demonstra que há um problema. O que descrevo aqui é tudo menos novo ou um segredo para os executivos da indústria. Para eles, é uma realidade. O chefe da Mobil, na época da fusão com a Exxon em 1998, disse que tínhamos chegado ao fim da era do “petróleo fácil”. Desde então, desenvolvemos agrocombustíveis, areias betuminosas, offshore ultraprofundos, todos mais caros e mais complicados de produzir do que o petróleo convencional, que atingiu os seus limites.
É um problema geológico fundamental. Chegámos ao fim dos recursos inexplorados fáceis de extrair. Chegámos ao fim do “petróleo fácil”. Entramos agora na era do petróleo complicado e, portanto, será cada vez mais difícil compensar o declínio do petróleo fácil com petróleo não convencional, de jazidas profundas, sejam do Ártico ou de outros lugares. Para nós, isso significa uma coisa muito simples. Não é só por causa do clima que temos que sair do petróleo. A festa acabou.
HS: Há um certo silêncio em torno do fenómeno do “pico petrolífero”. O seu último livro, em coautoria com Hortense Chauvin, é o resultado de uma feliz combinação de circunstâncias: teve acesso a pesquisas da Rystad Energy, uma empresa de consultoria do setor de energia com sede na Noruega. Como explica o silêncio em torno da questão dos recursos petrolíferos?
MA: Por uma razão muito simples: são dados que têm um valor económico muito alto, pelos quais normalmente se teria que pagar. Se tiver algumas centenas de milhares de euros, poderá ter acesso. Infelizmente, esse raramente é o caso de um humilde investigador académico. Essas empresas de consultoria em informação económica são principalmente agências de espionagem partilhadas. Você espia a sua concorrência e todo mundo espia todo mundo. No entanto, esses dados, que levantam questões fundamentais sobre um futuro que diz respeito a todos, normalmente são reservados apenas aos industriais. Tudo isto agora tornou-se público porque há um problema real com a sustentabilidade da produção global de petróleo.
HS: Nestes últimos meses, a ansiedade com a inflação tornou-se uma questão política maior. Como os preços do petróleo – que agora giram em torno de 90 dólares o barril – alimentam a inflação? Falar sobre o pico do petróleo remete à futurologia dos anos 1970. Mas você afirma que já estamos a suportar os seus efeitos.
MA: Certamente que há inflação, mas também há volatilidade de preços, então não apenas preços muito altos, mas também preços que mudam rapidamente. Durante a maior parte do século XX, os preços do petróleo foram muito estáveis. Agora as companhias petrolíferas precisam de preços altos para extrair petróleo do Ártico e de outros lugares e, ao mesmo tempo, há o caráter recessivo do preço do barril.
De facto, na história recente, já vimos exemplos. Defendo a teoria segundo a qual o que aconteceu em 2008 foi um choque petrolífero. O que vimos em 1973 foi o resultado do pico de produção de petróleo convencional nos EUA. Em 2008, o que aconteceu? O que causou o estouro da bolha do subprime? O aumento das taxas de juro do Federal Reserve, que subiram de forma constante entre 2003 e 2006 para evitar a inflação induzida pelo aumento histórico e sem precedentes do preço do petróleo, em particular devido ao fim do petróleo fácil
É um facto curiosamente subestimado, eu diria mesmo comicamente. Ninguém lhe dirá que o aumento da taxa do Fed teve um efeito direto no estouro da bolha do subprime. No entanto, todos sabem até porque está escrito na ata da FED, que a principal razão para o aumento das taxas de juro foi o aumento do preço do petróleo a partir de 2003, que passou de cerca de 30 dólares para bem mais de 100 dólares o barril. Vimos grandes produtores, incluindo a Arábia Saudita, enfrentarem dificuldades históricas para manter os seus níveis de produção. Foi também o período do declínio do petróleo do Mar do Norte – um caso clássico que demonstra uma queda irreversível na produção. Do meu ponto de vista, o que ocorreu em 2008 foi muito clara e diretamente um choque petrolífero. Foi a primeira grande crise do fim do crescimento.
Não estou a dizer tudo isto para defender uma tese, mas para salientar que a situação é pior do que se estivéssemos diante de um problema puramente “económico”. Este é um problema ecológico e releva fundamentalmente da geologia. Quando alguns dizem “só temos que investir mais”, recusam-se a ver que vivemos numa esfera onde começámos a encontrar petróleo que estava sob os nossos pés e agora falamos em ir para o Ártico. A maioria dos produtores não ganhou dinheiro com o “petróleo não convencional”. A grande maioria dos operadores petrolíferos não convencionais estiveram presentes do início ao fim sem gerar o mínimo fluxo financeiro.
HS: Como estão as grandes petrolíferas a adaptar-se a esta nova realidade?
MA: Mesmo que quisessem não é por razões éticas que as grandes sairiam do petróleo. No seu relatório de 2020, a AIE fez uma declaração tragicamente explícita. Disse que as companhias de petróleo podem estar a perder o apetite muito mais rapidamente que os consumidores. Isso significa que estamos no fim do petróleo fácil. Para as petrolíferas, a realidade – antiga – está aí e o barril proveniente de jazidas com baixo rendimento torna-se cada vez mais caro e arriscado de extrair. Não tem nada a ver com ética ou o clima.
A Royal Dutch Shell interrompeu a produção no Ártico; não por escrúpulos éticos ou ambientais, mas porque uma plataforma de vários milhares de milhões de dólares naufragou na costa do Alasca numa tempestade de Outono. É o fim do petróleo fácil. Faz-se um investimento de 2 mil milhões de dólares para enviar uma plataforma de petróleo em North Slope, ao norte de Prudhoe Bay, e ela fica destruída na costa.
HS: Os nossos modelos sociais envolvem um aumento contínuo da disponibilidade de energia, um aumento que será difícil de sustentar devido ao fim do petróleo fácil, à devastação causada pelo aumento das emissões de combustíveis fósseis e à dificuldade das fontes de energias renováveis produzirem tanta energia. Mesmo que seja apenas para manter um certo nível de fornecimento de energia, a energia nuclear parece ser a única solução previsível, pelo menos a médio prazo. Como deve a esquerda posicionar-se em relação à energia nuclear?
MA: Infelizmente, em França, ser a favor ou ser contra a energia nuclear tornou-se uma questão de esquerda ou direita. É realmente o reconhecimento do fracasso de uma expressão de pensamento claro. É importante salientar que a ecologia política, que para mim é fundamentalmente de esquerda, deve defender o rigor científico. O mundo político deve aceitar o jogo da racionalidade. O problema que enfrentamos é de física e tecnologia – por isso precisamos de nos informar sobre as suas dimensões práticas e tecnológicas, talvez antes mesmo de abordar as dimensões éticas.
É praticamente impossível um país desenvolvido resolver a equação da eliminação progressiva dos combustíveis fósseis sem energia nuclear. É um facto. Existem excelentes razões para ser antinuclear, e eu respeito-as plenamente. Mas é preciso tirar consequências racionais. Isto significa que, se se for tentado a resolver essa equação sem energia nuclear, haverá efeitos indesejáveis em termos de consumo, em termos de estabilidade da produção de eletricidade. Existem muitos efeitos colaterais complexos e difíceis e, se não se reconhece isto, então não se é racional, não se está enfrentando o trágico desafio que a natureza nos lança agora.
HS: Claro, a sobriedade energética também é um caminho essencial. Mas sabemos o que acontece em sociedades que enfrentam uma queda repentina e brutal de energia – por exemplo, a Coreia do Norte após a queda da URSS, ou a Síria na década de 2010.
MA: Precisamos ser claros sobre o que queremos dizer com sobriedade. Uma sobriedade imposta? Ou uma sobriedade pensada e deliberada? Mais uma vez, se refletirmos sobre a sobriedade, rapidamente compreendemos que não é a sobriedade de cada célula do organismo social, é a sobriedade do organismo.
Isto não significa que vamos pedir às pessoas que não têm muito para apertar o cinto. Não, significa entender como os órgãos vitais da sociedade podem funcionar sendo muito mais sóbrios. Isto não significa que todas as famílias tenham que sobreviver com menos. Significa que projetaremos sistemas técnicos, sistemas de produção, sistemas de energia, sistemas de processamento industrial, sistemas agrícolas, sistemas de saúde e sistemas culturais que possam funcionar e prestar seus serviços de forma mais sóbria.
A metáfora que costumo usar é que o petróleo é o sangue da sociedade contemporânea. Sair do petróleo não é apenas fazer uma cirurgia de coração aberto, é também mudar as redes de fornecimento de energia – e, portanto, mudar o funcionamento e a organização dos órgãos vitais da sociedade.
[NR] Em 21/Março o barril do Brent já estava em US$116,2.
De Auzanneau ver também:
O original encontra-se na Jacobin e a versão em francês em Les causes de l’inflation: quid du pic de la production de pétrole?
Este artigo encontra-se em resistir.info