José Ribamar Bessa Freire
Dizem que as línguas, como os gatos, têm várias vidas. Será que os brasileiros estão interessados em conhecer as vidas das línguas faladas dentro do território nacional? Os conhecimentos que nelas circulam e a beleza de suas narrativas e de seus cantos têm tudo a ver com a qualidade de vida de nossos filhos e netos, mas ainda são poucos os que fazem a ligação entre a diversidade de línguas e o destino daquele Brasil que não quer “futurar-se”. Olhe a seu redor e me diga se familiares, vizinhos, amigos e colegas de trabalho têm consciência da importância das 274 línguas indígenas para a construção desse país.
Pensei nesta questão durante o evento ocorrido em Belém (PA), de 18 a 23 de novembro quando algumas dezenas de pesquisadores apresentaram trabalhos sobre línguas e culturas indígenas da Amazônia. Conferências, simpósios, mesas redondas, minicursos, comunicações individuais, lançamento e exposição de livros foram organizados pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará (PPGL-UFP) e pela Universidade Federal do Amapá.
A primeira mesa-redonda, justamente sobre “Políticas linguísticas para línguas minoritárias”, contou com a participação da pesquisadora Maria Sônia Aniká, do povo indígena Karipuna, de Bruna Franchetto, linguista do Museu Nacional e deste locutor que vos fala, aspirante a “ficante” de línguas indígenas.
Sônia Aniká, especialista em educação escolar indígena, professora da Escola Jorge Iaparrá, estudou dois tipos de linguagem: o grafismo Kuahí na cuia e no corpo na aldeia Manga às margens do rio Curipi (AP) e a língua Kheuól falada hoje pelo povo Karipuna, que em sua maioria é bilíngue. Como resultado das políticas que proibiam o uso da língua indígena, o português acabou se tornando a primeira língua para muitos Karipuna – explicou Sonia.
Bruna Franchetto, professora titular da UFRJ, participou da mesa através de videoconferência. Ela acumulou conhecimentos sobre as línguas do Alto Xingu e na coordenação do PRODOCLIN – Programa de Documentação de Línguas Indígenas do Museu do Índio/UNESCO, assim como nos cursos de formação de professores indígenas que ministrou. Propôs a elaboração de um mapa da resistência às constantes agressões cometidas contra as línguas indígenas. Elas são fundamentais para a manutenção dos territórios permanentemente ameaçados.
As vidas da língua
Se me permitem, faço aqui um resumo da minha fala. Posto que as línguas têm mesmo várias vidas, como os gatos, destaquei três formas de se relacionar com essas vidas: como falante, como “lembrante” e como “buscante”. As línguas indígenas, hoje minoritárias, na realidade foram minorizadas num processo histórico de média e longa duração, em que sofreram restrições de seus espaços e tiveram proibido seu uso em diferentes âmbitos: escola, mídia, trabalho, igreja, parlamento, judiciário e em todas as formas de interação social. A repressão e os castigos reduziram gradualmente o número de seus falantes, o que levou à morte de muitas delas.
Afinal, línguas morrem? A linguista colombiana Maria Stella Gonzalez, assegura que qualquer língua tem muitas vidas. Uma dessas vidas – a fala – pode morrer se a língua perder seu último falante. A segunda vida é aquela mantida pelos “lembrantes” que acontece quando a fala morreu, a língua não é mais usada na comunicação coloquial, mas permanece viva na memória dos velhos, que com ela recitam cantos e celebram rituais. Se duas vidas são perdidas, há ainda uma terceira: “Ela não morre – defende Stella Gonzalez – se estiver bem documentada, neste caso continuará existindo sempre”. Ela poderá, então, renascer, se contar com “buscantes”.
Os “buscantes” são os linguistas, arquivistas, historiadores, antropólogos e bibliotecários que procuram a documentação conservada nos arquivos dentro e fora do país. Lá podem ser encontrados dicionários, gramáticas, vocabulários, glossários, catecismos, sermões, hinos, poesias, toponímias, traduções, mapas etnolinguísticos, dados estatísticos sobre falantes, legislação sobre o uso das línguas e uma variedade outra de documentos.
O acesso à documentação se dá através de catálogos, fichários, guias e inventários elaborados muitas vezes por profissionais que não tinham a língua no seu horizonte e acabam omitindo a sua existência nos instrumentos de pesquisa. Até hoje, não foram encontrados os catecismos feitas pelo padre Antônio Vieira, no sec. XVII, em língua da Ilha do Marajó. Também ainda não temos um trabalho similar ao do historiador Francisco de Solano que reproduziu 129 documentos sobre línguas na América hispânica para facilitar a vida dos “buscantes”.
Os “ficantes”
Nos arquivos do Rio de Janeiro encontramos muitos documentos durante o levantamento para o Guia de Fontes para a História Indígena e do Indigenismo em Arquivos das capitais brasileiras, coordenado nacionalmente pelo historiador John Monteiro. Depois buscamos documentos em pequenos arquivos paroquiais, municipais e cartoriais de 16 municípios do Estado do Rio. “Buscantes” muitas vezes se deixam encontrar por documentos de cuja existência nem sequer suspeitavam, o que constituiu um dos tantos “sabores do arquivo” segundo a historiadora francesa Arlette Farge.
“A língua é o DNA da cultura – nos lembra Bruce Cole, professor de literatura comparada na Universidade de Indiana. Efetivamente, qualquer língua armazena as informações que nos permitem desvendar o funcionamento de uma cultura e registrar os saberes nela produzidos, alguns singulares e únicos. Por isso, é necessário reconhecer as vidas das línguas, conhecer suas histórias e as diferentes políticas linguísticas que interferiram em seu destino. Para Bartomeu Meliá, esse catalão que se guaranizou, “a história da América é também a história de suas línguas, que temos que lamentar quando morrem, que temos que visitar e cuidar quando enfermas, que podemos celebrar com alegres cantos de vida quando são faladas”.
Mencionamos os falantes, os lembrantes e os buscantes, mas deixamos para o final uma quarta categoria que une as três primeiras: os “ficantes”, aqueles que namoram as línguas indígenas e com elas mantém relação amorosa, permanecendo sempre fiéis, como fizeram tantos que dedicaram suas vidas a estudá-las, todos homenageados na figura de Leopoldina Araújo, laureada no II Seminário do Grupo de Estudos sobre Línguas e Culturas Indígenas da Amazônia (GELCIA) e no II Simpósio de Pesquisa em Línguas Indígenas – Região Norte (SIPLI-NORTE) no evento “O Ano Internacional das Línguas Indígenas: descrição, documentação, educação escolar e políticas linguísticas”.
P.S. – Pesquisadores de diferentes universidades nacionais e estrangeiras e estudiosos indígenas participaram da festa das línguas em Belém, coordenada por Sidney Facundes (UFPA) e Eduardo Vasconcelos (Unifap), entre outros Eliene Putira, Lenise Batista Palikur, Agenor Lopes Paumari, Valdemir Farias Apurinã, Raimundo Nonato Apurinã, Jurandir Zezokiware, Wilmar D’Angelis e Angel Corbera (Unicamp), Ângela Chagas, Ivânia Neves e Marília Freitas (Ufpa), Ana Vilacy (Museu Goeldi), Ana Carla Bruno (Inpa/Ufam) e Jonise Santos (UFAM), Mônica Veloso (UFG), João Carlos Gomes (UNIR), Enilde Faulstich (Unb) e a finlandesa Pirjo Kristiina Virtanen, da Universidade de Helsinki, que falou sobre “língua e comunicação Apurinã com animais e plantas no Médio Purus.
Há 30 anos, o número de estudiosos das línguas era reduzido. Hoje, ainda é pequeno, mas cresceu bastante, o suficiente para fazer uma senhora “balbúrdia” imprescindível nesses tempos bicudos de escalada fascista.