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quinta-feira, 18 abril, 2024

À espera do ruir das estruturas

Naufrágio

Alastair Crooke [*]

Jeffrey Tucker, num artigo intitulado How Close Is Total Social and Economic Collapse?, escreve: “Economias e sociedades desmoronam-se lentamente, depois um pouco mais depressa, a seguir tudo de uma vez. Parece que estamos no período intermédio desta trajetória [nos EUA]. A parte lenta começou em março de 2020, quando políticos de todo o mundo imaginaram que não seria grande problema fechar a economia e reiniciá-la assim que o vírus desaparecesse”. Que bela demonstração do poder de um governo “conduzido pela a ciência” seria isto – a tecnocracia em pé de guerra.

Mas, “nada disto funcionou. Não se pode desligar uma economia e o funcionamento social normal e depois voltar a ligá-los como se fosse um interruptor de luz. A tentativa por si só provocará necessariamente quantidades imprevisíveis de rupturas a longo prazo, não só das estruturas económicas, mas também do espírito de um povo. Tudo o que se passa agora reflete a presunção desastrosa de que isso seria possível – e sem causar danos dramáticos e duradouros. Foi o maior fracasso político em um século”.

Tudo funciona até que, de repente, deixa de funcionar. Como disse Minsky, a estabilidade gera instabilidade. O problema é que os sistemas complexos são intrinsecamente frágeis. A optimização que os torna eficazes em termos de custo também elimina as redundâncias que os tornam resilientes. As coisas podem desmoronar-se rapidamente quando ocorre algum acontecimento imprevisto. Não só as coisas; a psique pública coletiva também é um sistema complexo e frágil – não pode ser restaurada ao que era simplesmente por um toque no botão de reinicialização.

Tucker vê isto essencialmente como um fracasso de julgamento. Pode ser e pode não ser – o que quer dizer, um fracasso de julgamento no modo como ele o entende. Sim, a derrocada da cadeia de abastecimento pode não ter sido adequadamente previsto; ou o dano auto infligido que resultou da tentativa de desconectar de uma economia interligada tão ubíqua como a da China (ou seja, interrupção do abastecimento de microchips).

Mas talvez a razão pela qual a estratégia de vacinação não está a ser reconsiderada, mas se tenha tornado uma doutrina de culto sobre a qual o Estabelecimento redobrou a aposta, é porque foi concebida desde o início, não apenas como um meio para atingir um fim – ou seja, criar imunidade do rebanho através de vacinas – mas também como um fim em si mesmo.

Encarado desta forma, podemos perceber não apenas “um fracasso” – que uma recuperação em forma de V no reinício, foi apresentada como evangelho – mas ao invés como uma série de “fracassos” críticos relacionados. Estes podem dar a aparência de ser um grupo de erros aleatórios de análise bem-intencionada, mas com falhas, embora de facto, estivessem sempre ligados por terem sido concebidos desde o início como fins em si próprios.

O que estes ‘erros’ têm em comum é o facto de serem ‘um projeto’ – serem de um mesmo ‘género’ – e não simplesmente uma sequência de erros devido a acidentes.

A lógica ostensiva é que, ao ‘forçar’ quase toda a gente vacinar-se, ajudará a alcançar a imunidade do rebanho e assim eliminar o vírus. Aqui, será que os vieses de Tucker não foram ter partido do princípio de que as vacinas não eram “furadas” (“leaky”) quanto às variantes; ou que os vacinados não seriam vulneráveis à infecção; ou que os vacinados não transportariam, espalhariam e transmitiriam o vírus; ou que qualquer proteção não se degradaria em semanas ou meses? Talvez tenham compreendido mal a história de família do vírus SARS (não serem particularmente susceptíveis a vacinas devido à sua tendência para esquivarem-se por meio de variantes); ou então, mais uma vez, pode ser que a vacinação em massa seja também um fim em si mesmo?

Sem vacina não há emprego? Os não vacinados tornaram-se “o inimigo”, exatamente da forma como o filósofo Carl Schmitt disse que moldar um “inimigo” é suposto funcionar: a atribuição de um rótulo tão negro e tão irremissivelmente “outro” que a mediação com tais “monstros” “que põem em risco a vida de outros” torna-se inconcebível. Tal maniqueísmo a preto e branco é a essência da política, escreveu Schmitt aprovadoramente. Na Itália, por exemplo, representantes do establishment político, médico e dos media acusaram abertamente os não vacinados de serem “ratos”, “sub-humanos” e “criminosos”, que merecem ser “excluídos da vida pública” e “do serviço nacional de saúde” e até merecem “morrer como moscas”.

Será está mais uma falha de pensamento claro? A incapacidade dos líderes para compreenderem como é que tal linguagem dilacera a sociedade; que uma sociedade não voltará ao normal social e funcional, ligando diretamente o “interruptor” do Passe Verde (Green Pass) que estava desligado (se é que alguma vez será ligado)?

Ou será isto um fim em si mesmo? – A vacinação como um substituto da lealdade política – a maioria definindo-se em oposição polar a uma minoria demonizada: “Manter a ideologia política errada torna-o impuro”. Você deveria ser expurgado. Talvez seja por isso que a administração Biden também não está preocupada com os despedimentos em massa (e as suas perturbações económicas) – porque isso ajuda a purificar o país dos recalcitrantes que apoiam o Trump?

Mais obviamente, o apressado “projeto verde” ligado a uma “emergência” climática declarada é uma contrapartida ao encerramento e à falha das vacinas. Parece que isto foi imaginado de forma análoga: o mundo faria piruetas afastando-se da energia suja e indo para a energia limpa, através de “mandatos” de carbono que encerrariam tanto a dissipação de carbono pessoal como coletiva. E a economia seria então reiniciada depois de 150 trilhões de dólares terem sido gastos em verdejantes energias renováveis. Outra demonstração do poder de governos “orientados pela ciência”, geridos por peritos, supostamente não manchados pelo partidarismo, ou por expectativas de ganhos pessoais.

Mais uma vez, isto não está a funcionar: Não se pode simplesmente “desligar” uma economia baseada em combustíveis fósseis e depois voltar a ligá-la, um pouco mais tarde, como uma “rede zero” lavada a verde.

Podemos, por um lado, perceber isto como uma simples incapacidade de apreciar os impedimentos práticos que têm dado ao mundo a sua crise energética, e os seus concomitantes enormes custos para os consumidores – embora desencadeados, segundo nos dizem, por uma pura preocupação em salvar o planeta.

Ou, por outro lado, será o mandato do carbono também um fim em si mesmo? Ou seja, a transição para uma classe gestora tecnocrática global e a transferência dos principais instrumentos políticos do nível nacional para o supranacional? Se assim for, isto também não está a funcionar. Os custos sociais do choque dos preços da energia irão espalhar-se em ondas através da política e causar novas rupturas na economia.

E será a mudança associada da gestão económica tradicional para a Moderna Teoria Monetária (MMT) – que aconteceu sobrepor-se ao confinamento da pandemia – uma simples coincidência decorrente da necessidade de agir para proteger as pessoas durante a crise da Covid? Uma crise que testemunhou a “criação” pelos Bancos Centrais de US$30 trilhões de liquidez injetados nas economias, como apoio à pandemia. Será isto, então, apenas uma infeliz má apreciação dos riscos de gerar uma inflação (não transitória) que empobreceria os consumidores e possivelmente provocaria uma recessão económica?

Ou era, também, um fim em si mesmo – concebido à partida como o jet-fuel que financiaria a transição de um capitalismo individualista hiper-financiarizado (o que é reconhecido mesmo pelos tecnocratas) já não mais sustentável, para um capitalismo corporativo de acionistas que deslocaria amplamente direitos de propriedade individuais, em favor de visões sociais, ambientais e de governação mais vastas do que a do corporatismo de acionistas?

Já em 1941, James Burnham em The Managerial Revolution, defendia que o velho paradigma do trabalho versus capitalismo era passado; que a evolução progressiva faria a transição do mundo da dialética capitalista-socialista para uma nova síntese – uma estrutura organizacional composta por uma classe tecnocrática de gestão de elite – um tipo de sociedade que era simultaneamente ‘socialista’, mas também empresarial. Seria liderada por especialistas que compreendessem os problemas para além do interesse do público. Burnham acreditava que isto estava em processo de substituir o capitalismo à escala mundial (“Davos” hoje chama a isto corporatismo de acionistas).

Será que isto tem um fim em si mesmo? Claro – a classe oligárquica da elite é preservada e controla a moeda e o crédito, embora agora a um nível supranacional, (ou seja, o BCE a praticar um racionamento rigoroso do crédito para as empresas, de acordo com as suas próprias doutrinas Verdes). Mas isto também não está a funcionar muito bem: Estamos a sofrer simultaneamente um “choque de preços” energético, e uma inflação perturbadora (mais rupturas).

No plano geopolítico internacional, as coisas também não parecem estar a funcionar. A equipa Biden diz querer uma “competição administrada” com a China, mas por que então despachar Wendy Sherman (a qual não é conhecida pelas suas capacidades diplomáticas) à China como enviada de Biden? Porque é que tem havido este contínuo atrito levando a afastamento da política “Uma só China” de 1972 com uma série de pequenos movimentos aparentemente inócuos sobre Formosa, se a Equipa Biden quer uma competição contida (que ele num recente telefonema com o Presidente Xi disse desejar), mas vacila, repetidas vezes, em fomentar um relacionamento sério?

Será que a Equipa Biden não entende que não está a “conter” a competição, mas sim a brincar com fogo, através das suas” insinuações opacas de que os EUA podem apoiar a independência de Formosa?

E a seguir, porquê de todas as pessoas, despachar Victoria Nuland para Moscou, se a competição com Moscou fosse para ser tranquilamente “equilibrada”, como o frente-a-frente de Biden com Putin em Genebra parecia sinalizar? Tal como Sherman, Nuland não foi recebida a um nível sénior, e naturalmente a sua reputação de “incendiária do Maidan” precedeu-a em Moscou. E porquê dizimar a representação diplomática da Rússia na sede da OTAN e porquê ter o secretário Austin a falar na Geórgia e na Ucrânia da “porta aberta” da OTAN?

Haverá alguma lógica oculta nisto, ou foram estes enviados despachados intencionalmente como uma espécie de gesto provocador “de pontapé” para sublinhar quem é o patrão (ou seja, a América está de volta!)? Isto é conhecido em Washington como ‘diplomacia da capitulação’ – os competidores são apresentados só com os termos da sua capitulação. Se assim for, não funcionou. Ambos os enviados foram efetivamente descartados e as relações de Washington com estes estados-chave estão degradadas a quase zero.

O eixo Rússia-China chegou à conclusão de que o discurso diplomático polido com Washington é como água nas costas de um pato. Os Estados Unidos e os seus protegidos europeus simplesmente não ouvem o que Moscou ou Pequim lhes dizem – então de que serve falar com americanos moucos? Resposta: Nada.

Tucker escreveu a respeito dos confinamentos pandémicos que “tudo o que se passa agora reflete a presunção desastrosa de que [continuar] a fazer aquilo [que já estava a fazer] seria possível, e não causa danos dramáticos e duradouros. Foi o maior fracasso da política num século”. Será isto verdade também para a política externa americana (ou seja, a diplomacia da capitulação)?

Será que se assume que a forma de a América manter o primado global é continuar a fazer discursos provocadores à China sobre Formosa e a sua política de Uma só China; e a seguir discursos provocadores à Rússia sobre a adesão da Ucrânia à OTAN? E que repetidas insinuações em reuniões bilaterais com um Biden folclórico são tudo o que é necessário para impedir que acontecimentos fiquem fora de controlo?

Será que tudo isto é uma simples provocação da Equipa Biden por avaliar erradamente a seriedade com que a China e a Rússia estão a lidar com as suas Linhas Vermelhas, ou, será um fim em si mesmo? (Como um aparte, Burnham era claro em que muitas guerras teriam de ser travadas antes que uma sociedade de gestores pudesse tomar posse total. Estas guerras conduziriam à destruição de Estados-nação soberanos, de tal forma que apenas um pequeno número de grandes nações sobreviveria, culminando nos núcleos de três “super-estados”. Burnham acreditava que “a soberania será restringida aos poucos super-Estados”).

A pergunta inicial de Tucker, deveríamos recordar, era “Quão perto está o colapso social e económico total? O nosso ponto neste artigo é que está ladainha de fracassos está ligada por ser concebida desde o início, como fins em si e para si mesmos. E, de uma forma ou de outra, nenhum está a funcionar. Será então uma tempestade perfeita?

O ponto comum a estes distintos “erros” reside no facto de serem “um só projeto” – um golpe furtivo dos instrumentos políticos e estruturas de responsabilização pública, a nível nacional, e a sua transferência para o plano supranacional (também conhecido como o Re-Set). Todos eles derivam do culto do gerencialismo tecnocrata. Em última análise, Tucker tem razão: na prossecução deste projeto, e do seu aglomerado falhado de subconjuntos, “a tentativa por si só causará necessariamente quantidades imprevisíveis de rupturas a longo prazo, não só das estruturas económicas, mas também do espírito de um povo”.

Historicamente os cultos são desdenhosos quanto à fragilidade de sistemas complexos. Estão centrados nos meios para “fins”. Eles não veriam necessariamente as “rupturas” de Tucker mesmo como rupturas. As atitudes e comportamentos humanos – ou seja, as pessoas – são vistos como um obstáculo e, como Biden adverte repetidamente, “se as pessoas não ajudam, devem sair do caminho das regras da vacina … sair do caminho das pessoas que fazem a coisa certa”.

Parece que a Rússia e a China, vendo tudo isto, permanecerão afastados e pacientes – à espera do ruir das estruturas.

[*] Ex-diplomata britânico, fundador e diretor do Fórum de Conflitos de Beirute.

O original encontra-se em www.strategic-culture.org/news/2021/10/25/waiting-upon-structures-to-crack/

Este artigo encontra-se em resistir.info

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