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sábado, 7 dezembro, 2024

A Copa do Mundo, o pirarucu e o tambaqui

José Bessa Freire

Hoje eu não quero pescar, quero ver a Copa rolar”.

(Chico Malta, 1994).

O chute de Richarlison no gol de voleio furou a rede, a bola sobrevoou o bairro de Aparecida, em Manaus e foi cair lá em Santarém (PA). Era o fim da COP-27 sobre mudanças climáticas e o começo da Copa do Mundo. A atenção de milhões de pessoas se deslocou do Egito para o Catar. Mas meu olhar solitário e fiel seguiu a bola até o rio Tapajós para assistir a Copa Iara disputada nos igarapés e lagos por pirarucus e tambaquis. O “Pombo” é o craque das três copas.

Nem sempre o que a coluna de um jornal publica é aquilo que querem ler as pessoas atraídas por fugazes fatos midiáticos. Vale a pena, porém, perder eventual leitor só para seguir Richarlison, o capixaba de família pobre que, fora do gramado, combate o racismo, o negacionismo e a queimada da floresta, tal qual a Copa Iara criada pelo professor e palhaço Magnólio de Oliveira, que coordenava a equipe de educadores ambientais, entre os quais, figurava o  poeta popular Chico Malta. A Copa da Fifa dura apenas um mês, mas a Copa Iara permanece imorredoura.

Nascido em Santarém, o músico e arte-educador do Projeto Iara/Ibama, Francisco Cardoso Feitosa, ganhou o apelido de Chico Malta, quando era balconista em uma loja e usava chapéu igual ao do Sinhozinho Malta, personagem de Lima Duarte na novela Roque Santeiro. Descendente de Munduruku por parte de pai e de Waiwai pelo lado materno, ele tem mais de 400 composições poéticas inspiradas nas narrativas míticas, nos rituais e nas culturas dos povos do Tapajós.

Uma delas é Selva Amazônica gravada em videoclipe do Globo Ecologia antes da ECO-92, no Rio, onde ele se apresentou como animador cultural em vários shows, assim como no programa da TV Aberta da TV Record. Escreveu ainda várias peças teatrais encenadas por atores de Santarém e publicou o livro de poesias Sant´Além das Linhas imaginárias, no qual canta as belezas da Amazônia. Gravou discos, entre eles Os Encantos da Iara.

Copa da Iara

IARA foi justamente a denominação dada a um projeto do IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, desenvolvido nos governos de FHC e depois no de Lula, quando a então ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, incrementou o Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil, muito antes da barbárie instalada no país pelo presidente agora derrotado nas urnas.
Realizado em parceria com a GOPA, empresa independente de consultoria com sede na Alemanha e filiais em vários países, o projeto buscava o desenvolvimento de soluções integradas. Para isso, dedicou atenção às peculiaridades culturais regionais e, além das equipes multidisciplinares internacionais, incorporou desde sua fase inicial os saberes e os sábios locais para garantir a sustentabilidade ambiental. E é aqui que entra Chico Malta, Mestre de Carimbó, título a ele concedido pelo Ministério da Cultura.

Beneficiado com bolsa do CNPq para trabalhar como arte-educador no Projeto Iara/Ibama/Gopa-Gtz, Chico, que mora atualmente em Alter-do-chão, publicou o livro O Canto da Amazônia com músicas cifradas de sua autoria, compôs Músicas Educativas para o projeto Saúde e Alegria e Cantando com a Bandoca do Ponto de Cultura da Oca/Minc, todas elas deliciariam Rolando Boldrin, recentemente falecido.

Durante a Copa da FIFA nos Estados Unidos, em 1994, Magnólio Oliveiro, que já nos deixou, criou a Copa Iara, como uma estratégia de educação ambiental, destinada a promover o diálogo entre arte, pesquisa e pescadores, um deles era Chico Malta, que  assegurou “marcar ômi a ômi ao som do apito”. Na música Tambaqui & Pirarucu ele canta que os peixes vão acabar se comermos os bodecos – filhotes de pirarucu e os bocós – filhotes de tambaqui, como estão fazendo no Alto Solimões os assassinos de Dom e Bruno. Sua cantoria foi um trabalho integrado que gerou várias cartilhas com histórias em quadrinhos para administrar os recursos pesqueiros do Médio Amazonas.

:Bodecos protegidos

Os dois peixes mais ameaçados, capturados com tamanho cada vez menor, sem chance de desovar pelo menos uma vez, figuram em duas cartilhas – O Pirarucu O Tambaqui – com texto de Maria Paula Bonatto, professora e pesquisadora da Fiocruz-RJ. Lá, fica claro que para “ter peixe pra todos o tempo todo”, é preciso combater a pesca predatória que usa malhadeiras de náilon, motores a diesel, isopor com gelo e até frigoríficos, o que ameaça a sobrevivência das espécies.

O pirarucu, com escamas cinzentas e cauda castanho-avermelhada, pode medir até 3 metros e pesar 200 quilos. Ele se alimenta de peixes, insetos e vegetais da beira dos lagos. Os pescadores dizem que na fase de namoro e reprodução, a cabeça da fêmea, toda faceira, fica arroxeada, enquanto o macho tem a parte de cima escurecida e a barriga e a cauda com um sedutor tom vermelho. Assim, eles se atraem e formam casais para se reproduzirem.

– Na época da desova da fêmea, o casal constrói o ninho, cavando um buraco no fundo do lago. O macho, preocupado com os ovos ali depositados, não arreda de lá, fica só agitando suas nadadeiras para arejar o berço. A fêmea, por sua vez, fica mais afastada e como uma sentinela zelosa defende os filhotes botando pra correr as piranhas que querem atacá-los. Se nessa fase pai e mãe são capturados, fiau babau, as criancinhas não sobrevivem.

O pirarucu-pai, que é uma verdadeira mãe, protege os filhotinhos em sua própria boca, ali no quentinho, e só começa a soltá-los após uma semana, a partir do qual eles se penduram no toco do cangote do pai. Levam cinco anos para se tornarem adultos. Antes disso, bodecos não devem ser pescados. Quando caem nas malhadeiras de pescadores indígenas e ribeirinhos, são devolvidos rapidamente à água, ainda vivos. “O cuidado com eles e a proteção de suas vidas ajudam a garantir alimento aos nossos netos e bisnetos” – diz a cartilha.

Tambaqui pra ti

Quem tem também sua “pequena enciclopédia” é o tambaqui, um peixe que gosta de sombra e água fresca dos lagos, igapós e florestas inundadas da várzea, onde fica debaixo de árvores, só espreitando a queda de frutos na superfície da água, que ele engole antes que afundem, como o agridoce bacuri, as nozes do jauari, o socoró de sabor adocicado e a azeitona do mato, conhecida como tarumã.

Seus filhotes, os bocós, permanecem nos lagos para se alimentar e crescer, mas estão ameaçados pelo desmatamento que os deixa sem comida, pela pesca predatória feita antes que possam desovar e pelo garimpo, que contamina rios e lagos. Na história em quadrinhos com texto de Paula Bonatto e arte de Haroldo César, a personagem, que é doutora, observa o pescador Sabá devolvendo ao rio os filhotes, com quem conversa.

– Mas o senhor fala mesmo com bocó, seu Sabá?  – ela pergunta incrédula.

– É conversando que a gente se entende, né doutora? Eu tô falando pra eles que eu quero comer eles mais tarde, quando já tiverem desovado.

bocózinho respira, solta borbulhas e diz:

– Ufa! Escapei dessa por pouco.

As lições de manejo da pesca, embora carregadas de beleza e poesia, não são literatura de ficção, mas resultado de milênios de observação e de convivência dos povos do Tapajós, referendados por publicações científicas citadas no final das cartilhas, para consulta de quem quiser saber mais.

Provavelmente o “Pombo”, autor do gol de voleio na Copa da Fifa e, fora dela, comprometido com a vida na floresta, nos rios e até com a sobrevivência das onças no Pantanal, gostaria de ler essas cartilhas, assim como outras do mesmo projeto, que propõem aos ribeirinhos fontes alternativas à pesca, como a criação racional em cativeiro de capivaras da região do Tapajós.

– Verde calmo e silencioso desce o lindo Tapajós. Parece que tem segredos que não quer contar pra nós – canta Chico Malta no meio da Copa Iara. Esses segredos começam agora a ser revelados.

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