Não ver, não ouvir, não falar.
Os únicos que não podem ver está traição são os que não querem vê-la, aqueles a quem não convém vê-la.
Devemos olhar as coisas de frente, chamá-las pelos seus nomes e dizer a verdade aos trabalhadores. (V.I. Lenine, 1915)
Alhelí González Cáceres [*]
A história não é uma simples sucessão de acontecimentos, não se desenvolve de forma linear, por vezes nem sequer em espiral. O desenvolvimento da história assemelha-se mais a um novelo emaranhado, complexo e desenrolado, com avanços e recuos, mas nenhum deles ocorre de forma que não possa ser prevista, pelo menos até certo ponto. Por vezes, sem considerarmos o nosso processo histórico enquanto humanidade, acreditamos que o que acontece neste pequeno espaço de tempo nunca aconteceu antes, que é irrepetível.
É por isso que este artigo não pretende esgotar o debate, mas sim contribuir com elementos que permitam a necessária crítica revolucionária dos processos políticos e económicos que a nossa América tem vivido nas últimas duas décadas, mas particularmente contribuir para a necessária discussão do que a situação política na Venezuela está a expor hoje. O texto chama-se “A Falência da Esquerda Internacional?”, não por capricho, mas pela necessária recuperação de um dos textos mais relevantes do líder da Revolução Bolchevique.
Em “A Falência da Segunda Internacional” [2] Lenine analisou as implicações práticas das decisões tomadas pelos líderes dos partidos social-democratas em relação à Primeira Guerra Mundial, onde decidiram apoiar o desenvolvimento de uma guerra imperialista cujos custos recairiam sobre o conjunto da classe operária internacional, não só em termos dos custos monetários envolvidos em qualquer incursão militar, mas também em termos da luta entre os próprios membros da classe operária em defesa de interesses que lhes são alheios. Que lições nos pode dar esta reflexão de Lenine sobre o que se passa hoje na Venezuela?
É nessa direção que este artigo pretende caminhar, fazendo uso das ferramentas teóricas fornecidas pelo método marxista, para motivar a discussão sobre o carácter do Estado e do projeto político e económico encarnado hoje pelo governo liderado por Nicolás Maduro e, consequentemente, para refletir sobre a posição que aqueles de nós que se afirmam marxistas, comunistas, revolucionários, devem tomar perante o atual processo bolivariano. É por isso que não vamos começar por discutir questões que remetem para o domínio da mera legalidade burguesa, como por exemplo, se houve ou não fraude nas últimas eleições que deram a vitória a Nicolás Maduro, mas sim discutir o que é realmente importante: o que é que o projeto bolivariano encarna hoje e qual deve ser a posição do movimento operário internacional a este respeito.
A aliança da esquerda com o progressismo: rejeição do pensamento crítico e capitulação aos interesses da pequena burguesia
O pensamento vulgar implica uma visão moral e dicotómica da realidade, que só a pode ver e compreender em termos de “bom” ou “mau” e que, com essa premissa, constrói uma narrativa cujo eixo central reside na construção de um inimigo que implica tudo o que é “errado” e que, por isso, deve ser combatido. Isto é visível em cada um dos discursos de Nicolás Maduro, nomeadamente na última conferência de imprensa realizada há dois dias, na qual procurou, através do recurso a analogias bíblicas, justificar o facto de o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) ter exibido aquilo que grande parte do povo venezuelano clama por ver: os registos eleitorais.
Sublinho a questão do pensamento crítico porque implica o desejo de procurar a verdade, implica a dúvida perante afirmações que são apresentadas como verdades irrefutáveis, implica uma reflexão mais profunda, lentidão nas afirmações e, acima de tudo, implica um compromisso inabalável com a vontade de assumir o erro não como uma condenação, mas como uma condição necessária para avançar. Este é o caminho seguido pelos mestres do socialismo científico, em cujo pensamento e práxis política são evidentes a assimilação da dialética e o desenvolvimento do pensamento crítico, que implica movimento e superação.
Na sua aliança com os elementos mais progressistas das burguesias locais, a esquerda capitulou não só em termos de princípios, mas também na prática do que significa a esquerda socialista-comunista, que, nos termos de Marx, deve encarnar a crítica mais implacável de tudo o que existe. No entanto, a auto-intitulada esquerda socialista, e pior, algumas organizações comunistas da região, preferiram fechar os olhos para não ver. Preferiram ignorar e, em muitos casos, tachar de “traidora e funcional ao imperialismo” a classe trabalhadora organizada que, à esquerda e a partir dos interesses de classe que representa, tem levantado críticas profundas e válidas aos regimes progressistas que, nesta segunda vaga, são cada vez menos progressistas. Preferiu-se a solidariedade com os governos, apesar de já não encarnarem o projeto político-econômico que outrora mobilizou o povo trabalhador, e não com a classe trabalhadora que, organizada em maior ou menor grau, é quem encarna e dá corpo aos processos e apoia as políticas de ajustamento que, no caso venezuelano, estão a ser implementadas pelo governo cada vez mais autoritário e reacionário de Nicolás Maduro.
A falácia do discurso anti-imperialista do governo venezuelano
Para os trabalhadores conscientes, o socialismo é uma convicção profunda e não uma cobertura cómoda
a fim de esconder tendências conciliatórias pequeno-burguesas e pequeno-burguesas e de oposição nacionalista.
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I. Lenine (1915)