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segunda-feira, 2 dezembro, 2024

A aula que vive em mim: o motor na canoa

José Bessa Freire

“Se eu ficar te contando histórias o tempo todo, eu não morro” (Patricia Portela – Scheherazade. Flatland. 2006)

O velhinho, já aposentado em duas universidades, não sabe mais viver sem o convívio com alunos, a quem busca quando pode. As doenças da velhice, porém, impõem limitações. Cresce a fila de remédios na mesa de cabeceira. Apesar disso, ele levanta, sacode a poeira do diploma, dá a volta por cima e se fortalece ao relembrar sua formatura de professor normalista naquele longínquo 17 de dezembro de 1965 no Instituto de Educação do Amazonas (IEA), quando dona Elisa pôde dizer com orgulho para a vizinhança:

– Meu filho agora é professor.

Quase 60 anos depois, revê como num filme as primeiras aulas que deu no curso primário do Instituto Christus do Amazonas, convidado por seu professor de Didática, Orígenes Martins, que o convenceu de que docentes são o sal da terra e a luz do mundo. Desde então, o velhinho, combatente entrincheirado na escola, se sente protagonista de uma proeza épica. Cada vez que vai dar aula, com ele entram na sala, tocando dentro de sua cabeça, acordes sublimes das Bachianas Brasileiras nº 5 de Villa-Lobos. E aí pensa com seus botões:

– Não sou eu que vivo, é a aula que vive em mim.

Afinal, qual o conteúdo da aula que habita esse corpo idoso? Monotemático, ele repete sempre as mesmas histórias protagonizadas por indígenas, pela floresta, os bichos, as plantas, os rios, os seres míticos. Foi o que aconteceu em outubro último, quando aceitou convites para conversar com crianças do ensino fundamental de duas escolas de Niterói: a Aldeia Curumim e o Instituto Gay-Lussac. Funcionou como uma injeção de esperança na veia, que faz esquecer qualquer achaque.

Na Aldeia Curumim

A escola com maior área verde de Niterói foi criada em 1973 no meio de um bosque e, desde então, mantém uma troca de conhecimentos, saberes e afetos como explica seu gestor Marcelo Cantarino Gonçalves. Num sábado que prometia chuva, a Aldeia Curumim, realizou sua 45º Feira do Livro, com o lançamento de Voa, Menina! escrito e ilustrado por Ingrid Macieira, professora de arte, que incita as crianças a voarem na imaginação através da leitura.

Curumins e cunhantãs voaram também, quando folhearam alguns dos 87 livros, quase todos de literatura indígena, levados pelo avô da Maia e da Ana que, em uma exposição improvisada, espalhou os livros em esteiras no chão da biblioteca. O evento começou com o coral de crianças cantando Vida de moleque é vida boa seguido de oficina criativa. Depois veio a contação de histórias, com reflexões sobre a oralidade, a escrita e a leitura, que em tempo de crise como o que vivemos, é um ato de resistência. Ele, porém, advertiu:

– A escola ensina a ler, mas nem sempre ensina a não-ler. Posto que a vida é curta, quando você lê o que não engrandece e nem dá prazer, além de correr o risco de se intoxicar com veneno intelectual, desperdiça o tempo que podia ser dedicado à leitura de um texto capaz de fazer cócegas na inteligência e no coração do leitor. Portanto, o não-ler não é atitude passiva, é uma opção ativa, pois implica em saber avaliar e selecionar a leitura.

– O avô da Maia alertou que a leitura tem que ser bem escolhida – reforçou no facebook a diretora da Aldeia Curumim, Luciana Soares Gonçalves.

Uma versão da Sogra do Jacamim – narrativa recolhida pelo botânico Barbosa Rodrigues publicada em seu livro Poranduba Amazonense, em 1890, serviu de base para refletir sobre o papel da oralidade em sociedades independentes da escrita alfabética. Trata-se de um divertido minitratado de ornitologia amazônica ao alcance de qualquer criança.

Curiosos por natureza

A memória do velhinho costuma voar para longe como um passarinho. Esquece muita coisa. Mas nunca deslembra das histórias, como aquelas do jabuti, do jacaré e da onça recolhidas em língua nheengatu por Couto de Magalhães, em 1865, que ensinam como a inteligência pode vencer a força e como lutar contra inimigos fortes que querem te devorar.

Essas mesmas narrativas foram retomadas no encontro com as crianças do 2º ano do Ensino Fundamental do Colégio Gay-Lussac, que desenvolve o projeto “Curiosos por Natureza”, no qual cada turma escolhe um tema para aprofundá-lo ao longo do ano. A turma da professora Marlúcia, onde estuda Mária Bárbara, sobrinha-neta do velhinho aposentado, escolheu para 2024 “Uma aventura na Amazônia”. Sendo assim, assim sendo, lá foi ele gastar o seu latim.

As crianças das duas escolas ouviram a história O Brilho da Floresta vivida em uma noite na selva amazônica por um indígena Baniwa, uma linguista e dois pesquisadores especializados em cogumelos bioluminescentes, que brilham como pirilampos. Nessa história, a relação com a floresta nos oferece uma metodologia para apagar imagens preconceituosas sobre os povos que nela moram.

Vitória, a neta de 10 anos que estuda na escola Júlia Cortines, acompanhou o avô nessa aventura narrativa e contou uma história escrita e ilustrada por ela.  As crianças do Gay-Lussac também interagiram com os livros, entre eles, os Cuentos Pintados do Peru, os Territórios Narrados da Colômbia, as Narrativas em cabaças do mundo andino equatoriano, as Narrativas Gráficas do Brasil, os livros de Ailton Krenak, de Eliane Potiguara, de Márcia Kambeba, de Ademario Payayá e de tantos outros autores indígenas.

Brincadeira indígena

Cabaças que contam histórias, pajé que fala com árvores, floresta com cogumelos brilhantes – esses relatos despertaram o interesse das crianças, que queriam saber mais sobre como impedir o desmatamento e as queimadas. Uma escola em Niteroi, que tomou partido em defesa da natureza e que incentiva o amor aos seus habitantes, contrasta com a “pedagogia” predatória do Colégio Militar de Tocantins que, ironicamente no coração da Amazônia, organizou uma marcha de crianças e adolescentes dirigida por um PM, insufladas com gritos de ódio: “Se eu não te matar, eu vou te prender”, como mostra vídeo recente divulgado nas redes sociais. Modelo de escola sem partido?

No final do encontro, os alunos do Gay-Lussac, curiosos por natureza, queriam saber sobre as brincadeiras indígenas. O velhinho lembrou de uma, que costumava brincar em sua infância na pracinha da Bandeira Branca, no bairro de Aparecida, em Manaus, depois do pôr do sol, e que somente décadas depois descobriu sua origem ao ler o livro – olha aí a leitura – Brinquedos de nossos índios. É o jogo do Uiraçu, o gavião-real, do povo Makuxi, de Roraima, que quer comer a galinha e seus pintinhos.

O menino maior escolhido para ser o gavião fica em pé na frente da menina maior – a galinha, atrás de quem estão, em fila, os pintinhos organizados por tamanho decrescente, compondo um “trenzinho”, cada um com as mãos na cintura do que está na frente. Começa então uma dança, o gavião se move de um lado ao outro gritando:

– Pĩũ! Pĩũ! (Estou com fome) – na versão em língua makuxi recolhida pelo etnólogo alemão Kock-Grünberg, em 1912. Na variante de Manaus, o gavião esbraveja:

– Quero comer galinha assada.

A galinha e os pintinhos acompanham o movimento e respondem em coro:

– Não há de comer, não há de comer.

O gavião consegue puxar a última criança da fila e coloca atrás dele. A brincadeira prossegue e ele vai sequestrando um por um, sempre o último pintinho.  Quando a galinha fica sozinha, o jogo termina.

Pois não é que, depois de apresentarem um canto que fala dos bichinhos e das árvores da floresta amazônica, a turma do 2º ano pediu para encenarem a brincadeira? Como o velho era a criança maior, foi escolhido para ser o gavião e pagou mico requebrando meio desajeitado. A cena, para vergonha dele, foi filmada.

O motor na canoa

No final, o velho foi consolado com a lembrança do poema Educar do escritor espanhol Gabriel Celaya:

Educar é o mesmo

que colocar um motor em uma canoa.

É preciso medir, pesar, equilibrar…

… e pôr tudo em movimento.

Mas para isso,

a gente tem que ter na alma

um pouco de marinheiro e de pirata

Um pouco de poeta

E um quilo e meio de paciência concentrada.

Mas é gratificante sonhar, enquanto a gente navega,

que essa canoa, essa criança

irá muito longe por mares nunca dantes navegados.

Sonhar que ela transportará

a carga de nossas palavras

por povoados distantes, ilhas longínquas,

Sonhar que, quando um dia

A nossa própria barca

dormir o sono eterno,

nossa bandeira desfraldada

seguirá em novas canoas.

P.S. 1 – O velhinho deu outras aulas no ensino fundamental. Em Niterói, contou histórias nas escolas municipais Júlia Cortines e Anísio Teixeira de tempo integral, onde interagiu com 50 professores. No Rio: na Oga Mitá, na Edem – Escola Dinâmica do Ensino Moderno, na Gente Miúda (Educação Infantil) e no CEC – Centro Escolar Copacabana. Durante a epidemia da covid, conversou sobre música indígena, via zoom, com 76 alunos de 8 e 9 anos do Instituto Gay-Lussac. Tudo dentro do esquema do 0800. Nenhuma escola cobrou por contribuir para curar o velhinho de seus achaques.

P.S. 2 – Na França, existe um projeto que consiste em convocar professoras aposentadas para contar histórias na escola, teatralizando as narrativas e recuperando a memória oral em uma sociedade digitalizada. No Brasil, muitas escolas indígenas também estão chamando os velhos para apoiá-los em sala de aula com os seus saberes.

Créditos: Fotos de Flávia Bessa Respeita Sadocco e Maria José Freire.

Referências

  1. Theodor Koch-GrünbergO jogo do Uiraçu recolhido em 1912, in CNPI: Brinquedos de nossos índios. Série Infantil nº 1. Ministério da Agricultura. Rio de Janeiro. 1958.

  2. Copa do Mundo: o jogo indígena na escola Oga Mitá – https://www.taquiprati.com.br/cronica/1402-copa-do-mundo-o-jogo-indigena-na-escola-oga-mita

  3. Como nós, velhos, brincávamos: uma aula na EDEM – https://www.taquiprati.com.br/cronica/1331-como-nos-velhos-brincavamos-uma-aula-na-edem

  4. A escola que canta: tire seu sorriso do caminho – https://www.taquiprati.com.br/cronica/263-a-escola-que-canta-tire-seu-sorriso-do-caminho

  5. Contra a leitura – https://www.taquiprati.com.br/cronica/57-contra-a-leitura-version-en-espa

  6. No mundo em frangalhos, a leitura – https://www.taquiprati.com.br/cronica/1733-no-mundo-em-frangalhos-a-leitura

  7. Diário de um livreiro: o sebo dos sebos – https://www.taquiprati.com.br/cronica/1734-diario-de-um-livreiro-o-sebo-dos-sebos

  8. Três porquinhos: oralidade e escrita em língua indígena – https://www.taquiprati.com.br/busca/?nmTermoBusca=leitura

  9. Txima: ensinando a conversar com a floresta – https://www.taquiprati.com.br/cronica/1756-txima-ensinando-a-conversar-com-a-floresta

  10. Torero e as bibliotecas fantásticas – https://www.taquiprati.com.br/cronica/1739-torero-e-as-bibliotecas-fantasticas

  11. Um catador de espinhas: Ailton Krenak na ABL – https://www.taquiprati.com.br/cronica/1738-um-catador-de-espinhas-ailton-krenak-na-abl

  12. A imagem dos indígenas na escola: o brilho da floresta – https://www.taquiprati.com.br/cronica/1744-a-imagem-dos-indigenas-na-escola-o-brilho-da-floresta

  13.  A sogra do jacamim em busca da beleza – https://www.taquiprati.com.br/cronica/882-a-sogra-do-jacamim-em-busca-da-beleza

  14. Cutucando onça com vara curta: os índios e as políticas culturais. https://taquiprati.com.br/cronica/1543-cutucando-onca-com-vara-curta-os-indios-e-as-politicas-culturais.

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