Carlos Aznárez é diretor da revista Resumen Latinoamericano, prestigiado meio de comunicação alternativo argentino, que, ultrapassando as fronteiras do Rio da Prata, atua como um dos principais veículos contra-hegemônicos do continente latino-americano. Além da ingerência estadunidense, Aznárez ainda encontra outro adversário em sua militância: o Sionismo, que, através de uma instituição que representa politicamente a comunidade judia na Argentina, DAIA (Delegação de Associações Israelitas Argentinas – DAIA), move uma ação judicial contra o jornalista defensor da causa palestina.
Mídia internacional destaca a ação judicial movida por uma instituição sino-argentina contra o jornalista e analista político Carlos Aznárez. Foto: HispanTV |
Em relação à política local, foco desta primeira parte da entrevista exclusiva concedida à Adital, Carlos Aznárez acredita que, antes de mais nada, deve-se deixar claro que os governos Kirchner, na Argentina, a exemplo de outros no continente, não representaram uma ruptura do modelo. “É certo que o kirchnerismo representou, sobretudo em seu início, uma mudança importante […] O grande problema é que tanto essa experiência política como outras muito parecidas, que se instalaram no continente […], estão atravessadas, todas elas, por numerosas contradições, sobretudo, por uma clara decisão de não romper com o capitalismo”.
Para Aznárez, a união de “progressismo” e “capitalismo” levou a um profundo desgaste da centro-esquerda argentina. “Primeiro, sua aposta em consolidar uma proposta, em que o consumo fosse algo mais do que prioritário, e o capitalismo ‘suave’ ou ‘humano’ fosse a trincheira a ser defendida”. Outras razões para o desgaste, segundo o jornalista, envolveram a burocracia do Partido Justicialista (PJ), a quem os Kirchner são filiados (“uma instância burocrática e, geralmente, colaboracionista, decorada com posições macarthistas [em referência à prática política que se caracteriza pelo sectarismo, inspirada no movimento dirigido pelo senador estadunidense Joseph Raymond McCarthy], com uma clara tendência à corrupção”), e sua relação “com o pior da burocracia sindical argentina”. “Não é casualidade que, atualmente, com o vice-reinado macrista [em referência ao atual presidente, Mauricio Macri], muitos dos seus melhores aliados são políticos do PJ e do sindicalismo pactista e entreguista”.
Em resumo, em meio a tantas contradições, para Carlos Aznárez, não podemos falar de uma vitória de Macri, mas, sim, “de uma derrota do kirchnerismo”. “Scioli foi de toda forma um péssimo candidato […] Justamente, um governador que havia tido uma gestão de regular para baixo, e que flertava com os Estados Unidos e Israel”, desabafa.
Quanto ao atual mandatário da Casa Rosada, Mauricio Macri, Carlos Aznárez não poupa críticas. “Nos anos em que o país era governado por Carlos Menem, o atual presidente, juntamente com seu pai, Franco Macri, eram os melhores representantes da chamada ‘Pátria contratista’ ou ‘Pátria financeira’ […] [O grupo Macri] obteve a concessão por 30 anos [do Correio Argentino SA], com a promessa de pagar ao Estado uma quantia semestral de $ 51,6 milhões. Entretanto, em 1999, deixou de pagar […] A dívida do Grupo Macri com o Estado chega aos 659 milhões de dólares, sem levar em conta os juros”.
Confira a primeira parte da entrevista.
Carlos Aznárez, fotografado em um momento de descontração. Foto: revistasudestada.com.ar |
Adital: Senhor Aznárez, a Argentina viveu boa parte do século XX como um dos países mais prósperos do mundo, mas virou o século enfrentando a maior crise econômica e social já vista. Apesar de imerso em muitas contradições, o kircherismo proveu o país durante 12 anos de estabilidade política e econômica, a qual possibilitou aos argentinos, principalmente para as classes mais baixas, repor parte do que foi perdido nas últimas décadas. Diante desse contexto maior, ultrapassando a esfera da última eleição e observando os últimos acontecimentos da vida política latino-americana, pergunto-lhe: por que [Daniel] Scioli não foi o eleito? Por que foi rompido o ciclo progressista na Argentina?
É certo que o kirchnerismo representou, sobretudo em seu início, uma mudança importante em relação aos governos anteriores, que se sucederam após a última ditadura militar. O grande problema é que tanto essa experiência política (ligada, notoriamente, ao peronismo) como outras muito parecidas, que se instalaram no continente e que conhecemos com o nome de “progressismo”, estão atravessadas, todas elas, por numerosas contradições, mas, sobretudo, por uma clara decisão de não romper com o capitalismo. Mas ainda tratam de emoldurá-lo e oferecê-lo como a melhor possibilidade de sobreviver em tempos convulsos. Desta maneira, esses governos (com a exceção de Cuba, Venezuela, Bolívia e, em menor escala, Equador e Nicarágua) não frearam nem criticaram a invasão abusiva das multinacionais. Pelo contrário, geraram políticas ligadas intimamente ao extrativismo e aos agronegócios, não distribuíram a riqueza nem tampouco avançaram na industrialização, encostando-se em grandes propostas assistencialistas, que, se bem abrigam, em primeiro plano, setores populares muito necessitados, logo se convertem em um bumerangue, já que derivam em “adesões clientelares”, despojadas de todo verniz ideológico.
Por outra parte, é verdade que vários desses governos progressistas mantiveram posições avançadas em matéria de política exterior, com enfrentamentos mais ou menos visíveis contra o imperialismo, mas, por sua vez, atuaram com excessiva timidez frente às primeiras ofensivas da direita latino-americana e internacional. Em todo caso, a perda irreparável deste furacão revolucionário chamado Hugo Chávez influenciou enormemente na hora de se concretizarem políticas de integração regional. É certo que Chávez impulsionou a ALBA [Aliança Bolivariana das Américas], a Unasul [União de Nações Sul-Americanas] e a Celac [Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos], e tratou de reviver o Mercosul [Mercado Comum do Sul], mas, uma vez que ocorreu seu falecimento, esses organismos começaram a fraquejar, a perderem conteúdo.
Toda essa introdução nos ajuda a entendermos a Argentina, onde certa soberba da equipe governante não imaginava, pelo menos no início da batalha eleitoral, que a direita podia arrebatar-lhes o governo. Assim, Cristina K. [Kirchner], que não se animou ou não quis reformar a Constituição para tentar uma [nova] reeleição, em contrapartida se deu ao luxo de ir subindo e baixando a dedo possíveis candidatos a presidente, deixando Daniel Scioli como escolhido. Justamente, um governador que havia tido uma gestão de regular para baixo, e que flertava com os Estados Unidos e Israel, algo comum aos três candidatos com maior percentagem de votos: Macri, [Sergio] Massa e Scioli. Por outro lado, é esse mesmo Scioli que, em nível local [Província de Buenos Aires], pretendia solucionar os conflitos e o tema da insegurança, injetando milhares de policiais (20 mil), que, paradoxalmente, hoje, utilizará a nova governadora direitista [María Eugenia Vidal]. Scioli foi, de toda forma, um péssimo candidato. Mas não foi o único, já que CFK [Cristina Fernández de Kirchner] escolheu para as eleições da importantíssima Província de Buenos Aires (Aníbal Fernández), quase pior que o anterior. De fato, já no primeiro turno, foi derrotado, pela decisão, inclusive, de muitos eleitores kirchneristas, que não estavam dispostos a engolirem semelhante sapo.
Por tudo isso, não é que Macri tenha ganhado, mas, sim, perdeu o kirchnerismo. De fato, depois do triunfo de Scioli por uma escassa margem, no primeiro turno, tanto Cristina como seus grupos juvenis mais leais (La Cámpora, entre outros) não se dispuseram a “militarem” como as circunstâncias exigiam. Frente a esse panorama, e à sensação de que, caso perdesse, viria um governo como este atual, de características neoliberais e totalitárias, muitos cidadãos e cidadãs decidiram pôr a campanha no ombro e se autoconvocaram para tentarem evitar o que, logo, lamentavelmente, sucedeu.
O progressismo argentino, como outros tantos, caiu em um profundo abismo, por várias razões de peso: a primeira, sua aposta em consolidar uma proposta em que o consumo fora algo mais do que prioritário; e o capitalismo “suave” ou “humano” fosse a trincheira a defender.
Por outro lado, ao contrário do que, no início, planejava Néstor Kirchner, sobre a aplicação de uma ideia de construção política transversal, na qual se inseriram, além do peronismo, outros setores políticos de esquerda e populares, acabou sendo deixada de lado esta proposta, e o mesmo Kirchner se dedicou a fortalecer o muito desvalorizado Partido Justicialista (PJ). Uma instância burocrática e, geralmente, colaboracionista, decorada com posições macarthistas e com uma clara tendência à corrupção da maioria dos seus quadros dirigentes. O mesmo ocorreu naquele momento, nas relações do kirchnerismo, com o pior da burocracia sindical argentina. Não é casualidade que, atualmente, com o vice-reinado macrista, muitos dos seus melhores aliados são políticos do PJ e do sindicalismo pactista e entreguista.
O candidato kirchnerista derrotado, Daniel Scioli, juntamente com o ex-presidente neoliberal Carlos Menem. A aproximação entre os dois foi uma das razões que levaram ao distanciamento de parte da militância. Foto: Reprodução. |
Adital: No Brasil, Macri foi apresentado como um empresário de sucesso, como a pessoa que fora eleita para “salvar” a Argentina. Sua forte campanha de marketing não dizia muito sobre o seu futuro governo (Cambiemos? O quê?). Afinal, quem é o Mauricio Macri que não foi apresentado aos seus eleitores?
Mauricio Macri representa o mais extremo da direita argentina e dos planos econômicos ligados ao capitalismo selvagem. Nos anos em que o país era governado por Carlos Menem, o atual presidente, juntamente com seu pai, Franco Macri, eram os melhores representantes da chamada “Pátria contratista” ou “Pátria financeira”, termos utilizados para definir um grupo de grandes empresas provedoras do Estado, que obtinham seus lucros de grandes contratos com o Estado, das privatizações, da especulação e dos subsídios, sempre à sombra do poder político. Esse modo de agir de pai e filho, eles haviam começado durante a ditadura militar, através do grupo Socma, que foi um dos principais lobistas que atiçaram fogo e se favoreceram com a liquidação* dos passivos empresariais; e então, com as democracias falidas, seguiram aumentando suas riquezas. Através da Itron, a holding Macri obteve, nos anos 1990, a década menemista, a administração dos recursos do governo da cidade de Buenos Aires, através da UTE-Rentas. A empresa ficou com o negócio da emissão de faturas da ‘IpVL’ (Iluminação, varrimento e limpeza públicos) e do imposto automotor. Ao grupo Macri se agregou, em 1997, a privatização do serviço postal, em uma das últimas operações consumada pelo ex-presidente Carlos Menem. Naquele momento, o grupo obteve a concessão por 30 anos, com a promessa de pagar ao Estado um valor semestral de $ 51,6 milhões. Entretanto, em 1999, deixou de pagar. Em setembro de 2001, o Correo Argentino SA entrou em concordata e deixou uma dívida de $ 900 milhões. A dívida do grupo Macri com o Estado se eleva aos 659 milhões de dólares, sem levar em conta os juros.
Para além de enumerar alguns dos negócios em que está incluída a família Macri, ao longo da sua história na Argentina, o preocupante é que, a partir de 2007, quando desembarcou o herdeiro Mauricio, na cidade de Buenos Aires, o clã deixou de ser um simples contratista do Estado para converter-se em parte do próprio Estado. Agora, com sua chegada ao governo nacional, esse poder foi multiplicado.
Não é casualidade que Mauricio promova o pagamento dos fundos abutres, que pretendem assaltar a Argentina, nem que se sinta identificado com o Partido Popular da Espanha e com a oposição ao chavismo, na Venezuela. Todos coincidem com a necessidade de se avançar para um modelo de sociedade, na qual o partido que está no poder já não reflita os interesses do establishment, mas que, evitando riscos, seja um representante direto de quem esteja a cargo da administração do país.
*manobra contábil comandada em 1982 pelo então ministro da economia, Domingo Cavallo. Consistia que empresas argentinas endividadas em dólares no exterior pudessem adquirir a moeda norte-americana a um valor mais baixo do que o preço de mercado, sendo a diferença paga pelo erário público.
Paulo Emanuel Lopes
Colabora com ADITAL.