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Heba Ayyad*
A Palestina não possui prisioneiros nas prisões da ocupação — nem mesmo crianças, mulheres ou doentes —, muito menos os corpos de palestinos sequestrados e mantidos pela ocupação há anos. Essa é a impressão transmitida pelo discurso oficial ocidental sobre os acontecimentos em Gaza e os últimos desdobramentos da questão palestina. Há dois anos, um coro de países, governos e chancelarias tem falado em tons quase idênticos sobre “reféns” que devem ser libertados — ou seja, exclusivamente israelenses.
Ignorância Ocidental sobre a Questão dos Prisioneiros Palestinos
O centralismo ocidental constrói sua imagem preferida do conflito com base em preconceitos. Um dos elementos dessa imagem fabricada — imposta por uma autoridade central sobre o discurso internacional — é a exclusão dos prisioneiros e dos corpos palestinos mantidos pela ocupação israelense. As únicas pessoas mencionadas de forma insistente nesse contexto são os reféns israelenses vivos ou os corpos retidos na Faixa de Gaza.
Isso não surpreende, pois o completo descaso em relação à questão dos prisioneiros — homens e mulheres — nas prisões da ocupação permanece uma característica crônica da retórica e das posições atribuídas ao centralismo ocidental e às suas distorções.
Uma consequência desse descaso é que a ocupação israelense jamais precisou enfrentar qualquer culpa ou responsabilização por parte das capitais ocidentais quanto a essa questão particularmente sensível — mesmo com suas prisões e campos superlotados de prisioneiros palestinos e árabes —, enquanto as medidas repressivas contra eles se intensificam a cada período.
Os comentários oficiais ocidentais silenciaram diante das cenas de abuso e brutalidade que emergiram das prisões e centros de detenção israelenses durante a atual guerra de extermínio. Por outro lado, houve intensa comoção em relação aos oficiais e soldados israelenses capturados pela resistência palestina, evocando o “sofrimento de suas famílias” e a “dor de seus entes queridos”, enquanto o prisioneiro palestino sequer é mencionado — como se essa retórica e esse posicionamento simplesmente o apagassem, juntamente com suas famílias e a comunidade ao seu redor.
A questão, porém, não termina aí. À luz da carga emocional presente nas declarações e súplicas oficiais ocidentais sobre os prisioneiros e detidos israelenses na Faixa de Gaza, a compaixão foi suspensa até mesmo para as crianças, mães e mulheres que definham nas notórias prisões e campos da ocupação. Médicos, paramédicos e jornalistas palestinos — amplamente conhecidos no mundo por seus nomes e rostos — quase não receberam atenção nessas plataformas oficiais desde que também foram sequestrados e lançados em prisões e centros de detenção israelenses.
Acordos de Troca: Uma Oportunidade para Expor o Preconceito
Os acordos de troca de prisioneiros oferecem ao público uma oportunidade singular de revelar essa abordagem seletiva da compaixão — uma compaixão que enxerga com um único olhar e direciona as emoções em apenas uma direção. Esses acordos expõem a profundidade do preconceito que sustenta o discurso e as posições ocidentais, inclusive aquelas reproduzidas por plataformas árabes que, por vezes, ecoam de forma reflexa as mesmas narrativas.
O último acordo de troca, realizado em outubro de 2025, assim como os anteriores, estipulou a libertação de crianças e mulheres das prisões e campos israelenses. O documento do acordo inclui detalhes sobre esses indivíduos, mas eles foram completamente excluídos das narrativas oficiais ocidentais de solidariedade, que ignoram por completo a questão dos prisioneiros palestinos e os negligenciam, mesmo quando se trata de mulheres, crianças, doentes ou idosos.
O caminho para essa indiferença é longo. A insistência crônica em ignorar a questão dos prisioneiros palestinos leva, inevitavelmente, à omissão de suas implicações, repercussões e evidências sucessivas. Comentaristas nas capitais ocidentais não ousam expressar tristeza ou preocupação com a condição deplorável em que prisioneiros — homens e mulheres — emergem das prisões da ocupação. Tal silêncio revela as terríveis condições de detenção, tortura e intimidação às quais foram submetidos, resultando em rostos pálidos, corpos emaciados, amputações e aparências profundamente alteradas. Entre eles, encontram-se menores sequestrados pelo exército de ocupação de suas famílias, escolas, playgrounds ou até mesmo de suas casas destruídas.
Preconceitos na Questão dos Cadáveres
Os preconceitos crônicos em relação aos prisioneiros também se estendem à questão dos cadáveres. A crescente “questão dos corpos”, desde o cessar-fogo de outubro de 2025, revela outro exemplo desses vieses inerentes à retórica e às posições das capitais ocidentais decisórias.
Enquanto os palestinos na Faixa de Gaza travam árduos esforços para recuperar milhares de corpos em decomposição presos sob os escombros de prédios destruídos pelos bombardeios israelenses — ou para alcançar corpos espalhados à beira das estradas, devorados por cães vadios em locais perigosos após bombardeios e ataques de atiradores israelenses —, as declarações e relatórios ocidentais demonstram pouco interesse por qualquer coisa que não seja a recuperação de alguns corpos de oficiais e soldados israelenses mantidos em cativeiro na Faixa.
O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, demonstrou repetidamente uma preocupação desmedida com essas pessoas em inúmeras aparições na mídia, proferindo comentários carregados de emoção sobre os corpos de israelenses mantidos em Gaza. Ele chegou a relatar detalhes de suas conversas com familiares, denunciando o que descreve como o “comportamento bárbaro e bizarro” de ocultar corpos.
Trump, no entanto, não examina suas próprias declarações arbitrárias, nem considera o fato de que o sequestro de corpos é, na realidade, uma prática israelense crônica, aplicada contra inúmeros homens e mulheres palestinos ao longo de décadas. A única forma de libertar esses corpos costuma ocorrer por meio de acordos de troca ou, em alguns casos, sob intensa pressão jurídica e de organizações de direitos humanos.
Ainda assim, a culpa recai, em última instância, sobre os palestinos — embora os acordos de troca de corpos sejam a única via que a ocupação oferece para liberar os restos mortais de prisioneiros palestinos sob sua custódia. Situações semelhantes já ocorreram em diversas trocas, nas quais as autoridades de ocupação foram forçadas a liberar os corpos de homens e mulheres palestinos que, finalmente, puderam receber um enterro digno.
Contexto do Preconceito na Questão dos Prisioneiros e Cadáveres
O desrespeito profundamente arraigado em relação à questão dos prisioneiros palestinos e à dos corpos mantidos pela ocupação é resultado de preconceitos complexos que remontam a uma raiz fundamental: a tradição ocidental de parcialidade estrutural diante da ocupação israelense. Esse favoritismo crônico, sustentado em detrimento da justiça e da imparcialidade, reflete a capacidade do centralismo ocidental de impor sua narrativa à comunidade internacional — mesmo quando essa narrativa está saturada de distorções e de cumplicidade com a ocupação israelense.
No discurso oficial ocidental, um oficial israelense ou soldado da ocupação que é arrancado de seu posto de comando ou arrastado para fora de seu tanque torna-se um “refém”: um ativo confiável e autossuficiente, merecedor de simpatia e lamentações. No entanto, as legiões de prisioneiros e prisioneiras nas prisões da ocupação não são consideradas dignas de solidariedade, compaixão ou sequer de uma menção passageira.
Esse viés flagrante revela uma posição fundamentalmente oposta à luta e aos sacrifícios do povo palestino — representado pelos prisioneiros —, mesmo que muitos deles sejam mantidos em cativeiro ilegalmente ou sem julgamento.
O gosto oficial ocidental não favorece a imagem dos palestinos como combatentes ou desafiadores da ocupação, seja dentro ou fora do cativeiro. O palestino que desejam ver não se opõe à ocupação, não a confronta nem ergue o sinal da vitória. Ele não convoca o mundo a boicotar a ocupação, a desinvestir nela ou a impor sanções. Espera-se que condene o “terrorismo” (resistência), renuncie à “incitação” (discurso nacional e postura de libertação) e expresse constantemente seu profundo compromisso com a coexistência pacífica com o poder hegemônico da ocupação.
Não é de se admirar que a situação tenha chegado ao ponto de intensa pressão ocidental sobre a Autoridade Palestina, chantageando-a para suspender os benefícios sociais destinados às famílias dos prisioneiros e incluindo essa exigência entre os pré-requisitos para a chamada “reforma da Autoridade”.
É digno de nota que as capitais decisórias ocidentais se afastam de retratar o Estado de ocupação israelense como o perpetrador, mesmo quando expressam preocupação com algumas das consequências de suas ações. No entanto, essas mesmas capitais não hesitam, por vezes, em culpar a vítima palestina e responsabilizá-la pelos fardos impostos pela própria ocupação.
Os discursos e posições oficiais ocidentais evitam direcionar qualquer crítica ou culpa ao exército de ocupação israelense — ou ao seu Estado e governo, aliás. Isso resultou, por exemplo, em uma recusa sistemática de criticar o comportamento do exército e das autoridades prisionais, bem como de condenar suas violações documentadas e práticas visíveis.
Tal postura pode ajudar a explicar o fenômeno de atribuir a culpa exclusivamente aos colonos, isentando os soldados israelenses de qualquer responsabilização. Nesses discursos e posicionamentos, o colono é dissociado do Estado que o patrocina, das autoridades que o armam e do exército que o protege. Ele é removido de seu contexto e retratado como alguém que executa seus ataques terroristas e agressões expansionistas de forma independente, alheia ao controle do “Estado democrático e de suas autoridades.
O exército desse mesmo Estado continua a gozar de uma imunidade inabalável no discurso das capitais ocidentais decisórias, mesmo ao perpetrar genocídio e uma campanha de limpeza étnica que o mundo inteiro pode testemunhar em seus dispositivos móveis.
Essas capitais ocidentais não apontaram o dedo da culpa para o exército de ocupação ao longo dos dois anos desta brutal guerra de extermínio — muito menos para seus antecessores. Além disso, a maioria dos chefes de Estado e de governo, bem como ministros das Relações Exteriores de ambos os lados do Atlântico, evitou proferir os termos “genocídio” ou, mais precisamente, “crimes de guerra”. Esses vocábulos “proibidos” transfeririam a responsabilidade pelos horrores visíveis para o exército de ocupação, seu governo e seu Estado — algo que o coro ocidental dominante não está disposto a tolerar.
Em vez de culpar o governo fascista de colonos que, juntamente com seu exército moderno e sofisticado, comete um genocídio transmitido ao vivo, no máximo as críticas foram direcionadas a apenas dois ministros, enquanto o primeiro-ministro e o ministro da Guerra permaneceram isentos de qualquer censura.
Não é segredo que esses dois ministros obsessivos são alvos de críticas recorrentes dentro da própria vida política israelense, e que as críticas vindas do exterior, de qualquer forma, acrescentam pouca substância nova.
A ameaça de “sanções” limitadas e seletivas contra o ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, o ministro da Defesa, Itamar Ben-Gvir, e alguns líderes das gangues de colonos, na realidade, oculta uma insistência persistente em evitar que as posições ocidentais causem qualquer dano ao governo israelense, à sua liderança, ao seu exército e às instituições do Estado ocupante — bem como ao empreendimento de colonização e ao genocídio —, apesar de todas as atrocidades sistemáticas cometidas sob o olhar do mundo.
Os países ocidentais, em geral, mantiveram-se fiéis a essa abordagem, com exceção de algumas capitais, como Madri, Dublin e Liubliana. A recente onda de reconhecimentos do Estado da Palestina não alterou a essência dessas posições, sobretudo porque não foi acompanhada de medidas punitivas sérias contra a ocupação ou de qualquer disposição real de apoiar o povo palestino na conquista de seus direitos inalienáveis.
Santidade Simbólica e Imunidade Moral
A insistência do discurso ocidentalista em invocar o termo “Estado” em referência à ocupação colonial da Palestina confere-lhe uma imunidade moral, elevando-o acima de qualquer crítica. Isso se deve às percepções europeias e ocidentais profundamente arraigadas, que tendem a glorificar o conceito de Estado e a atribuir-lhe uma santidade simbólica, independentemente de suas práticas opressivas e ilegítimas.
O que amplia a aura de santidade conferida a esse Estado ocupante é o fato de ele estar frequentemente envolto em uma narrativa histórica saturada de referências religiosas, reforçada ainda mais pela representação da “vítima excepcional” ao longo da história.
As demonstrações de reverência avassaladora por parte de líderes ocidentais diante do Muro das Lamentações, usando a kipá, representam uma expressão simbólica e visual da aura fabricada de santidade excepcional projetada sobre esse avançado Estado colonial — o autodenominado “Estado de Israel”.
Em última análise, o Estado ocupante, bem como seus órgãos e instituições, jamais são considerados culpados — mesmo quando cometem atrocidades, violam o direito internacional e são denunciados em tribunais internacionais. Pelo contrário, são frequentemente glorificados como democráticos, modernos e progressistas.
Alguns podem se recordar, por exemplo, de que, cinco meses antes do início da brutal guerra de extermínio, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, divulgou um vídeo efusivamente elogioso a esse Estado por ocasião do 75º aniversário da Nakba Palestina, que a ocupação chama de “Dia da Independência”. Ela o exaltou em termos coloniais clássicos — falando sobre “espalhar a civilização”, “construir cidades”, “fertilizar desertos” e “drenar pântanos” — sem fazer qualquer referência à causa palestina ou à dor e ao sofrimento de seu povo.
Essa imagem fabricada do Estado ocupante omite completamente seus crimes sistemáticos e suas violações reiteradas, bem como o destino de suas vítimas, que definham em prisões, centros de detenção e campos ainda mais infames. Tampouco menciona o vasto número de corpos palestinos que mantém sob custódia, desprovidos de dignidade humana e das garantias previstas pelo direito internacional.
*Heba Ayyad é jornalista internacional e escritora palestina brasileira