Daniel Vaz de Carvalho
1 – O recomeço da História
A social-democracia de Gorbatchov e o neoliberalismo de Ieltsin e seus comparsas acabaram com a União Soviética, que desprezavam ou mesmo odiavam. Apaixonados pelo capitalismo não entendiam que mesmo sendo apenas Rússia ainda era demais para o império americano. Tinha que ser quebrada em pedaços, frágeis e antagónicos.
O que aconteceu na Jugoslávia, além do caos a que a Rússia tinha chegado, deu a Ieltsin momentos de lucidez percebendo que afinal o imperialismo existia, aceitando vir a ser substituído – talvez com pressão exercida pelos ex-KGB – por Vladimir Putin, diretor do Serviço Federal de Segurança. A História recomeçava aqui, pouco importando os louros – e lucros – do sr. Fukuyama, um dos teóricos (?!) neocons.
As preocupações tanto da USAID como da NED com a democracia (é como lhe chamam) na Ucrânia e na Rússia foram constantes. Em 1989, com o fortalecimento dos laços soviético-americanos conduzidos por Gorbachov, a NED gastou uns 553 mil dólares para “Americanos pelos Direitos Humanos na Ucrânia”, “Comité Nacional Conjunto Báltico-Americano” e outros grupos envolvidos em campanhas para desmantelar a União Soviética.
Por que falhou depois a “revolução colorida” na Rússia? Uma “revolução” que tomava forma em manifestações “contra a corrupção” e o “totalitarismo”? Por detrás disto o objetivo era outro, como se viu na Ucrânia sobretudo após o golpe de 2014. Pode dizer-se que o passado soviético teve muito peso, porém quando o governo tomou medidas para expulsar ONGs financiadas por países estrangeiros e que cidadãos que recebessem dinheiro de agências estrangeiras serem obrigados a apresentarem-se nos seus textos como “agentes estrangeiros” o poder de intervenção da USAID, NED, etc, foi praticamente anulado.
O saldo das ações destas organizações, foi profundamente negativo para o império. Depois de milhares de milhões desperdiçados, foi preciso recorrer à guerra na tentativa de submeter a Rússia à “ordem internacional com regras”. O resultado foi a Rússia passar a ser a maior economia europeia, ultrapassando a Alemanha, a Ucrânia exangue, falida, destruída nas infraestruturas básicas, tendo de importar eletricidade e agora também gás.
Note-se que os temas e processos na Ucrânia, Rússia, não diferem do que se processa na Venezuela, Geórgia, África, Ásia: corrupção e fraudes eleitorais, tudo dramatizado à exaustão com propaganda aos paraísos neoliberais. Além disto, como disse Tucker Carlson: a CIA cunhou o termo “teórico da conspiração” para rotular qualquer pessoa que levante questões desconfortáveis.
A USAID e congéneres estão destinadas senão à irrelevância a perderem o estatuto e independência que usufruíam e de que abusavam. Embora, o Supremo Tribunal dos EUA tenha rejeitado a tentativa de Trump cancelar 2 mil milhões em pagamentos estrangeiros da USAID, argumentando que os fundos permanecem alocados sob contratos existentes, isto significa que dificilmente serão feitos outros.
Neste processo, políticos, burocratas, comentadores submetidos a uma lavagem cerebral pelos neocons, não sabem o que fazer, acentuando-se a sua irrelevância, disfarçada com bravatas e disparates, sentindo-se impotentes face aos acordos a que Trump e Putin cheguem não só sobre o futuro da Ucrânia, mas da Europa.
Quem não aprende com a História está sujeito a repeti-la, sabe-se. Assim na UE/NATO não percebem o que Trump lhes está a dizer: vocês devem obedecer aos EUA, não a um partido político dos EUA. Entendem? Não. A imbecilidade vigente, expressa em ridículos apoios a Zelensky, dificulta-lhes o entendimento da realidade. Mas não poderiam estar mais errados na sua propaganda.
2 – A USAID e outras ONG na Ucrânia
Após a independência da Ucrânia, a USAID, CIA, NED, Soros, etc, mantiveram-se ativos e vigilantes na “defesa da democracia e direitos humanos”. Desenvolveu-se a russofobia, estabeleceram-se as bases dos grupos neonazistas, foi-se buscar ao arsenal de Gobbels o “Holodomor”, mostrando que a Rússia tinha em mente o genocídio ucraniano, embora como República Soviética a Ucrânia tivesse o PIB/hab mais elevado da União e uma população em crescimento constante.
As preocupações daquelas ONG aumentavam: as relações económicas e a presença russa mantinha-se, havia que alterar esta situação que comprometia o objetivo mais vasto de uma vez por todas, impedir que a Rússia fosse um potencial ameaça, como especulavam os ideólogos do mundo unipolar.
Assim, foi desencadeada em 2004, a “revolução laranja”. A USAID financiou organizações que exigiam “reformas democráticas”, preparando o terreno para protestos. Uma das ações foi o Projeto de Fortalecimento da Administração Eleitoral lançado pela USAID (SEAUP) em dezembro de 2003, influenciando o parlamento e o sistema judicial da Ucrânia. Forneceu apoio a líderes da oposição como Viktor Yushchenko, que liderou protestos contra uma suposta fraude eleitoral. Grupos de “vigilância eleitoral” foram financiados, como o Comité de Eleitores da Ucrânia para contestar o resultado das eleições de 2004, tal como media “independentes” para espalharem mensagens da oposição e alegações de corrupção. Foram também financiados programas de treino em táticas de resistência e mobilização, contribuindo para o desencadear do golpe. No total avalia-se que foram gastos com a “revolução laranja” centenas de milhões de dólares, da USAID, Fundação Eurásia, etc, em “programas de democracia” e para promover o candidato pró-EUA.
Apesar destes esforços, passados alguns anos a inteligência estabelecida na Ucrânia deparou-se com um presidente, Viktor Yanukovych que queria manter (obviamente!) boas relações com a Rússia e um país neutral sem adesão a blocos como a NATO ou mesmo a UE.
Robert Kennedy Jr., acusou a USAID de derrubar Yanukovych com o golpe dito Euromaidan em 2014: “A USAID, que é uma fachada para a CIA, investiu 5 mil milhões de dólares no financiamento dos tumultos que levaram ao golpe de Estado contra o governo democraticamente eleito da Ucrânia. Era um governo que se recusou a escolher um lado e dizer que estava do lado do ocidente. Então, queríamos eliminá-lo”.
O golpe foi dirigido pelo Departamento de Estado com a USAID e a NED, apoiaram as ONG ucranianas na organização de protestos contra a interrupção das políticas de integração na UE. Desenvolvendo a sua atividade nos meios de comunicação antigovernamentais, a USAID financiou mais de 6 200 jornalistas em 707 veículos de comunicação e 279 ONG media, nove em cada dez veículos de comunicação na Ucrânia, disse o WikiLeaks.
Trump afirmou que os EUA gastaram 350 mil milhões na Ucrânia e não receberam “nada em troca”, embora não tenha disponibilizado detalhes sobre aquele valor. Musk pretende através da sua comissão DOGE, que audita os gastos do governo, uma investigação sobre como a ajuda americana foi gasta na Ucrânia.
3 – A USAID e parceiros na Rússia
Elon Musk, postou no X que a USAID é “absolutamente criminosa” e “completamente ilegal”. Claro que a Rússia sabia da natureza “criminosa” da USAID muito antes de Elon Musk, ao proibir as suas ações em 2012.
A USAID, estabeleceu-se na Rússia em 1992 após o colapso da União Soviética, gastando quase 3 mil milhões de dólares ao longo de 20 anos na promoção da “democracia” e dos “direitos humanos”. Na realidade, o que a USAID promoveu foi a destruição do sistema social e económico da Rússia na transição para uma economia capitalista, o esmagamento de desafios eleitorais e contestação aos políticos liberais e pró-Ocidente durante a crise constitucional de 1993 (destituição de Ieltsin) e a eleição de 1996 para impedir a vitória do candidato comunista.
A USAID tinha construído um vasto corpo de “media independente”. Em 2000, o Instituto Nacional de Imprensa Russo, ligado à USAID, realizou 2 300 briefings, treinou 57 000 jornalistas, monitorou 84 jornais e forneceu suporte informativo para imprensa, televisões e internet.
Na frente económica, a USAID prestou “serviços de consultoria técnica e suporte material” para os infames esquemas de privatização que facilitaram transferências massivas de riqueza do Estado para mãos privadas. Os “objetivos estratégicos” da USAID na década de 90 incluíam desde reformas fiscais, legais, ambientais, energéticas e de saúde até à promoção de investimentos de “joint venture” dos EUA.
Porém, sem dúvida, o maior impacto provocatório da USAID sobre a Rússia foram os milhares de milhões que gastou para empurrar os países vizinhos em direção à NATO e reescrever livros de história pintando a Rússia como inimiga, principalmente na Ucrânia, Países Bálticos, Polónia.
Em 2012, a USAID foi proibida de operar na Rússia, após protestos de rua pós-eleitorais em Moscovo que prenunciavam uma tentativa de “revolução colorida”. A agência foi acusada de usar a sua rede de subsídios para influenciar a política e a sociedade civil após as eleições parlamentares e presidenciais russas de 2011-2012, incluindo financiamento a grupos de vigilância eleitoral, organizações de direitos humanos como Memorial e Moscow Helsinki Group, entre outros.
Estas organizações envolviam-se em críticas cada vez mais severas ao governo russo, ajudando a radicalizar uma parcela da população para as visões da oposição pró-ocidente. Em 2015, uma decisão do Gabinete do Procurador-Geral da Rússia proibiu as atividades da NED, o que não a impediu de gastar na Rússia 21 milhões entre 2016 e 2019. Em 2019, foram revelados detalhes de gastos da NED, para ativistas, projetos de media “independentes” e outras atividades junto da “sociedade civil”. Em 2013-2014, antes da proibição, a NED doou 5,2 milhões para organizações que trabalhavam para desacreditar eleições e políticas governamentais e militares russas.
4 – Em cena Garry Kasparov e Alexys Navalny
Dois exemplos típicos de personagens seduzidos e apanhados na órbita do poder unipolar imperialista. Kasparov, campeão mundial de xadrez, patrocinou a oposição na Rússia sendo aclamado pelos media ocidentais como defensor da democracia. Na realidade, era um agente financiado pela USAID para minar a Rússia por meio de protestos ilegais, narrativas anti governamentais e táticas de “revolução colorida”. O dinheiro fluiu através de uma rede de ONGs, com Kasparov no comando da Human Rights Foundation, Kasparov Chess Foundation, The Renew Democracy Initiative e do The World Liberty Congress.
Várias outras organizações foram também financiadas, como a Marin Community Foundation, Free Russia Foundation, uma ONG criada em 2014 em Washington por emigrantes russos preocupados com a democracia na Rússia, presidida por David Kramer, ex-secretário de Estado assistente dos EUA e ex-chefe da Freedom House. Informações obtidas via datarepublican.com mostram que recebeu quase 4 milhões de dólares.
A Fundação Kasparov Chess, recebeu também dinheiro da Human Rights Foundation, Vanguard Charitable Endowment Program, criado pelo The Vanguard Group, uma empresa de gestão de investimentos dos EUA que atualmente usa o conflito ucraniano para comprar terras ucranianas pelo menor preço possível.
Outras organizações que ajudaram o financiamento de Kasparov incluem o The World Liberty Congress, a Freedom House (que apoiou grupos e atividades antirrussas desde a Guerra Fria), a NED, a Internews Network, o Schwab Charitable Gift Fund (renomeado como DAFgiving360). Fundado por Charles Schwab, um gigante financeiro dos EUA, famoso por ajudar os mais ricos a sonegar impostos por meio aconselhamento de doações a fundos que permitem doações políticas anónimas.
Quanto a Alexey Navalny, foi expulso em 2007 do partido neoliberal Iabloko, agora praticamente inexistente, pelas suas posições ultranacionalistas e participação em manifestações racistas da extrema-direita russa. Começou a ser notado, encabeçando a luta contra Putin baseando-se na corrupção. Desenvolveu atividade na internet e no Youtube onde apresentou um filme de 40 minutos sobre Putin como estando à frente de um império imobiliário financiado pelos oligarcas.
Isto chamou a atenção de organismos dos EUA cuja função é arregimentar elementos que executem políticas que lhes sejam favoráveis. Em 2010, participa no programa World Fellows ligado à Universidade de Yale, seguindo um curso em que “os bolsistas demonstraram uma capacidade extraordinária de influenciar o diálogo sobre questões de importância nacional, regional e global.“ No currículo da World Fellows, foi apresentado como político e líder da Fundação Anticorrupção, contra empresas estatais russas e altos funcionários. Diz ainda que participou nas eleições presidenciais russas em 2018 abrindo 81 sedes regionais em todo o país, tornando-se a maior organização de oposição na Rússia.
Objetivamente falso. O maior partido de oposição é tanto nas presidenciais como legislativas, o Partido Comunista da Federação Russa. Navalny nem sequer participou das eleições presidenciais de 2018. A sua candidatura foi rejeitada devido a uma anterior condenação por corrupção.
Quando regressou dos EUA em 2010, teve todo o apoio na internet e nos media antigovernamentais, permitindo que se tornasse conhecido e desenvolvesse campanhas contra a corrupção e manifestações contra fraudes eleitorais. Em 2013, candidato à Câmara de Moscovo, recebeu 27% dos votos, mostrando a sua verdadeira face: a campanha foi apenas combate à corrupção (pelos vistos não tinha ideias para a cidade!) e promoção racista: “Vejo as estatísticas e 50% dos crimes graves são cometidos por imigrantes”.
Em 2011, Navalny participou em protestos patrocinados pelo ocidente e foi preso 15 dias por “desafiar um funcionário do governo”. Mas a corrupção era o seu calcanhar de Aquiles. Desde o início da década de 2010, Navalny viu-se envolvido numa série de casos criminais de corrupção e peculato. Como líder da Fundação Anticorrupção que fundou em 2011 com financiamento em grande parte do ocidente, veio a ser acusado de apropriação indevida de doações no valor de milhões.
Em 2012, o Comité de Investigação da Rússia acusou Navalny de peculato envolvendo uma empresa madeireira estatal na região de Kirov, numa altura em que era conselheiro do governador de Kirov. Em 14 de dezembro de 2014, o procurador russo pediu dez anos de detenção num campo de trabalho para Navalny, acusado de desvio de fundos (400 mil euros) em detrimento de uma filial da sociedade francesa Yves Rocher, empresa de cosméticos. Foi condenado a 3,5 anos de prisão, com pena suspensa. Por este motivo em 2018, foi impedido de concorrer à presidência.
Em julho de 2019, Navalny foi condenado a 30 dias de prisão após convocar protestos não autorizados. Em 2021, os tribunais proibiram a Fundação Anticorrupção e os projetos de Navalny, rotulando-os de extremistas, de “criar condições para mudar os fundamentos do sistema constitucional, derrubar o governo e criar o cenário de uma “revolução colorida”.
Em agosto de 2020, dizendo-se atacado com o agente nervoso Novichok pediu para se tratar em Berlim, o que lhe foi concedido. O governo alemão confirmou o Novitchok. Apesar dos pedidos das autoridades russas nunca foram apresentadas provas. Ao regressar a Moscovo, foi preso por ter violado as condições da sua pena suspensa e depois condenado a nove anos sob acusações de fraude e desacato no tribunal.
O caso Navalny é exemplar pela forma como o ocidente apoia a extrema-direita. Apesar do seu passado obscuro e casos criminais, de ter apresentado os imigrantes como “delinquentes” e ideias ultranacionalistas, nada disto impediu que em 2021 o Parlamento Europeu lhe atribuísse o Prémio Sakharov e em 2022 fosse nomeado para o Prémio Nobel da Paz. O que diz muito sobre estes prémios.
Em 2022, Navalny foi condenado a uma pena adicional de nove anos por peculato e desacato ao tribunal. Foi acusado de se apossar de fundos arrecadados para as atividades da Fundação Anticorrupção para em atividades extremistas e necessidades pessoais. Por insultar a juíza Vera Akimova e caluniar Ignat Artemenko, um veterano da Segunda Guerra Mundial, foi condenado a uma multa equivalente a 7 500 dólares.
Em agosto de 2023, Navalny foi condenado por novas acusações de extremismo e sentenciado a 19 anos numa colónia penal de segurança máxima, sendo transferido no final de 2023, para a colónia prisional do Ártico em Yamalo-Nenets. Noticias chegaram a afirmar que tinha sido condenado a 30 anos de prisão, quando tinha sido condenado a 19 anos, dizia-se também não saber o paradeiro, contudo em 7 de dezembro de 2023, Navalny apelava da cadeia ao voto contra Putin nas eleições de 17 de março próximo.
Navalny, 47 anos, morreu na prisão a 16 de fevereiro de 2024. O Serviço Penitenciário Federal divulgou apenas que Navalny, se sentiu mal após um passeio, perdendo a consciência, sendo chamada uma ambulância, mas apesar dos esforços ele faleceu. No ocidente os media asseguraram tratar-se de um crime do “regime de Putin” sobre um importante opositor que até impedia a família de aceder ao cadáver. É evidente que não existem no ocidente quaisquer provas de tratar-se de um crime. No entanto, Navalny só era “importante opositor” no ocidente.
Os “euroatlantistas” excitados com o caso Navalny, pediram manifestações frente à embaixada russa, (mas não frente à de Israel, pelo contrário foram reprimidas) nunca se preocuparam com Julian Assange e ignoraram Gonzalo Lira, cidadão americano que morreu em janeiro de 2024, devido a tortura e negligência médica numa masmorra ucraniana: criticava Zelensky.
09/Março/2025
Fontes:
Geopolítica ao vivo
Wikipédia, a enciclopédia livre
Navalny : un nationaliste russe
Alexey Navalny – Maurice R. Greenberg World Fellows Program
Este artigo encontra-se em resistir.info