Em 2025, quatro antigas colônias portuguesas na África — Angola, Cabo Verde, Moçambique e São Tomé e Príncipe — celebram o 50º aniversário de sua independência, juntando-se à Guiné-Bissau, que proclamou unilateralmente sua emancipação em setembro de 1973, sendo formalmente reconhecida em 10 de setembro de 1974, após o fim da ditadura de Salazar, derrubada pela Revolução dos Cravos.
O movimento independentista em
colônias portuguesas começou a tomar força durante a Segunda Guerra Mundial (1939–1945), conforme explica ao
podcast Mundioka, da
Sputnik Brasil, Helena Wakim Moreno, coordenadora do Grupo de Trabalho de História da África da Associação Nacional de História, seção São Paulo (ANPUH-SP), pesquisadora associada do Centro de Estudos Africanos (CEA) da Universidade de São Paulo (USP), com pós-doutorado no Instituto de História da Universidade Federal Fluminense (UFF), doutora em história social, mestre em história econômica, e bacharel e licenciada em história pela USP, que atuou como pesquisadora visitante do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa (UNL) e da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, autora da tese de doutorado “Intelectuais de Angola na Casa dos Estudantes do Império: itinerâncias, mediações e redes de apoio”.
Ela explica que a preocupação com a perda das colônias começou a ser a “grande pedra no sapato da ditadura salazarista” durante a Segunda Guerra Mundial.
“Ainda se fala menos sobre isso do que deveria, mas para a vitória dos aliados na Segunda Guerra foi bastante importante a participação de tropas dos territórios sob dominação colonial.”
Naquela época, afirma a especialista, a participação das tropas se deu na esperança sinalizada pela Carta do Atlântico, assinada em 1941 pelo primeiro-ministro britânico Winston Churchill e pelo presidente estadunidense Franklin Roosevelt, que traçava as bases para o mundo pós-Segunda Guerra, calcado no direito à autodeterminação dos povos.
“Na prática, diferentemente do que era a expectativa dos africanos, que esse direito à autodeterminação dos povos seria aplicado para os então territórios sob dominação colonial, esse princípio não vai entrar em vigor depois da Segunda Guerra para a África. Mas esse documento, ele vai embasar a criação da Carta da ONU, em 1945, reafirmando, portanto, o direito à autodeterminação dos povos, ainda que, mais uma vez, de pronto, esse preceito não tenha sido aplicado aos territórios sob dominação colonial na África”, explica Moreno.
Ela afirma que após o fim da Segunda Guerra Mundial, os aliados, vencedores do confronto, criaram a Organização das Nações Unidas (ONU), instituída após a assinatura da Carta da ONU, que também estabelecia a autodeterminação dos povos. Em 1946, Portugal teve o pedido negado para integrar a ONU por se negar a fornecer informações acerca dos territórios sob dominação colonial na África. Então o Estado Novo português, como era chamada a ditadura de Salazar, buscou maneiras de conter a independência das colônias africanas.
“Diante disso, e com inspiração em mudanças constitucionais promovidas pelo Império Francês logo após o final da Segunda Guerra, em 1951 Portugal vai realizar uma revisão constitucional a partir da qual as então colônias perdiam esse status […] para se tornar províncias ultramarinas. Então o que isso significa? Fundamentalmente, tratava-se de uma manobra jurídica para convencer a comunidade internacional de que os territórios sob dominação colonial portuguesa não eram geografias subjugadas por Portugal, mas parte de uma mesma nação,
a nação portuguesa.”
Segundo Moreno, com isso, todos os habitantes das colônias passaram a ser
considerados portugueses. Entretanto, explica a especialista, o grande destaque dessa situação foi que apenas uma ínfima porcentagem dos habitantes das colônias obteve o reconhecimento da cidadania. Ela afirma que,
nesse momento, começam a se desenhar as independências africanas.
“Especificamente no que diz respeito aos movimentos de libertação ou aos movimentos de independência, a censura e as demais forças de repressão do Estado Novo português vão desempenhar um papel preponderante. A censura porque vai impedir a disseminação de ideias anticoloniais e nacionalistas, que defendiam a independência desses territórios. E vale lembrar […] que o antigo Império Português é o único dos impérios coloniais vigentes no século XX que vai contar com um sistema ininterrupto de censura aplicado tanto às colônias quanto, também, à metrópole. Já as forças de repressão faziam com que as determinações da censura, elas fossem cumpridas na prática.”
Nesse contexto, em 1954, a Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), a polícia do regime salazarista, instalou escritórios em territórios sob dominação colonial, tendo sido o primeiro aberto em 1957, em Angola.
“Essa polícia política, a PIDE, ela prende e tortura dezenas de nacionalistas angolanos que se organizavam clandestinamente no país e vai enviá-los para um campo de trabalho forçado na ilha do Tarrafal, em Cabo Verde. […] Vale ressaltar que violências como essas […], prisões e deportações para o campo do Tarrafal, eram exercidas no cotidiano contra qualquer pessoa que fosse suspeita de ser partidária da independência”, destaca.
Moreno explica que, apesar de brutal, essa repressão não impediu a criação de células que se organizavam em prol da causa da independência nos territórios dominados e, a partir da década de 1960, culminaram nas guerras pela libertação.
“Que vão ser travadas em três desses cinco territórios sob dominação colonial portuguesa — Angola, que é o primeiro a entrar em guerra, em 1961, depois Guiné e Moçambique.”
Ela afirma que esses movimentos de libertação tiveram a ajuda crucial de vizinhos africanos para se organizarem fora dos territórios dominados. Segundo a especialista, isso foi possível por conta das fronteiras políticas artificiais estabelecidas na África pela Conferência de Berlim, em 1884 e 1885.
“Muitas das comunidades étnicas que contavam com populações estabelecidas nos dois lados da fronteira, fronteiras essas bastante porosas, vão transitar por dois países. Um dos exemplos […] é o de Angola. A Frente Nacional de Libertação de Angola, a FNLA, foi um movimento de maioria bacongo, um grupo estabelecido entre o norte do país e a atual República Democrática do Congo.”
Ela afirma ainda que outras redes auxiliaram os movimentos de libertação e cita como exemplo a União Soviética, que conferiu apoio logístico e militar para ações em campos de batalha, além de bolsas de estudos para jovens de territórios sob dominação colonial portuguesa na África.
“Por que essas bolsas de estudos são importantes? Porque uma das preocupações desses movimentos de libertação era que, após as independências, houvesse quadros profissionais qualificados para tocar o país nas atividades institucionais cotidianas. Cabe lembrar que os índices de analfabetismo nesses antigos territórios sob dominação colonial portuguesa na África, eles eram muito altos. Em Portugal, na década de 1950, pouco mais de 50% da população não sabia ler ou escrever, ao passo que, nesses territórios sob dominação colonial portuguesa, esses índices eram superiores a 90%, e entre a população negra e mestiça eram ainda mais elevados, eram superiores a 95% em muitos casos. Então ter quadros técnicos qualificados para a gestão do país depois das independências é de grande importância.”
Ela acrescenta que a Argélia também teve um papel fundamental no apoio aos movimentos de independência, após se tornar independente da França, em 1962.
“A Argélia vai servir de sede e de ponto de apoio a movimentos de libertação de diversas partes do continente africano, mas também a exilados políticos sul-americanos que fugiram da ditadura nos seus países, inclusive a exilados políticos brasileiros, como é o caso do Miguel Arraes e […] Rubens Paiva.”
Moreno enfatiza que a própria Revolução dos Cravos, que derrubou a ditadura de Salazar, foi um reflexo dos confrontos entre Portugal e os movimentos de independência nos territórios sob dominação colonial portuguesa.
“Porque, apesar de a Revolução dos Cravos ter tido lugar em Portugal, tendo como seus principais agentes oficiais de média patente do Exército português, […] são os múltiplos desgastes de ordem econômica, política, social e também militar decorrentes das guerras de libertação, bem como o esforço humano empregado nesse processo, que vão levar à queda do regime”, afirma a especialista.
Ela afirma que para o atual marco de 50 anos de independência das quatro ex-colônias portuguesas estão previstos eventos ao longo de todo o ano.
“Eu sei que estão agendados para acontecer ao longo de 2025 eventos que vão reunir especialistas no tema das independências em Cabo Verde, em Angola, em Moçambique […]. Em linhas muito, muito gerais, esse marco ainda comporta o sentido do direito de uma história própria, e não de ter que tomar como sua a história de um colonizador estrangeiro.”