Durante a Cúpula de Chefes de Estado do Mercosul de Montevidéu, no Uruguai, a euforia gerada pela assinatura do acordo com a União Europeia (UE) ofuscou a consolidação da mais nova onda de expansão do bloco: a Bolívia fez sua estreia como Estado parte do Mercosul, que também fechou acordo com o Panamá, como Estado associado, inaugurando sua expansão rumo à América Central.
Após mais de dez anos de negociações, o presidente da Bolívia, Luis Arce, entregou o instrumento de ratificação do Protocolo de Adesão do Estado Plurinacional da Bolívia ao Mercosul durante a Cúpula de Montevidéu.
“Com a entrada da Bolívia, o Mercosul se constitui na sétima economia do planeta, com um PIB [produto interno bruto] combinado de quase US$ 3 trilhões [R$ 18,1 trilhões]”, comemorou o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva. “O comércio entre nós mobiliza a expressiva soma de US$ 55 bilhões [R$ 331,5 bilhões]. 75% dessa cifra é de produtos de alto valor agregado.”
O Mercosul agora representa 73% do território da América do Sul, 65% de sua população e cerca de 70% do PIB regional. Apesar das bonanças, o processo de entrada da Bolívia foi longo e marcado por turbulências, disse a cientista política e doutoranda em relações internacionais na UERJ Beatriz Bandeira de Mello.
“O processo teve inúmeras idas e vindas por questões políticas e […] instabilidade, considerando que o Brasil enfrentou uma crise institucional, e a Bolívia um golpe de Estado”, disse Mello à Sputnik Brasil. “Dentro do bloco houve quem argumentasse que a entrada da Bolívia poderia ‘ideologizar’ o Mercosul e causar paralisia no bloco.”
A finalização do processo foi beneficiada pelas relações próximas entre os presidentes Lula e Luis Arce, que relançaram projetos conjuntos no setor de infraestrutura.
“Vemos uma convergência de objetivos entre a presidência brasileira e boliviana, sobretudo quanto ao compartilhamento de recursos naturais — como o lítio, fundamental para a fabricação de semicondutores — e pela proximidade com a China, que é um dos grandes importadores desses recursos”, notou Mello.
Lula revelou o interesse dos países em consolidar o projeto Quadrante Rondon, durante encontro bilateral com o presidente Arce, em junho deste ano. A iniciativa tem como objetivo construir uma ponte binacional sobre o rio Marmoré e garantir a navegabilidade do rio Paraguai e do canal Tamengo.
“O presidente Lula já declarou, inclusive, que o gasoduto Brasil-Bolívia pode ser utilizado para transportar o
gás natural da Vaca Muerta, na Argentina”, lembrou Mello. “Em termos geopolíticos, outro recurso importante é a
hidrovia Paraguai-Paraná, que oferece uma saída natural ao Atlântico e pode ser útil para o escoamento da produção boliviana e sua integração às cadeias globais de valor.”
Além dos recursos naturais, a entrada da Bolívia favorece o desenvolvimento da indústria regional, que poderá contar com mercado interno pujante e ampliado, acredita o pesquisador do Núcleo de Estudos Latino-Americanos (NEL) da Universidade de Brasília (UnB) Robson Valdez.
“A entrada da Bolívia cria oportunidades para o desenvolvimento de indústrias de valor agregado nos países do bloco, […] já que expande o mercado interno do Mercosul e potencializa fluxos comerciais e investimentos”, disse Valdez à Sputnik Brasil. “E mais, a construção geográfica da Bolívia no coração da América do Sul pode facilitar a conexão logística entre os países-membros, especialmente com corredores bioceânicos que ligam o Atlântico ao Pacífico.”
A economia interna boliviana também tem bastante a ganhar com o Mercosul, já que o país passa a acessar um mercado de 300 milhões de pessoas, que conta com uma das maiores economias do mundo: o Brasil.
“A Bolívia poderá acessar fundos de investimentos do Mercosul, como o Focem [Fundo para a Convergência Estrutural do Mercosul] e se beneficiar do livre trânsito de mercadorias, pessoas e capitais”, notou Mello. “A decisão também confere maior peso político ao país, que poderá participar dos processos de tomada de decisão do Mercosul.”
País exportador de mão de obra para países vizinhos, a Bolívia poderá garantir aos seus nacionais residentes nos países do bloco acesso à educação, saúde e direitos trabalhistas, participando da chamada “cidadania do Mercosul”.
“A Bolívia tem interesse em participar de negociações globais lideradas pelo Mercosul e terá uma oportunidade única para ampliar sua presença global“, disse Valdez. “Acordos como o selado com a União Europeia poderão diversificar a economia boliviana, atraindo investimentos em setores estratégicos como o de minerais e energia.”
Nada é para já
Apesar das comemorações,
a Bolívia ainda terá quatro anos para liberalizar o seu mercado para o Mercosul e adotar a Tarifa Externa Comum (TEC) do bloco. Nesse período, o país também terá que internalizar o Protocolo de Direitos Humanos no Mercosul e o Protocolo Constitutivo do Parlamento do Mercosul, entre muitos outros.
“O Mercosul não tem como pressionar para a rápida adesão aos acordos, uma vez que esse é um processo que deve atender aos dispositivos constitucionais e legislativos da Bolívia”, destacou a pesquisadora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
A internalização das normas do Mercosul gera ansiedade, já que esse foi um dos principais entraves para a entrada da Venezuela como Estado parte do bloco. Além das controvérsias acerca de processos eleitorais, a demora de Caracas em adotar a TEC foi um dos motivos que levaram à suspensão do país do Mercosul.
“Acredito que o Mercosul vai tentar evitar repetir essas mesmas situações, esses mesmos problemas ocorridos com a Venezuela, ao estabelecer cronogramas claros e acompanhamento técnico rigoroso para que a Bolívia implemente, de fato, a tarifa externa comum e as demais legislações do bloco”, acredita Valdez.
Para ele, o Mercosul deve “garantir um diálogo constante e oferecer incentivos econômicos, juntamente com compromissos políticos firmes por parte da Bolívia”, a fim de “assegurar a entrada bem-sucedida do país no bloco”.
Rumo ao Norte
O Mercosul e seus acordos com países da América do Sul fazem da região uma zona de livre comércio de fato. Por isso, o Mercosul busca se expandir para novas áreas, como a América Central.
Durante a Cúpula de Montevidéu, o Panamá assinou o Acordo de Complementação Econômica 76 (ACE-76), que oficializa sua entrada no bloco como Estado associado. O Panamá é o principal parceiro comercial do Brasil na América Central e o primeiro centro-americano a integrar o Mercosul.
“A adesão do Panamá fortalece as relações do Brasil com os países da América Central, incrementa as exportações e o fluxo de comércio, tendo como referência o canal do Panamá e a Zona Franca de Colón”, disse Mello.
De acordo com o Itamaraty, negociações com El Salvador e República Dominicana estão em curso para consolidar a presença do Mercosul na América Central.
O governo brasileiro adota a estratégia de diversificação dos parceiros para driblar críticas feitas por membros como Uruguai e Paraguai, que pedem maior internacionalização do Mercosul. Montevidéu ameaçou, inclusive, retirar-se do bloco, caso negociações com potências como a China não fossem aceleradas.
“Essa estratégia é adotada na expansão do bloco rumo ao Sudeste Asiático, vide o acordo firmado com Singapura em 2024, as tratativas com os Emirados Árabes Unidos e a expansão rumo ao eixo Ásia-Pacífico, que incluem diálogos com a China e o Japão”, disse Mello.
A diversificação de parcerias vem em boa hora e prepara o bloco para enfrentar a nova administração de Donald Trump na Casa Branca. Entusiasta da imposição de tarifas, o novo presidente norte-americano poderá criar dificuldades para alguns setores exportadores do Mercosul.
“Donald Trump prometeu lançar mão de guerras tarifárias para reduzir o déficit comercial dos EUA. Nesse sentido, as estratégias de articulação do Mercosul com outros blocos, como a União Europeia, e com o Panamá criam necessária diversificação e dinamização da economia do bloco”, concluiu Valdez.
A 65ª Cúpula de Chefes de Estado do Mercosul, realizada entre os dias 5 e 6 de dezembro em Montevidéu, encerrou a presidência uruguaia do bloco. A partir de 2025, a Argentina tomará as rédeas do Mercosul, com a função não só de consolidar a entrada da Bolívia no bloco, mas também de finalizar as negociações com os Emirados Árabes Unidos e aprovar o acordo recém-firmado com a UE.