Yeba Buró celebra este filho / da terra – senhor da palavra / e da memória – que feito pássaro / partiu para a terra sem males. (Tenório Telles. Réquiem para Márcio Souza).
Márcio Souza, que faleceu em Manaus nesta segunda (12), abriu caminhos para a nossa geração. Ilustro aqui com dois episódios: um na França, outro em Manaus. Quando ele passou em 1972 por Paris, onde me encontrava exilado, fomos ver num dia de outono “O charme discreto da burguesia” que acabava de ser lançado. Depois, fizemos longa caminhada pela avenida Daumesnil. No momento em que entramos na Praça da Bastilha, ele me disse em tom provocador:
– Quem diria, hein? A Bastilha foi derrubada com ajuda de povos indígenas que viviam no Brasil.
Na hora, pensei que Márcio estava de gozação. Não estava. Ele me recomendou o livro “O Índio brasileiro e a revolução francesa” escrito em 1937 por Affonso Arinos, que queria saber de onde surgiu o ideário de igualdade, liberdade e fraternidade. Para isso, buscou os filósofos gregos. Mas foi nas descrições etnográficas de viajantes que, surpreso, encontrou os Tupinambá, cujo modo de vida fascinou os iluministas. Insuspeito, Arinos não simpatizava inicialmente com as culturas indígenas, que desconhecia.
Passou a conhecê-las, quando documentou a presença de indígenas na França, com quem através dos séculos, os humanistas e iluministas mantiveram contato, entre outros Montaigne, Voltaire e Rousseau. O intercâmbio sistemático com os Tupinambá se deu ao longo do período colonial. Raoni, o último da lista de caciques recebidos nos últimos cinco séculos pelos chefes de Estado, é condecorado no séc. XXI pelo presidente da França, Emmanuel Macron, com a Legião de Honra, a maior distinção concedida pela França aos que se destacam no cenário mundial.
A Expressão Amazonense
No retorno do exílio, já em Manaus, nos reuníamos aos sábados, algumas vezes com o poeta Aldísio Filgueiras, com quem era unha e carne, para ler em voz alta trechos do livro A Expressão Amazonense, que só seria publicado um ano depois, em 1977, quando a ditadura empresarial-militar ainda mantinha seus dentes arreganhados. No meio das trevas, era uma lufada de inteligência e de liberdade, abria clarões, indicava caminhos a percorrer, iluminando as salas de aula da Universidade Federal do Amazonas, onde eu era professor.
Durante sucessivos semestres, discuti o texto com os alunos, usei-o como um pastor usa a Bíblia. Mas no bom sentido. Com o senso crítico aguçado. Nada do que debatíamos dispensava consulta aos seus capítulos e versículos. Funcionava como um espelho, onde procurando, podíamos ver a nossa própria imagem. Seu último livro é dedicado a cinco amigos: a dois indígenas, a dois bispos e a mim, autor do prefácio. Trata-se de uma coletânea de textos sob o título “Amazônia Indígena“, uma espécie de “A Expressão Amazonense II”.
Com uma erudição de “rato de biblioteca”, Márcio explorou livro a livro as estantes de Djalma Batista, que o perfilhou. Estabeleceu um diálogo com a produção científica sobre a Amazônia, reivindicando a centralidade da região, debatendo, polemizando e defendendo o lugar por ela ocupado na história. Transitou com desenvoltura por diferentes campos do saber, com enfoque interdisciplinar, que mergulha na filosofia grega e alemã, emerge entre os enciclopedistas, fica de bubuia e deságua na produção da literatura local.
Outro nome da Amazônia
Márcio olha a Amazônia com a ajuda de grandes pensadores. Mas vai além. Com olhos bem abertos para dentro e para fora da região, constrói a sua legitimidade para o debate, à maneira dos cronistas, não apenas a partir da leitura de livros, mas incorporando sua experiência pessoal na leitura da floresta, dos povos que nela vivem e das cidades erguidas dentro dela nos últimos quatro séculos.
Seu lugar de enunciação é o de um amazonense – muito mais que quatrocentão, um amazonense milenar – conhecedor das narrativas míticas que circulam na oralidade, dos sopros da criação e das histórias do vento que vêm da floresta, do rio e dos povos que aí vivem e navegam.
Traz para a ribalta, como protagonistas, os povos originários, “os únicos que haviam conquistado o status de uma cultura que falava em todos os níveis a linguagem da Amazônia” e que foram capazes de criar um padrão da Cultura da Selva Tropical. Incorpora as principais conclusões da arqueologia e da etnolinguística para dar conta das sociedades de caçadores e de coletores, até a formação dos primeiros agricultores que domesticam plantas e fazem experimentos em sintonia com os ecossistemas.
Registra também as narrativas míticas que se mantém vivas e que tratam da origem do mundo, do nascimento dos homens, das aventuras de Jurupari e outros heróis civilizadores, assim como as histórias de conteúdo profano, erótico ou cômico, com suas articulações dramáticas e seu encanto sensorial.
Juntos, com outros companheiros, fundamos o PT-AM, em 1980, quando foi aprovado documento escrito a quatro mãos por mim e por ele intitulado O PT e a questão indígena, que teve duas edições. As teses ali apresentadas foram discutidas, em São Paulo, em dois encontros nacionais: no Colégio Sion, quando assinamos o manifesto; e no Instituto Sedes Sapientiae, quando votamos programa, estatuto e plano de ação do partido, que incorporou reivindicações indígenas: a demarcação da terra e a autodeterminação dos povos originários.
A luta indígena
Juntos, contribuímos com o jornal Porantim em defesa da causa indígena. Somos coautores também com Mário Juruna, Megaron e Marcos Terena do livro “Os índios vão à luta” editado, em 1981, por Felipe Lindoso e Maria José Silveira, onde consta a situação demográfica e jurídica, assim como a política indigenista oficial, a integração forçada, a organização e a resistência.
No seu último livro, Márcio faz um balanço do processo colonial: violência, escravidão, catequese, guerras “justas”, mas também a resistência dos Tupinambá em Belém, dos Manau, Baniwa, Mura e Baré e outros povos na área do Forte de São José da Barra, além de centenas de rebeliões. Ele profetiza:
– “A Amazônia índia é um anátema: um purgatório onde culturas inteiras se esfacelam no silêncio e no esquecimento. E quando esta entidade heroica e sofredora deixar de existir, será necessário encontrar outro nome para o vale: já não teremos mais Amazônia”.
Mas a Amazônia resiste. Algumas rebeliões, de um passado recente, o autor ouviu pela primeira vez da boca de seu pai Jamacy, linotipista em vários jornais e sindicalista combativo que, em 1964, punido pela ditadura, foi trabalhar como coletor de rendas em Santo Elias do Airão, onde circulavam histórias de caçadores de índios e de massacres dos Baré e dos Waimiri-Atroari. Chocado com a brutalidade dos embates, Jamacy as recontou em sua casa aos filhos. Fez isso em memória de indígenas perseguidos e massacrados.
Dona América
Essas narrativas, bem como a resistência contra o poder colonial e contra a ditadura, estão presentes no livro, que não poderia ter sido escrito sem o trabalho realizado pelo grupo de Teatro Experimental do SESC do Amazonas, que encenou entre outras peças A Maravilhosa História do Sapo Tarô-bequê, A Paixão de Ajuricaba, Dessana Dessana, Tem Piranha no Pirarucu, As Folias do Látex e tantas outras obras teatrais, que Márcio escreve e colocou em cena.
Sempre muito discreto, Márcio quase nunca cita a mãe e o pai nos seus textos e entrevistas. No prefácio de Amazônia Indígena intitulado Uma árvore derrubada, uma palavra suprimida, tomei a liberdade de mencionar, além do pai, uma outra América, dona América, a mãe, chamando a atenção para o fato de que ela sabia escutar essas histórias.
Marcio me contou que leu o prefácio para a mãe, deixando-a muito emocionada com a homenagem a ela, uma amiga muito querida. Duas semanas depois, dona América faleceu aos 92 anos. Agora foi a vez do Márcio, o tempo todo sempre à frente de todos nós, na vida como na morte. A ele, o preito e o pranto do Taquiprati, que perde um interlocutor, um admirador, um parceiro, um irmão, um amigo.
O Brasil perde um pensador original. Em nota de pesar divulgada pelo Palácio do Planalto, o presidente Lula ressaltou que Márcio “discutiu em sua obra, formada por quase 40 livros, o papel social do escritor e cineasta durante o regime militar e sua contribuição para a cultura nacional”.
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