27.5 C
Brasília
quinta-feira, 21 novembro, 2024

Maria Flor, vô Hideraldo e a História

José Bessa Freire

No hay nada más vivo que un recuerdo (García Lorca. 1898-1936)

Niterói, 20 de julho de 2024

Querida Maria Flor,

Teu avô nos disse adeus. Neste sábado (20), às 18h00, foi celebrada a missa de 7º dia na igreja Nossa Senhora de Lourdes, no Parque Dez, em Manaus. Moro muito longe e não pude ir para me despedir dele e te conhecer pessoalmente. No entanto, graças à internet, podemos fofocar. Vamos trocar figurinhas: vou te lembrar o que ele aprontou antes de ser avô e tu me contas o que a neta aprendeu com ele nos seis anos de vida compartilhada. Combinado? Então, vamos lá.

Conheci teu avô, em 1983, na sala de aula do velho ICHL. Eu acabara de chegar da Europa, lá vasculhei arquivos em busca de documentos sobre a Amazônia orientado pelo historiador Ruggiero Romano. Fui dar aulas justamente de História da Amazônia no recém criado Curso de História para a primeira turma ingressada na UFAM, em 1981, que tinha apenas quatro alunos. Na hora “H”, surgiu mais um, que não estava inscrito. Era um magricela simpático e risonho. Adivinha quem era? Seu nome começa com a letra “H” de História.

– Professor, o tema me interessa, posso assistir suas aulas como ouvinte?

A participação dele foi integral, não faltou sequer uma aula. No semestre seguinte, dei a mesma disciplina para a segunda turma, que tinha outros alunos, incluindo teu vô, desta vez com o nome oficialmente na lista de chamada. Ele trancou o curso de filosofia no 7º período para se dedicar com exclusividade à História. Confesso que sua presença ali me obrigou a novas leituras para acrescentar algumas novidades e não repetir as mesmas aulas. Sua nota final foi dez, porque não existe nota mil na universidade.

A militância

Quando chegou a vez da terceira turma – menina, tu não vais acreditar – eis que surge aquele que iria ser teu avô, pedindo para assistir outra vez História da Amazônia como ouvinte. Ele já conhecia de trás pra frente o conteúdo e a bibliografia. Impus uma condição: “Fica, mas vai me ajudar como se fosse estágio-docência”. Ele ficou. E ajudou. Muito. Pergunta do Balkar e da Luísa que eles te contam.

Fizemos amizade. O braço esquerdo e a perna direita do teu vô ligeiramente afetados por uma poliomielite contraída aos 6 meses, não o impediu, já adulto, de atuar no movimento estudantil, na luta pela qualidade do ensino, contra a desigualdade social, por um Brasil sem fome. Estava em todas. A pessoa doce que você conheceu virava fera diante da injustiça. Te mando foto em frente ao Bar Acadêmico, quando celebramos a vitória nas eleições diretas para reitor. Mas já que estamos fofocando, vale a pena falar da vida familiar.

Registrei aqui no meu blog, em setembro de 2006, o falecimento da tua bisa Amazonina, fiel leitora do Taquiprati. Não lembro bem do teu bisavô que – olha só a coincidência – era meu xará. Se tirasse o sobrenome do seu José Ribamar da Costa e ele ficasse de frente, eu podia aparecer como o pai. Quem não gostaria de ter um filho assim? O casal Amazonina – Ribamar teve dez:  seis mulheres e quatro homens, um deles teu vô nascido no beco São José, bairro de Educandos, indo morar depois perto da feira da Panair.

– Acho que por ter nascido neste bairro boêmio e popular, o Hideraldo só gostava de ouvir música em alto e bom som. Passar por esse mundo discretamente nunca foi uma opção pra ele, já que a alegria precisa ser compartilhada – me disse Deusa, tua avó. Educandos era pra ele o que o bairro de Aparecida é pra mim: o “o” do borogodó presente em todas as sílabas do coração. Embora fiéis a nosso berço, ambos mudamos para o Parque Dez.  Sua casa era perto da minha.

O acadêmico

Sempre dava carona pro teu avô quando ele era estudante. A gente saía do campus e ia jogando conversa fora durante o trajeto. Criamos um grupo de estudos com alunos, todos unidos na amizade e na paixão pela História da Amazônia, com a esperança de que assim contribuiríamos para melhorar a vida dos amazonenses. Produzimos coletivamente vários artigos, algumas traduções e dois livros. Vais estudar mais tarde em um deles adotado pelas escolas de Manaus: A Amazônia Colonial (1616-1798), que tem coautoria do teu avô. Avisa coleguinhas e professora: – Esse é meu vô.

Fez parte dos projetos do grupo uma viagem de barco a Coari – território dos Juma, onde o padre Samuel Fritz criou no séc. XVII um povoado. Lá buscamos a documentação nos arquivos cartoriais e da Prelazia com apoio logístico do CRUTAC – Centro Rural Universitário de Treinamento e Ação Comunitária da UFAM. Maria Flor, nem te conto, menina. Depois de um dia cansativo, à noite, num barzinho com música ao vivo, Hideraldo dançou com colegas e com as professoras Edinea e Regina. Você já viu teu vô dançar? Levava jeito.

O dançarino, filho do seu Ribamar, se graduou e entrou na vaga de docente que deixei na UFAM, em 1987, quando fiz concurso para a Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Ou seja, ninguém sentiu minha falta. Logo ele obteve os diplomas de mestre (1995) e de doutor (2002) pela PUC/SP. Pesquisou a Amazônia: os viajantes, os povos indígenas, as lutas sociais, a saúde e a doença no século XIX. Adorava dar aulas. Publicou livro e artigos, orientou pesquisas, participou de bancas, como informa Gerson Albuquerque no texto postado logo abaixo.

Sua vida acadêmica cresceu, quando deu sorte de casar com tua avó Deusa, historiadora, com quem viveu 37 anos. Ela foi a interlocutora sensível e inteligente, que pesquisou jornais operários amazonenses, documentos do Arquivo Público e da Associação Comercial e relatos de governadores do Estado para escrever, “do ponto de vista do soldado raso e não do comandante”, sua dissertação sobre os trabalhadores urbanos em Manaus no auge da borracha.

O avô

Aí nasceu tua mãe, Ana Christina, e alguns anos depois teu tio Guilherme. Mas quem ensinou o Hideraldo a ser avô foi você, que já sabe ler e escrever e foi alfabetizada na Escola Cueiras, que tem esse nome por causa de uma árvore de cuia, na qual a professora já subiu algumas vezes para te contar histórias. Agora é tua vez de contar o que viveu com ele. Te passo a palavra. É com você, Maria Flor.

Carta que Maria Flor um dia escreverá

Manaus, 20 de julho de 2024

Prezado José Ribamar

Vou falar do meu vô, primeiramente quando ele era ainda garoto, porque ele mesmo me contou suas travessuras, que eu ouvi. Depois conto o que vi, vivi e convivi.

Minha bisa Amazonina sempre estimulou a independência do filho, mas devido as sequelas da poliomielite recomendava que ele evitasse brincadeiras arriscadas. O conselho entrou por um ouvido e saiu pelo outro. Intrépido, ele apostava corrida de bicicleta com os amigos, saindo da rua Vista Alegre rumo à Colônia Oliveira Machado, passando pelo aeroporto de Ponta Pelada e voando de volta para o Educandos.

Numa dessas, depois de um tratamento dentário muito caro de canal, ele desceu em sua bike pela Baixa da Égua. Sabe aquela ladeira desafiadora? Pois é. Desceu por ela em disparada para vencer a corrida, caiu de cara no asfalto e quebrou os dentes.

Outra vez foi comprar pão na padaria do português, seu Garganta, que era seu padrinho e perdeu o troco. Ele ficou chateado com a repreensão da bisa e se escondeu no Amarelinho, a família toda atrás, ele só apareceu na hora do almoço, porque sentiu fome.

Tem muitas histórias como essa, mas vou falar agora dele como avô carinhoso, paciente, engraçado, que me fazia rir, me acompanhava nos banhos de igarapés, brincava comigo, festejava o natal e os aniversários, me contava histórias, me levava à escola, eu gostava de ir pra escola com uma “cabeça de onça” que ele me deu.  Te mando fotos, uma delas da festa da escavação da piscina feita para mim.

O adeus

Não sei se te falei, Ribamar – posso te chamar de Babá? – um dia fiquei com dormência, queimação e fraqueza nas pernas, peguei uma tal de síndrome de Guillain Barré, e parei de andar. O vô ficou desesperado, deixou todos os seus afazeres para cuidar de mim. Acompanhou de perto todo o tratamento e as sessões de fisioterapia.

Quando meu vô foi internado no hospital, pedi da mamãe uma foto dele e montei um oratório com um abajur astronauta que replica o sistema solar no teto, um terço, duas velas e uma escultura de Nossa Senhora em madeira balsa feita pelos indígenas de São Francisco do Bujaru, em Iranduba. Minha mãe e eu rezávamos todas as noites pela saúde do “Bom Velhinho”, assim eu chamava meu vô. Era a hora de ele ir embora, mas a reza deixava a gente mais serena e confortada.

No velório, levei de casa flores do nosso Bougainville e uma Nossa Senhora de crochê, feita por minha prima Isadora, que foram sepultadas com ele. Fui ao enterro no Cemitério Recanto da Paz, em Iranduba, vestida com uma camisa do Bom Velhinho para ele permanecer mais um pouco comigo, no meu corpo.

A médica disse que foram várias as causas da morte: choque refratário, coagulopatia grave, hipertensão arterial sistêmica, distúrbio e sepse de foco abdominal. Não entendo nada disso. Para mim, ele não morreu. Se eu conhecesse esse poeta Garcia Lorca, diria que concordo com ele: “Não há nada mais vivo que uma memória”.

É isso aí. Meu vô está vivo na minha lembrança, porque não vou esquecer nunca o convívio com ele. Dizem que quando a gente mexe no baú das lembranças, as lembranças acabam mexendo com a gente. Estou muito mexida. Agora volto ao estúdio com você, José Ribamar.

Considerações finais

Quando faleceu o jesuíta Bartomeu Meliá, amigo querido, comentei com a antropóloga Marta Azevedo que era como se um pedacinho de cada um de nós tivesse sido sepultado com ele. Ela respondeu com a sabedoria dos guarani com quem viveu muitos anos:

– Estou saindo do enterro com a sensação inversa. É como se ele tivesse se distribuído para todos ñandé, para todos nós, e eu fico comigo com uma parte dele.

É isso. Levamos conosco uma parte do Bom Velhinho. De qualquer forma, peço às pessoas queridas que estão vivas, que se cuidem e morram depois de mim. Por favor. Cada vez tenho mais dificuldades de lidar com a morte de quem amo e admiro. Dessa vez fui salvo por Maria Flor – a Boa Netinha e pela serenidade da avó.  Sem elas, eu não saberia o que escrever.

Referências:

1.Francisca Deusa Sena da Costa. Quando viver ameaça a ordem urbana: Trabalhadores urbanos em Manaus 1890-1915. Dissertação de Mestrado orientada por Heloísa Faria Cruz. São Paulo. PUC. 1997

2. Hideraldo Lima da CostaCultura, trabalho e luta social na Amazônia: discurso dos viajantes, século XIX.   Manaus. Editora Valer. 2013. 202 p.

3. José Ribamar Bessa: A história vista de baixo (24/11/1995). https://www.taquiprati.com.br/cronica/444-a-historia-vista-de-baixo

4. __________. As flores de Maio em Manaus (02/05/1995). https://www.taquiprati.com.br/cronica/509-as-flores-de-maio-em-manaus

5. __________. Geraldo Sá Peixoto: navegar nas águas do Rio Negro. (27/05/2018). https://www.taquiprati.com.br/cronica/1397-geraldo-sa-peixoto-navegar-nas-aguas-do-rio-negro

O ADEUS DE MEU AMIGO HIDERALDO

Gerson R. Albuquerque

Rio Branco – Acre, 16 de julho de 2024.

Na manhã do último domingo, em um emblemático 14 de julho, faleceu meu amigo/irmão/camarada Hideraldo Lima da Costa, historiador manauara de grande capacidade de reflexão intelectual e contagiante sensibilidade humana. Um dos caras mais incríveis que conheci e com quem tive a honra e a alegria de conviver os melhores anos de minha formação acadêmica.

Conheci o Hideraldo no ano de 1992, quando fazíamos a seleção para o curso de mestrado na PUC – São Paulo, na rua Monte Alegre, em Perdizes. Após alguns poucos minutos de conversa já nos tratávamos como velhos amigos de infância e quando terminamos a entrevista da fase final da seleção, com a certeza de que estávamos aprovados, fomos ao Primeiro Ato, um bar que ficava na rua Bartira, próximo ao TUCA, enchemos a cara e partimos cada um pro seu canto.

No ano seguinte, em março de 1993, estávamos sentados um ao lado do outro para assistir às desconcertantes aulas de Déa Fenelón, Yara Khoury, Maria de Lourdes Mônaco Janotti e, especialmente, Maria Antonieta Antonacci, que viria a ser a nossa orientadora até terminar o doutorado e nosso farol nos anos seguintes. Ele foi morar no bairro Pinheiros e eu fiquei em Perdizes. Juntos fomos a todos os lugares possíveis, aprendendo a sobreviver em São Paulo: seus bares, seus sebos, seus cinemas, suas casas de shows, seus museus, suas livrarias, seus mercados, suas linhas de metrô, seu frio, enfim, a sedução dessa megalópole que nos encantava.

Nas aulas ele se destacava pela incrível capacidade de apreender as questões colocadas em discussão e fazia com que todas as leituras parecessem simples. Tinha sempre um comentário inteligente, sensível e atencioso para fazer. Por seu intermédio, li Edmund Wilson, Richard Sennet, Margareth Rago e Neide Gondim. Ele comentava os escritos de Raphael Samuel, Raymond Williams, Le Goff, Marc Bloch, Lucien Febvre, Georges Duby, Fernand Braudel, Walter Benjamin, E. P. Thompson e Pierre Nora como se fossem íntimos companheiros de reflexões e estudos. Interpretava as narrativas dos intérpretes da Amazônia com perspicácia crítica e atenção aos mínimos detalhes.

Em um grupo de leitores dos estudos culturais ingleses, chamou a nossa atenção para os textos de Michel Foucault e afirmou que dava pra dialogar com ele e Walter Benjamin de modo afinado. Nunca dizia um não para o que quer que fosse e estava sempre disposto a uma caminhada solidária, percorrendo a cidade e descobrindo sebos e lojas de móveis usados em estado adequado e por um bom preço para montarmos nossos escritórios de trabalho doméstico.

Dava sonoras gargalhadas de suas próprias mancadas e fazia galhofa com nossa colonheirice de amazônicos perdidos na cidade grande. Hideraldo foi o primeiro a defender a dissertação e quando decidimos concorrer a uma vaga para o doutorado ele se mudou – com a Deusa e a Ana Christina – para o apartamento em que eu residia – com Ana Regina, Juliana e Pedro – para ler de modo generoso e solidário a versão final de meu texto, corrigindo, criticando e ajustando passagens inteiras de “Seringueiros, caçadores e agricultores: trabalhadores do rio Muru” como se tivesse feito a pesquisa de campo ao meu lado.

No dia de minha defesa, fechamos o Krystal Chopps, na Cardoso de Almeida e eu tive que carregá-lo aos tombos e risadas até chegar no condomínio da Itapecuru, 792, onde morávamos. Lembro que retornamos para nossas casas – ele pra Manaus e eu pra Rio Branco – logo após a conclusão dos créditos do doutorado e, em 1996, fomos para a Espanha – Madri, Santiago de Compostela, Salamanca e Barcelona – participar de um congresso com Antonieta Antonacci e outros colegas.

Certa noite, após as apresentações de nossas ponencias na Universidad de Salamanca, na companhia de colegas brasileiros, colombianos e franceses percorremos bares, praças, becos e ruelas da cidade em uma das noites mais inesquecíveis de nossas vidas: até hoje sinto o aroma daquela madrugada.

Ao longo desses últimos anos nos encontramos diversas vezes na cidade de Manaus e, em certa ocasião, tive a alegria de levá-lo pra conhecer minha avó Odília Albuquerque que residia no bairro Petrópolis. No ano de 2009, tivemos a felicidade de contar com sua significativa participação em uma das mais impactantes edições do congresso Linguagens e Identidades Amazônicas, realizado no campus da Universidade Federal do Acre. E a última vez que nos encontramos foi no ano de 2019, quando estivemos em sua agradável casa, recebendo o carinho e a atenção hospitaleira de um Hideraldo camarada, gentil, alegre e brincalhão.

 Eu poderia ficar horas e horas falando das muitas aventuras e desventuras vividas desde nosso encontro na cidade de São Paulo, mas vou encerrar essa pequena homenagem falando de um texto escrito por Hideraldo que marcou de modo incisivo a minha trajetória acadêmica. Trata-se de Cultura, Trabalho e Luta Social na Amazônia: discurso dos viajantes – século 19, sua dissertação de mestrado, defendida no ano de 1993 e publicada em 2013 pela Editora Valer. Guardo até hoje um exemplar da versão que foi entregue para a banca, com uma dedicatória feita no calor do pós-defesa, e guardo também a edição do livro impresso, com outra gentil dedicatória do autor.

As linhas dessa obra de fôlego, tecida no curto espaço de dois anos e meio, abriram meus olhos não apenas para uma região marcada pelo fascínio, pela conquista, pelo etnocídio e pelo mito do desenvolvimento que sustenta a destruição da vida, mas pelo fato de que os viajantes naturalistas do oitocentos foram sujeitos de seu tempo com tamanha proximidade com os poderes instituídos no território brasileiro ao ponto de seus discursos e suas conclusões serem incorporadas pelas elites dominantes como a verdade sobre a Amazônia.

Nesse estudo, o que Hideraldo fez não foi apenas lançar nossos olhares para as comunidades humanas excluídas e adjetivadas como indolentes e preguiçosas, mas nos fazer apreender que a realidade sobre a região, essa realidade que transborda nos livros de história e nas peças publicitárias de governantes incompetentes e autoritários não passa de narrativas etnocêntricas que foram instituídas como a verdade sobre os pluriversos amazônicos, sendo transformadas em instrumento de dominação e de permanente exploração e violência sobre o “mundo natural” e, principalmente, sobre as populações indígenas e não-indígenas no passado e no presente.

Ao saber de sua morte o chão desabou sob meus pés e lentamente fui desmontando em um rio lágrimas e de lembranças das nossas vivências compartilhadas, nossos sonhos, nossos receios, nossos reveses, nossas vitórias, nossas confraternizações. Em outubro de 2019, fiz várias críticas a esse amigo/irmão/camarada que acaba de desaparecer do mundo dos vivos, lamentando por seu distanciamento de inúmeras atividades acadêmicas e, de modo galhofeiro, o rotulando de novo “proprietário feudal”. Ele sorriu, zombou de minhas críticas e me respondeu com um carinhoso “porra! Me respeita seu filho da puta”, seguido de novas boas risadas.

Todos nós fazemos escolhas e todos nós acertamos e erramos, e acertamos e erramos de novo, e a vida é assim, me disse em seguida. Nada disso importa agora, pois o que fica é só a lembrança, essa paradoxal presença de uma ausência, essa ausência que nunca vai ser substituída, essa irreparável perda de um amigo que desaparece desse mundo e que nos deixa sentindo falta não só de seus acertos, mas também de seus erros, de suas idiossincrasias, de tudo o que lhe tornava instavelmente vivo e humano, dizendo sim para vida, sim para um mundo melhor.

É a lembrança de seu sorriso, de sua alegria, de sua lealdade, de seu companheirismo que seguirá em nossa companhia. A lembrança como parceira das boas histórias desse e sobre esse amigo que nos deixa órfãos de tudo o que ele era, de sua humanidade, de seu ser objetivo/subjetivo. A lembrança que nos capacita a criar histórias alimentadas pela imaginação, essa fonte inesgotável de fazer com que as pessoas existam mesmo quando desaparecem do mundo e, como disse o poeta Manuel de Barros, destampam a solidão e nos fazem mergulhar em seus muitos silêncios.

ÚLTIMAS NOTÍCIAS